Economia
Coronavírus: um caso raro de choque de oferta e de demanda - e suas possíveis consequências nefastas
E o que deveria ser feito
Coronavírus: um caso raro de choque de oferta e de demanda - e suas possíveis consequências nefastas
E o que deveria ser feito
Em termos puramente econômicos — ênfase em 'econômicos' —, a atual epidemia do Covid-19 (que está prestes a virar pandemia) apresenta um estimulante debate intelectual: no curto prazo, teria este cisne negro um efeito inflacionário ou deflacionário sobre os preços da economia global?
E no longo prazo, quais as suas reais consequências?
Rápida cronologia
Como o leitor certamente já está ciente, a difusão do novo coronavírus está causando sérios estragos econômicos.
Ainda em fevereiro, a China entrou em quarentena. Quase 70 milhões de chineses foram literalmente mantidos presos dentro de casa pelo governo. A pena para quem desrespeitasse o aquartelamento era a cadeia. Empresas foram fechadas e linhas de montagem foram paralisadas. Restaurantes não abriram. Ninguém saía às ruas, que ficaram desertas. Nos poucos supermercados abertos, passou a haver racionamento e rigor na entrada de clientes. A atividade do setor privado (PMI - Índice dos Gerentes de Compras), sem nenhuma surpresa, desabou para as mínimas históricas. As principais companhias aéreas do mundo suspenderam seus voos para a China.
E então, apesar de todos os esforços, o vírus começou a se espalhar pelo mundo. Chegou à Coreia do Sul e causou estragos semelhantes. A Samsung e a LG fecharam várias fábricas. Depois chegou ao Japão. Escolas estão fechadas. Está havendo racionamento nos supermercados e, recentemente, uma escassez de papel higiênico.
Na Austrália, que também está sendo afetada, observa-se fenômeno idêntico. Um jornal local até passou a imprimir oito páginas extras para serem utilizadas como "papel higiênico de emergência"
Agora, o vírus se vai se espalhando rapidamente pela Europa. Ainda ontem, o governo da Itália, que se tornou o segundo país mais afetado pela epidemia (já são 631 mortos), simplesmente decretou o isolamento do país. Reuniões públicas estão banidas e qualquer movimentação pelo país está proibida, com exceção daquela estritamente necessária para atendimentos médicos e emergências. A polícia foi instruída a impingir rigorosamente as proibições.
Nos EUA, a epidemia ainda é incipiente, mas já demonstra rápido avanço. Já são mais de mil casos e 31 mortos. E, é claro, a venda de papel higiênico passou a ser racionada pelos supermercados (também no Canadá), em decorrência da súbita e inesperada demanda.
Ao redor do mundo, eis a situação: viagens a turismo e a negócio entraram em colapso (o que está afetando severamente a solvência das companhias aéreas), conferências e eventos esportivos estão sendo cancelados, e, principalmente, toda a cadeia global de produção foi severamente atingida, com várias fábricas e empresas fechadas.
Assim, a oferta global de produtos está afetada, pois as cadeias de suprimento, que possibilitam a produção desses bens, estão paralisadas.
Portanto, temos um impacto sobre a oferta (cadeias interrompidas, fábricas paradas, férias coletivas) e sobre a demanda (restrições de circulação, fechamento de escolas, interrupção de eventos de massa, viagens canceladas, lojas vazias, comércio sem clientes).
Ambos estes choques de oferta e demanda — bem como a expectativa de que há muito mas por vir — geraram pânico nos mercados financeiros. Nas últimas semanas, as bolsas de valores desabaram (pois espera-se menos crescimento econômico global e menores lucros para as empresas), o preço do barril de petróleo afundou (tanto pelo colapso da demanda quanto pela falta de um acordo entre a Rússia e a OPEP) e o indicador de volatilidade, também conhecido como Índice do Medo, alcançou as máximas vistas apenas em 2008, no auge da crise financeira mundial.
Como é de se esperar nestas situações, todos os investidores em busca de proteção e segurança se refugiam nos títulos públicos americanos, que são tidos como os mais seguros do mundo (e, ao contrário de vários europeus, ainda pagam juros nominais positivos). Esse aumento pela procura reduz os juros pagos por esses títulos (entenda aqui o mecanismo) e, como consequência, os títulos de 30 anos do governo americano estão pagando hoje a menor taxa de juros de sua história: 1,17%.
Para se ter uma ideia da magnitude da queda, no início de 2020 (meros dois meses atrás), esses mesmos títulos pagavam juros de 2,35%. Uma queda desta profundidade e rapidez mostra como os investidores experientes (o chamado smart money) estão receosos quanto aos impactos econômicos do coronavírus.
