Economia
O Bitcoin foi o que impediu minha família de morrer de fome na Venezuela
Quando o mercado impede que o governo destrua tudo o que você tem
O Bitcoin foi o que impediu minha família de morrer de fome na Venezuela
Quando o mercado impede que o governo destrua tudo o que você tem
Nota do Editor
Não importa se você considera o Bitcoin uma moeda, um ativo altamente especulativo e de extremo risco, ou simplesmente um modismo temporário que irá desaparecer futuramente.
O fato concreto é que, hoje, o Bitcoin é uma ferramenta -- criada pelo livre mercado -- que possui a virtude de tornar as pessoas completamente independentes do sistema bancário convencional, o qual é controlado pelo governo.
E a importância disso não pode ser menosprezada: em países devastados por uma hiperinflação e sofrendo com severos controles cambiais impostos pelo governo -- o que praticamente impossibilita às pessoas converterem a moeda nacional em dólares para poder importar itens básicos --, poder recorrer ao Bitcoin pode significar a diferença entre preservar toda a sua poupança acumulada durante uma vida de trabalho ou perder completamente tudo em decorrência das políticas do governo.
Pode significar, em suma, a diferença entre continuar vivo e definhar.
E é isso o que está ocorrendo na Venezuela, um país cuja população -- uma minoria, é verdade, mas crescente -- está cada vez mais recorrendo ao Bitcoin para conseguir sobreviver (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). A Venezuela já é o principal mercado de bitcoins na América Latina.
No relato abaixo, um venezuelano que vive nos EUA -- e que prefere se manter no anonimato por motivos óbvios -- relata como o Bitcoin ajudou sua família a não ter sua riqueza financeira destruída pelo governo da Venezuela e, com isso, a não morrer de fome.
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Estou escrevendo isto em resposta a comentários que recebo quando tento explicar o que é o Bitcoin. Foram incontáveis as vezes em que pessoas pouco informadas já me repetiram que bitcoins são utilizados apenas por criminosos e lavadores de dinheiro.
Quero aqui rechaçar este mito e explicar como o verdadeiro potencial dos bitcoins é muitas vezes maior do que o mercado negro jamais poderá ser.
Sou venezuelano e moro nos EUA. Mas minha família -- meus pais e irmã -- mora na Venezuela. O Bitcoin não apenas está literalmente salvando minha família da fome, como também está lhes garantindo a liberdade financeira que lhes permitirá emigrar no futuro próximo.
Para aqueles que não estão bem informados sobre o que está ocorrendo na Venezuela, eis um brevíssimo resumo:
1. Um governo socialista incrivelmente incompetente está no poder desde 1999.
2. Com o intuito de financiar suas fantasias socialistas, esse governo passou a imprimir dinheiro sem parcimônia. Isso gerou uma hiperinflação avassaladora e a moeda perdeu todo o seu poder de compra.
3. Para evitar que a população se livrasse desta moeda hiperinflacionada e passasse a comprar moedas estrangeiras, o governo venezuelano a tornou inconversível: ele impôs severos controles cambiais, os quais tornaram impossível para as pessoas converterem a moeda nacional -- o bolívar -- em qualquer outra moeda estrangeira.
4. Assim, se você é um empreendedor e precisa importar algum bem de capital ou de consumo, você precisa da estrita aprovação da burocracia estatal para trocar a moeda nacional por dólares americanos.
5. Isso fez com que empreender ou mesmo administrar um simples comércio se tornasse praticamente impossível. Para continuar funcionando, você tem de ou comprar dólares no mercado negro -- a preços altíssimos, pois o vendedor não quer abrir mão de dólares em troca de uma moeda, o bolívar, extremamente hiperinflacionada -- ou subornar algum funcionário do governo para conseguir a liberação.
6. Quando os preços do petróleo caíram, o governo praticamente perdeu suas receitas, o que o fez intensificar ainda mais sua impressão de dinheiro, acelerando a hiperinflação. As estimativas são que a inflação de preços será de 1.800% em 2017.
7. Apenas de 2013 até hoje, a inflação acumulada está em 31.000%.
Foi em 2014 que a situação começou a ficar realmente péssima na Venezuela. Naquele ano, meu pai tinha uma oficina, até então bem-sucedida, de conserto de aparelhos de ar condicionado. Mas ele já pressentia que as coisas só iriam piorar dali por diante.
De início, pensamos em abrir uma conta bancária nos EUA e converter todos os nossos bolívares para dólares, enviando o dinheiro eletronicamente para lá. Mas isso se mostrou impossível por causa dos controles cambiais.
Como segunda hipótese, pensamos em recorrer ao mercado negro para converter todos os nossos bolívares em cédulas de dólar americano para então levar pessoalmente todo esse dinheiro em espécie para um banco americano. Mas havia vários problemas logísticos que impediam essa operação. Para começar, transportar fisicamente o dinheiro para fora do país era algo totalmente inseguro. Caracas é uma das cidades mais violentas do mundo. Sequestros de famílias que estão dentro de um carro parado no semáforo são corriqueiros e as pessoas são assassinadas apenas por causa de seus telefones celulares [neste artigo, há um vídeo de um assaltante sendo queimado vivo em público na Venezuela]. Para piorar, a polícia aeroportuária é totalmente corrupta e abertamente ladra, de modo que nosso dinheiro poderia facilmente ser confiscado.
