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Economia

Por que há uma escassez de dólares no mundo apesar das maciças injeções do Fed?

O risco de todos os Bancos Centrais acreditarem que podem copiar o Fed

15/04/2020

Por que há uma escassez de dólares no mundo apesar das maciças injeções do Fed?

O risco de todos os Bancos Centrais acreditarem que podem copiar o Fed

Em resposta ao colapso econômico causado pelo confinamento geral imposto pelos governos estaduais em decorrência da pandemia de Covid-19, o Federal Reserve (o Banco Central americano) anunciou uma injeção de mais de US$ 2 trilhões na economia americana.

Mas o dólar segue forte em relação às outras moedas do mundo — como pode ser comprovado pelo alto valor do índice DXY, que compara a moeda norte-americana ao euro, ao iene, à libra esterlina, ao dólar canadense, à coroa sueca e ao franco suíço. 

Logo, a pergunta é inevitável: como pode o Fed lançar um programa de estímulos monetários praticamente ilimitados, e o índice do dólar ainda permanecer forte?

Escassez em meio à abundância

A resposta está na crescente escassez global do dólar, algo que deveria servir de lição para os alquimistas monetários ao redor do mundo, que juram ser possível fazer em outros Bancos Centrais (principalmente de países em desenvolvimento) o que está sendo feito pelo Fed.

Antes de tudo, vale lembrar que o ouro voltou a alcançar as máximas históricas que só havia sido alcançada em 2011, o que comprova que a inflação monetária de fato já está se transformando em inflação de ativos. Entretanto, é fato que o dólar segue forte em relação às outras moedas do mundo, o que demanda explicações.

O pacote de estímulos de US$ 2 trilhões acordado junto ao Congresso equivale a aproximadamente 10% do PIB americano. E, se incluirmos as linhas de crédito criadas pelo Fed para garantir capital de giro às empresas, temos aí uma liquidez de US$ 6 trilhões para consumidores e empresas ao longo dos próximos nove meses.

O pacote de estímulos aprovado pelo Congresso americano é composto dos seguintes itens:

1) Transferências fiscais permanentes para famílias e empresas de praticamente US$ 5 trilhões.

2) Indivíduos receberão US$ 1.200 em pagamento direto (US$ 300 bilhões no total).

3) Pequenas empresas receberão empréstimos totais de US$ 367 bilhões, os quais se transformação em subsídios caso empregos sejam mantidos

4) Haverá um aumento nos valores do seguro-desemprego para o valor de 100% dos salários perdidos durante quatro meses (US$ 200 bilhões).

5) US$ 100 bilhões serão destinados ao sistema de saúde, bem como US$ 150 bilhões para governos estaduais e municipais.

6) O restante do pacote virá de medidas temporárias para ajudar empresas e famílias, incluindo diferimento de impostos e renúncias fiscais.

7) Finalmente, haverá o uso de US$ 500 bilhões Fundo de Estabilização Cambial do Tesouro para empréstimos para empresas que não sejam do setor financeiro.

A tudo isso, devemos acrescentar o maciço programa de afrouxamento quantitativo anunciado pelo Fed.

Primeiro, temos de entender que a palavra "ilimitada" é apenas uma ferramenta de comunicação. Não é ilimitada. Todo o programa é limitado pela demanda do resto do mundo por dólares americanos. Caso haja uma perda de confiança no dólar, o programa acaba.

Eu mesmo já tive o privilégio de trabalhar com vários dos atuais membros do Fed, e a verdade é que eles sabem que não é ilimitado. Mas eles sabem que a comunicação é importante.

O gráfico abaixo mostra a evolução dos ativos em posse do Fed. Para comprar ativos, o Fed cria dólares do nada. É assim que ele faz seus programas de expansão monetária e afrouxamento quantitativo. 

ativosfed.png

Gráfico 1: evolução dos ativos em posse do Fed

O Fed identificou o calcanhar de Aquiles da economia mundial: a enorme escassez global de dólares. Isso já havia ficado óbvio em setembro do ano passado, quando o mercado de repo americano congelou

Atualmente, a escassez global de dólares está estimada em US$ 13 trilhões. Este é o valor ao qual chegamos quando pegamos toda a oferta monetária americana, inclusive as reservas bancárias em posse do Fed, e dela subtraímos todos os passivos mundiais denominados em dólar, principalmente nos países emergentes.