Os dois choques se iniciaram na Ásia
A Ásia foi, e ainda é, o epicentro do surto do coronavírus. E lá também continua sendo epicentro dos problemas das cadeias de suprimento global.
O efeito é duplo:
1) De um lado, todas as empresas ao redor do mundo importam produtos montados na China, no Japão e na Coreia do Sul; e dado que as fábricas destes países estão paralisadas, então tem-se uma disrupção momentânea das cadeias globais de suprimento. As outras empresas do mundo não conseguem receber suas encomendas fabricadas nos países asiáticos.
2) De outro, dado que esses países asiáticos são grandes importadores de commodities do resto do mundo (e utilizam essas commodities exatamente para fabricar os produtos que exportam para o mundo), e dado que suas fábricas estão fechadas, então temos um forte impacto sobre os preços das commodities.
E esse impacto sobre os preços das commodities já é explícito. Abaixo, o gráfico da evolução do Índice CRB, que é o principal índice de commodities do mundo. O índice engloba as 19 commodities mais transacionadas mundialmente: alumínio, cacau, café, cobre, milho, algodão, petróleo bruto, ouro, óleo para aquecimento, suínos, boi gordo, gás natural, níquel, suco de laranja, prata, soja, açúcar, gasolina e trigo. Em termos práticos, você pode interpretar o gráfico como sendo o preço em dólares de uma cesta contendo todas essas commodities.
Índice CRB - evolução dos preços das commodities, em dólar
Observe que os preços das commodities desabaram, e voltaram ao mesmo nível de 2002. Tal efeito é fortemente deflacionário sobre os preços de bens e serviços, pois tudo, em última instância, depende de commodities.
Resta saber agora qual será o efeito sobre os preços da interrupção da cadeia de suprimentos globais. Tal fenômeno, por reduzir a oferta, tende a gerar uma pressão altista nos preços. Mas, por ora, isso ainda não foi observado.
Logo, a realidade é que, por enquanto, já estamos sentindo os efeitos de um choque de demanda — que já é perceptível na forte redução dos preços das commodities — e estamos vivenciando um ainda incipiente choque de oferta, que tende a se refletir na queda da produção de vários bens, como automóveis e eletroeletrônicos. No Brasil, esse choque de oferta já chegou: por falta de peças importadas da China, algumas fábricas estão dando férias coletivas.
Mas tudo tende a piorar.
Efeitos econômicos no resto do mundo
A grande encrenca deste duplo choque é que ambos tendem a se retroalimentar e a se espalhar pelo mundo, intensificando a disrupção. Se o Covid-19 mantiver sua progressão, os choques de oferta e demanda, até então restritos à Ásia, ocorrerão em todos os continentes. Na Europa, o fenômeno já começou.
Para facilitar o raciocínio, eis um resumo cronológico de toda a situação (o que já aconteceu e o que ainda pode vir a acontecer):
a) China, Coréia do Sul e Japão, por causa do Covid-19, sofrem um choque de oferta, o qual reduz profundamente a produção destes países. Sem produção, a renda cai.
b) Com a renda em queda, a população asiática reduz as importações do resto do mundo (commodities da América Latina e bens de consumo da Europa e dos EUA). Isso representa um choque de demanda para estes outros países.
c) Como consequência dessa menor demanda asiática, toda a produção destes países europeus e americanos voltada para a exportação tende a se reduzir. Assim, as pessoas dessas áreas passam agora a também ter uma renda menor.
d) Logo, tem-se menor produção e menor renda ao redor do mundo.
Mas ainda não acabou. O choque de oferta se alastra pelo mundo.
e) Dado que vários dos bens e serviços fabricados pelas empresas europeias e americanas contêm produtos intermediários fabricados na China, no Japão e na Coreia (cadeias globais de produção), a interrupção da atividade na Ásia afeta a produção na Europa e no continente americano. Tem-se um choque mundial de oferta.
f) No entanto, na União Europeia a situação é mais grave. Conforma a epidemia vai se alastrando pela Europa (e na Itália com mais intensidade), a própria atividade econômica no continente europeu vai sendo suspendida, de modo que o choque de oferta acaba sendo intensificado nos países europeus. Sem estarem produzindo, não há renda. Sem renda, não há como os europeus demandarem produtos do resto do mundo.
Ou seja, tanto Ásia quanto Europa vivenciam os dois choques: demanda e oferta.
g) Por último, resta o continente americano. Por ora, nós estamos vivenciando apenas um incipiente choque de oferta, e um muito pontual choque na demanda (que é sentida nos setores voltados para a exportação). Ainda assim, é notável que os portos de Los Angeles e Long Beach estejam vivenciando uma queda de 2 milhões de contêineres em relação ao mesmo período do ano passado.
