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Economia

A China teve de ceder porque seu arranjo mercantilista depende fortemente de exportações

O país estava desesperado por um acordo comercial, mas não necessariamente irá cumpri-lo

06/05/2019

A China teve de ceder porque seu arranjo mercantilista depende fortemente de exportações

O país estava desesperado por um acordo comercial, mas não necessariamente irá cumpri-lo

Nota do Editor

O artigo abaixo foi originalmente publicado em dezembro de 2018. Com o recente anúncio de que Trump pretende elevar de 10% para 25% as tarifas de importação dos EUA sobre produtos chineses, já na próxima sexta-feira, 10 de maio, as previsões feitas no artigo se comprovaram bastante acuradas.

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O encontro dos países do G-20 em Buenos Aires tinha um objetivo supremo: fazer com que EUA e China chegassem a um acordo e reduzissem suas tensões comerciais.

No entanto, o anunciado acordo foi muito mais uma "trégua diplomática" do que um acordo verdadeiro: os EUA se comprometeram a postergar a imposição de tarifas de importação contra a China (que entrariam em vigor no dia 1º de janeiro de 2019), e a China se comprometeu a comprar mais produtos agrícolas e energéticos (como gás natural liquefeito). Adicionalmente, a China também prometeu se empenhar mais em questões de segurança jurídica e de cumprimento de contratos, em abrir o mercado de capitais e em proteger a propriedade intelectual.

No entanto, todo o linguajar foi vago, os comprometimentos são condicionais, e o tempo é limitado.

Nada de novo

Quando a imprensa fala em "guerra comercial" como se fosse uma novidade, ela incorre em um grave erro. O mundo vive uma guerra comercial há anos.

Os EUA vêm há anos denunciando as barreiras comerciais impostas pela China e por outros países, direta e indiretamente, sem que a Organização Mundial do Comércio fizesse nada a respeito. Consequentemente, o país reagiu e, erroneamente, também recorreu ao protecionismo, de modo que, de 2009 a 2016, o país introduziu mais medidas protecionistas do que qualquer outro país do G-20. A Organização Mundial do Comércio alertou, em várias ocasiões antes de Trump ser eleito, sobre o aumento do protecionismo que vinha ocorrendo desde 2011.

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Número de medidas comerciais discriminatórias impostas anualmente desde 2009

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Número total de medidas comerciais discriminatórias impostas por cada país desde novembro de 2008

A necessidade da China

O aumento do protecionismo global, especialmente o americano, é péssimo para o modelo econômico chinês. A China desesperadoramente tem de manter seu superávit comercial com os EUA para dar sustento ao seu modelo de crescimento baseado em exportações (maciçamente subsidiados pelo governo chinês).

Essa necessidade chinesa de manter exportações para os EUA é muito maior do que a necessidade americana de manter a China como a principal compradora dos títulos da dívida pública dos EUA. (A China usa os dólares obtidos por suas exportações para comprar títulos da dívida americana).

Para começar, a China não é o principal detentor dos títulos públicos americanos (embora ainda seja o maior detentor estrangeiro). Os principais detentores são os próprios investidores e instituições dos EUA. Adicionalmente, a demanda por títulos públicos americanos continua robusta e, mesmo com a China e o Fed vendendo títulos, os juros sobre eles não dispararam.

Por outro lado, as reservas internacionais da China estão caindo.

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Evolução das reservas internacionais da China, em dólares

A China não pode manter seu modelo econômico -- que se baseia em crédito subsidiado ao setor exportador, que é majoritariamente industrial -- se suas exportações para os EUA diminuírem. Simplesmente não há outro mercado que possa substituir os EUA e assim contrabalançar uma eventual queda das exportações para os americanos. O superávit comercial da China com os EUA foi de US$ 375 bilhões em 2017, sendo o principal impulsionador do PIB chinês pela ótica do setor externo.

Uma redução no crescimento das exportações da China, além de afetar os números do PIB do país, causaria uma profunda e negativa reação em cadeia não apenas em todo o seu poderoso setor industrial, como também nas redes de fornecedores, de transporte, de peças de reposição, de matéria-prima, de logística etc. A economia da China é fortemente dependente do setor industrial exportador, tendo crescido em torno dele. Uma redução nas exportações para os EUA alteraria todo este desenho, de modo que as indústrias (e suas redes de apoio) teriam de ser redimensionadas e rearranjadas visando a um novo mercado consumidor que substituísse (ao menos em parte) os americanos. 