Como chegamos a tamanha escassez de dólar?

Nos últimos 20 anos, as dívidas denominadas em dólar, tanto nos países emergentes (liderados pela China) quanto nos desenvolvidos, explodiram. O motivo é simples: investidores domésticos e estrangeiros não aceitam incorrer em volumosos riscos na moeda local, pois sabem que, em momentos de turbulência, como agora, vários países vivenciam uma acentuada desvalorização cambial (o dólar fica mais caro em termos das moedas locais). Tamanha desvalorizar gera intensos prejuízos para esses investidores, que, ao remeterem seus lucros, perderiam todos os seus ganhos ao converterem a moeda local para o dólar. (Veja detalhes deste processo aqui).

Consequentemente, investidores só aceitam financiar governos e empresas caso estes emitam títulos em dólares.

Igualmente, vários Bancos Centrais ao redor do mundo, principalmente em países emergentes, estão fazendo uso de suas reservas internacionais para tentar conter um pouco da intensa e repentina desvalorização de suas moedas. Mas as reservas internacionais são efetivamente formadas por títulos do Tesouro americano. Ou seja, quando Bancos Centrais vendem reservas, eles na verdade vendem títulos do Tesouro americano em troca de dólares, o que acentua a demanda mundial pela moeda americana.

De acordo com o Banco de Compensações Internacionais (o Banco da Basiléia), a quantidade de títulos de dívida denominados em dólar emitidos por governos e empresas de países europeus, emergentes e pela China dobrou de US$ 30 trilhões para US$ 60 trilhões entre 2008 e 2019 (Fonte: página 6).

Estes países hoje têm de lidar com mais de US$ 2 trilhões em dívidas que irão vencer nos próximos dois anos. Para piorar, a queda nas exportações, no PIB e nos preços das commodities (inicialmente por causa da guerra comercial e agora por causa da pandemia de Covid-19) gerou um enorme buraco na entrada de dólares nestes países. 

Assim, se pegarmos as reservas de dólares dos países mais endividados e deduzirmos os passivos externos em dólares, e levarmos em conta as receitas estimadas de dólares nesta crise (exportações e investimento estrangeiro direto), temos que a escassez global de dólares pode subir de US$ 13 trilhões em março de 2020 para US$ 20 trilhões em dezembro. E isso se considerarmos que a recessão global não será duradoura.

A China possui mais de US$ 1 trilhão em reservas e é um dos países mais bem preparados para lidar com a situação, mas, ainda assim, essas reservas totais cobrem apenas 60% do passivo em dólar do país. Se as receitas das exportações colapsarem, a escassez de dólares irá aumentar. Em 2019, os chineses se endividaram em mais US$ 200 bilhões à medida que suas exportações desaceleraram e a entrada de dólares ficou aquém do esperado.

O ouro não basta

As reservas em ouro não bastam. Se olharmos as reservas das principais economias do mundo, elas representam menos de 2% da oferta monetária. A Rússia possui a maior reserva de ouro em relação à sua oferta monetária: 9% do M2.

Já as reservas de ouro da China equivalem a 0,007% do M2.

Sendo assim, não há nenhuma moeda "lastreada em ouro" no mundo, e aquela que teoricamente é mais protegida em ouro — que é o rublo — sofre as mesmas volatilidades das outras moedas em épocas de recessão e de forte queda nos preços das commodities devido à escassez de dólares (vide a acentuada depreciação do rublo russo no início de 2020).

Ainda assim, a volatilidade do rublo russo nem sequer se compara à volatilidade daqueles países da América Latina que sofrem tanto de uma queda nas reservas internacionais quando de um colapso na demanda de seus próprios cidadãos pela moeda doméstica (como é o caso da Argentina).

Adicionalmente, a acumulação de reservas de ouro pelos Bancos Centrais nos últimos anos foi mais do que compensada, em apenas poucos meses, pelo aumento na base monetária destes países. Em outras palavras, as reservas de ouro de vários países aumentaram, mas a uma taxa muito menor do que a expansão de suas bases monetárias.

Os EUA são os privilegiados - e não dá para copiar

Considerando-se tudo isso, o Federal Reserve sabe que possui a maior de todas as bazucas à sua disposição, pois o resto do mundo precisa de pelo menos US$ 20 trilhões até o fim do ano, de modo que ele pode expandir seu balancete (criando dólares do nada) e com isso financiar o déficit orçamentário do governo americano de US$ 10 trilhões e, ainda assim, a escassez de dólares permanecerá.