A questão é quais serão os desdobramentos em termos de preços. O que irá prevalecer: a restrição da oferta (aumento de preços) ou a queda da demanda (redução de preços)?
O que é fato é que um choque negativo na cadeia da oferta gera um choque negativo na demanda: as empresas, por não estarem mais nem produzindo e nem vendendo, tendem a se tornar insolventes, tornando-se incapazes de honrar suas dívidas ou mesmo de conseguir refinanciamento. Dependendo da situação, isso tende a gerar calotes em massa, o que pode colocar em risco todo o sistema bancário e financeiro.
Por tudo o que foi dito, e respondendo à pergunta inicial do artigo, o coronavírus tende a ter um efeito mais deflacionário sobre as economias -- a menos, é claro, que os governos enlouqueçam e adotem as políticas erradas listadas a seguir.
Soluções
Em um contexto de choque de oferta, uma política fiscal expansionista — isto é, aumentar os gastos do governo — não faria sentido: se as pessoas estão proibidas de trabalhar pelos seus respectivas governos (Ásia e Itália) ou se elas não estão trabalhando porque seus fornecedores não estão produzindo (interrupção da cadeia de oferta global), então, por consequência lógica, fomentar um maior gasto estatal não terá como fazer a economia crescer. O único efeito será o de aumentar os preços.
Neste cenário de choque de oferta, o problema óbvio não é a escassez de gastos, mas sim a ausência de atividade econômica.
É difícil as pessoas aceitarem isso, mas quando se tem um choque de oferta ocasionado pelo surto de um vírus que afeta diretamente as bases produtivas das economias, não há como a oferta ser ressuscitada por meio de políticas fiscais e monetárias. É um tanto óbvio, mas vale a pena enfatizar: colocar o governo para imprimir dinheiro, ou para se endividar e gastar um dinheiro que não tem, não terá o poder de magicamente criar novos bens de capital, de ressuscitar linhas de produção e de religar máquinas. (Uma automação intensa até teria esse poder, mas não meros gastos do governo.)
Já um choque de demanda, em tese, até pode ser contrabalançado por um política fiscal baseada estritamente na redução de impostos. Mas isso funcionaria apenas no curto prazo. No longo prazo, sem um aumento na produção (e este é o caso, pois estamos vivendo um duplo choque), não haverá renda crescente para sustentar essa maior demanda.
Igualmente, se muitas empresas se tornarem insolventes por não estarem produzindo, e consequentemente vivenciarem problemas financeiros, então é verdade que uma política monetária mais expansionista poderia facilitar seus refinanciamentos até o momento em que a situação se normalizasse. No entanto, neste caso, também a margem seria estreita e com contrapartidas negativas (maior inflação de preços em decorrência de haver mais dinheiro na economia). E, como já explicado, políticas monetárias não têm como abolir problemas cujas origens estão em um choque de oferta (de novo: estamos vivenciando um duplo choque).
Sendo assim, eis o que realmente pode, e deve, ser feito: permitir que empresas em dificuldades adiem o pagamento de tributos; reduzir todos os fardos regulatórios e burocráticos que oneram a produção (qualquer oxigênio é bem-vindo); permitir a total e irrestrita cooperação entre organização científicas e de saúde; facilitar cadeias de oferta alternativas por meio da abolição de todas as tarifas de importação e barreiras não-tarifárias; facilitar o financiamento a pequenas e médias empresas (por exemplo, zerando o imposto de renda e o imposto sobre ganhos de capital dos fundos de investimento, de private equity ou de venture capital que investirem nelas).
Choques de oferta devem ser resolvidos com políticas do lado da oferta. Uma vez estabilizada a oferta, a renda é criada, e aí a demanda vem naturalmente.
Colocar o governo para imprimir dinheiro, ou para se endividar e gastar dinheiro que não tem apenas para sustentar elefantes brancos e com isso turbinar os números do PIB não é apenas uma solução insensata; é também a receita para um colapso econômico ainda maior no futuro.
Para concluir
Além de evitar adotar as más políticas elencadas acima (que irão intensificar os efeitos do choque de oferta), e de torcer para que sejam adotadas apenas as boas (que irão amenizá-los), resta apenas torcer para a descoberta da vacina. Desonerações e retiradas de obstáculos governamentais sobre a indústria farmacêutica ajudariam bastante, mas isso se tornou anátema.
O que é definitivo é que, infelizmente, os danos econômicos causados por um surto viral aparentemente fora de controle não podem ser abolidos totalmente por meio de truques fiscais e monetários. Quem dera fosse tão simples assim.
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