Por fim, pensamos apenas converter nossos bolívares em dólar no mercado negro e manter esses dólares em casa. Mas isso também gerava dois problemas: o preço dos dólares no mercado negro e a insegurança de manter esses dólares em casa. Não só a polícia do governo pode fazer batidas, como também assaltantes podem fazer arrastões.
Este era o cenário.
Em 2014, o Bitcoin ainda era uma tecnologia muito recente, e toda a minha família ainda era cética quanto a ele. Mas não havia nenhuma outra alternativa. Foi então que começamos a comprar.
E isso nos salvou.
Adiantemos agora para 2017. A economia da Venezuela está morta. Meu pai perdeu sua oficina de ar condicionado (pois o povo não tem renda para isso) e as pessoas da vizinhança -- que eram de classe média e classe média alta há apenas alguns anos -- mal conseguem comer uma vez por dia.
Porém, minha família, graças à contínua subida do preço do Bitcoin de 2014, se tornou parte de uma minoria afortunada que ainda tem condições de comprar comida, de ajudar a alimentar seus vizinhos, e de potencialmente emigrar para outro país no futuro. Em meados de 2014, um bitcoin custava 40 mil bolívares. Hoje, custa 36,4 milhões de bolívares, aumento de quase 90.000%, o que protegeu minha família da hiperinflação.
Como funciona
Na Venezuela, há várias maneiras de as pessoas transacionarem o Bitcoin.
Na mais tradicional, você transfere bitcoins, via smartphone, para um vendedor e ele então lhe repassa bens de consumo essenciais.
Outra alternativa é você transferir bitcoins para uma pessoa em troca de bolívares em espécie. Isso é muito comum. Imagine, por exemplo, um mecânico que passou o dia inteiro consertando carros em troca de 2 milhões de bolívares. Ele sabe que, no dia seguinte, esse dinheiro já não valerá muito. Logo, ou ele gasta imediatamente esse dinheiro ou ele o troca por bitcoins. Seu vizinho, por sua vez, possui bitcoins e quer vender um pouco em troca de bolívares, pois tem de pagar suas contas e comprar comida nos supermercados estatizados (mesmo porque o bolívar é a única moeda de curso legal na Venezuela). Logo, esses dois irão transacionar e o mecânico não mais terá um dinheiro que perderá poder de compra no dia seguinte.
Também outra alternativa é você transferir bitcoins para uma pessoa em troca de dólares em espécie e então usar esses dólares no mercado negro para conseguir muito bolívares, com os quais irá comprar bens essenciais, como comida. Na Venezuela, o dólar em espécie no mercado negro é mais caro que um dólar em Bitcoin (pois a demanda por dólares no mercado negro é maior). Sendo assim, muitos venezuelanos ganham dinheiro com essa arbitragem: vendem dólares no mercado negro por 10.000 bolívares (número puramente ilustrativo), utilizam 7.500 bolívares para comprar um dólar em bitcoin e então direcionam os 2.500 bolívares de lucro para comprar bens perto da fronteira da Colômbia, principalmente comida.
Ou então você pode fazer como é tradicionalmente feito nos outros países: trocar bitcoins por bolívares nas casas de câmbio virtuais (na Venezuela, as mais populares são Localbitcoin, Cryptobuyer e Surbitcoin).
O fato é que o Bitcoin dá a qualquer pessoa a capacidade de transacionar livremente e de se proteger contra governos corruptos, incompetentes e destruidores de riqueza. Se os cidadãos da Venezuela tivessem convertido apenas uma pequena quantia de sua poupança em bitcoins, isso já teria representado uma proteção incrível contra as destruições do governo.
Conclusão
É claro que o Bitcoin, por si só, não vai tirar nenhum venezuelano da pobreza. Afinal, ele está imerso em uma economia devastada pelo governo, na qual o simples ato de produzir, empreender e comercializar foi criminalizado. Assim, não há como criar riqueza. Consequentemente, não há como cada cidadão usufruir esta riqueza que não foi criada.
O que o Bitcoin pode fazer, e de fato fez e continua fazendo, é evitar que o governo destrua tudo o que cidadão conseguiu acumular após uma vida de trabalho; é possibilitar que as pessoas ao menos consigam guardar sua riqueza em uma unidade de conta e reserva de valor que não pode ser destruída pelas políticas do governo; é, em suma, dar a liberdade de as pessoas transacionarem utilizando um meio de troca não deturpado pelo governo.
Pode até ser que o Bitcoin desapareça no futuro. Porém, para mim, o que importa é que, no presente, ele salvou minha família.
Em um mundo de 6 bilhões de pessoas, a maioria das quais não tem acesso ao sistema bancário -- ou mesmo não são aceitas por ele -- e cada vez mais governos atacam direitos humanos básicos, invadem nossa privacidade e inflacionam suas respectivas moedas, o Bitcoin pode não ser a salvação que queremos, mas é a de que precisamos no momento.
Minha família na Venezuela é a prova disso.
Por fim, quanto à alegação de que o Bitcoin é usado por criminosos, ela é inócua, pois o dinheiro em espécie também é. Aliás, sempre foi. E o fato é que os vários e possíveis usos legítimos do Bitcoin superam em muito eventuais usos com intenções maléficas.
Os benefícios do Bitcoin só podem ser realmente apreciados por quem teve sua vida literalmente salva por ele.
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