O dólar americano não se enfraquece excessivamente (embora, como dito, esteja se enfraquecendo acentuadamente perante o ouro) porque todos os outros países do mundo estão vivenciando perda de reservas, redução na entrada de dólares e necessidade de rolar dívidas em dólares ao mesmo tempo em que estão expandindo suas respectivas bases monetárias (em moeda local) a uma taxa maior que a do Fed, mas sem terem o privilégio de serem a moeda internacional de troca e a moeda global de reserva.

Ou seja, a demanda global por dólares nunca esteve tão forte: de um lado, a expansão monetária dos outros países está sendo tão ou mais intensa que a do próprio Fed; de outro, a oferta de dólares repentinamente escasseou por causa de quedas nas exportações e do colapso nos preços das commodities. Para piorar tudo, como explicado, há também a necessidade de se obter dólares no curto prazo para a rolagem de dívidas.

Trata-se de um arranjo que nenhum outro país do mundo vivencia, pois nenhum outro detém o privilégio de emitir a moeda internacional de troca e a moeda global de reserva.

E piora: nas atuais circunstâncias, e com uma crise global no horizonte, a demanda global por títulos dos países emergentes em moedas locais tende a cair fortemente, bem abaixo de suas necessidades de financiamento. Assim, a dependência do dólar americano aumentará. Por quê? Quando centenas de Banco Centrais tentam copiar o Fed reduzindo juros sem terem a mesma segurança jurídica, financeira e de investimentos dos EUA, eles irão simplesmente ver uma fuga generalizada de suas moedas, acentuando ainda mais a desvalorização cambial.

Por isso, aqueles Bancos Centrais que tentarem copiar o que o Fed está fazendo, ignorando que a real demanda por suas respectivas moedas é muito menor que a demanda pelo dólar americano, farão apenas com que os investidores locais e estrangeiros abandonem ainda mais estas moedas, por causa do risco inflacionário. Isso poderá piorar ainda mais a desvalorização cambial. 

Não existe "soberania monetária" sem segurança aos investidores.

Até o momento, o único país que já demonstrou ter entendido isso é o Japão. Sendo hoje o país com as maiores reservas de dólares do mundo, o Japão não apenas tem sua moeda já completamente lastreada em dólares, como também possui um ambiente jurídico completamente seguro, previsível e propício aos investimentos estrangeiros, no mesmo padrão de EUA, Reino Unido e Suíça. Por isso o país pôde ser dar ao luxo do juro zero sem sofrer grandes consequências.

Para concluir

Essa corrida rumo ao juro zero que está sendo praticada pelos Bancos Centrais não é uma corrida para ver quem ganha, mas sim para ver quem perde primeiro. Aqueles que perderem serão os que se acreditam capazes de copiar o Fed e os EUA sem terem a mesma liberdade econômica, o mesmo ambiente jurídico e a mesma segurança dada aos investidores.

O Federal Reserve pode, e deve, ser criticado por sua postura monetária, mas ao menos é o único Banco Central do mundo que realmente analisa a demanda global por sua moeda (dólares americanos) e que aparentemente sabe que a oferta monetária não pode ser aumentada para além da demanda por ela.

Com efeito, o afrouxamento quantitativo do Fed não é ilimitado; ao contrário, é totalmente limitado pela verdadeira demanda global pela moeda americana, algo que outros Bancos Centrais ignoram ou preferem esquecer.

Pode o dólar americano perder sua posição de moeda global de reserva? Claro que sim. Mas jamais a perderá para outro país que decida cometer os mesmos tipos de loucuras monetárias do Fed sem levar em conta a real demanda global pela moeda que emitem.

Essa deveria ser uma lição para todos os países. Se você cair na armadilha de acreditar que possui a moeda de reserva mundial, e sair se comportando como o Fed, imprimindo dinheiro sem quaisquer considerações pela demanda global por esse dinheiro, então a sua dependência do dólar irá se intensificar. E isso na melhor das hipóteses.

Sobre o autor

Daniel Lacalle

É Ph.D. em economia, gestor de fundos de investimentos, e autor dos livros Escape from the Central Bank Trap

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