Como esse mercado teria de vir da população interna do país, e dado que ela é muito mais pobre que a americana, é óbvio que preços, receitas e lucros teriam de cair.

Essa transição seria dolorosa e, obviamente, traria grande insatisfação dos chineses em relação ao seu governo.

Mas há também outro ponto igualmente importante: uma redução nas exportações também aceleraria a já acentuada queda no volume de reservas internacionais do país, as quais já caíram 30% desde as máximas alcançadas em 2014.

E isso geraria um ciclo vicioso: uma redução nas reservas internacionais da China irá acentuar a saída de capitais do país (que já está acontecendo); essa saída tende a levar à imposição de mais controles de capitais, o que gera três efeitos: menor crescimento econômico, aumento nos juros da dívida, e o risco de desvalorização do renminbi.

Esses três efeitos já ocorrerem em 2018, como comprovam os hyperlinks acima.

Em suma, para a China, uma guerra comercial seria devastadora para seus principais indicadores macroeconômicos. Para os EUA, seria negativa, mas para a China seria um desastre.

Os EUA exportam muito pouco em relação ao seu PIB (apenas 11%), de modo que qualquer ameaça que leve a um acordo para aumentar suas exportações é vantajosa. Sim, uma guerra comercial pode gerar custos mais altos de bens e serviços para os americanos, mas a realidade é que a China exporta desinflação para os EUA, e as expectativas inflacionárias nos EUA estão caindo, e não subindo.

Ou seja, a ideia de que ambos os lados seriam impactados de maneira igualmente negativa em caso de uma guerra comercial é simplesmente incorreta tanto do ponto de vista teórico quanto empírico.

Apenas palavras

Por tudo isso, o acordo anunciado entre EUA e China na reunião do G-20 nada mais é do que um "cessar-fogo condicional".

A China não tem intenção de garantir propriedade intelectual, nem de eliminar controles de capital e tampouco acabar com enorme interferência política sobre questões jurídicas. Já o anunciado aumento de importações de produtos americanos pela China provavelmente terá um impacto muito pequeno no superávit comercial do país.

Esse acordo, portanto, foi apenas uma pausa, e é de se imaginar que as ameaças tarifárias voltarão tão logo fique claro que não houve alterações. Pelo combinado, se a China não cumprir suas promessas em 90 dias, as tarifas anunciadas serão efetivamente implantadas em 25%.

As diferenças de interpretação no acordo entre os governos chinês e americano podem ser vistas em suas respectivas declarações oficiais. Os EUA dizem que a China irá mudar sua política em relação a controle de capitais, propriedade intelectual e segurança jurídica; já a China apenas diz que ambos irão "trabalhar junto". Os EUA afirmam que o acordo estará invalidado após 90 dias; a China não menciona nenhum prazo. Os EUA afirmam que as compras de produtos americanos pelos chineses irão aumentar em vários setores específicos da economia americana; já a China apenas fala sobre 'comprar mais produtos'.

O acordo, ademais, não altera as diferenças comerciais e políticas de ambos os países, e é muito similar ao fracassado acordo firmado com a China em maio, o qual não deu em nada.

Conclusão

Recomenda-se cautela, e não euforia. A China de fato tem muito a perder com uma guerra comercial, mas não é muito crível imaginar que ela adotará todas as exigências, especialmente as que envolvem a postura de seu governo. Se a China continuar injetando capital em seus setores financeiro e corporativo, isso será um sinal de que o acordo não tem nenhuma credibilidade para o governo chinês. E aí a guerra comercial poderá ser efetivamente iniciada.

Não se deve imaginar que este suposto acordo seja um catalisador que colocará a economia mundial novamente em seu modo de expansão. A inquietante realidade é que o acordo, por si só, não tem por que trazer nenhum estímulo para a economia global.

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Sobre o autor

Daniel Lacalle

É Ph.D. em economia, gestor de fundos de investimentos, e autor dos livros Escape from the Central Bank Trap

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