Filosofia
Liberalismo e bem-estar geral: um diálogo com a esquerda
O artigo vencedor do concurso IMB
Liberalismo e bem-estar geral: um diálogo com a esquerda
O artigo vencedor do concurso IMB
Nota do Editor
O artigo a seguir foi o vencedor do concurso de artigos feito pelo IMB por ocasião de sua V Conferência de Escola Austríaca. As opiniões do autor não necessariamente refletem as opiniões do Instituto Mises Brasil.
_______________________________
Muitos pensam existir uma correlação direta e obrigatória entre ser uma pessoa boa e ser de esquerda. Segundo esse entendimento, se você é uma pessoa justa e solidária, que se preocupa com o próximo -- e em especial com as minorias e os mais pobres --, você precisa pertencer à esquerda, que seria o único campo político que se fundamentaria sobre essa preocupação.
Tal correspondência entre ser "do bem" e ser de esquerda significa, ainda, a vilificação de qualquer outra posição política: quem se vê em outro campo político é porque é, no mínimo, indiferente às agruras por que passam os seus semelhantes.
Este artigo critica essa visão a partir da perspectiva do liberalismo[1]. Como se demonstrará, o liberalismo também visa ao bem dos demais, porém o faz por mecanismos distintos. Os exemplos demonstrarão, ainda, que mesmo algumas das bandeiras ditas da esquerda tornam-se, em verdade, mais bem defensáveis quando fundamentadas sobre princípios do ideário liberal.
Argumenta-se, portanto, que quem se preocupa com o bem real do próximo verá, no liberalismo, ideário mais fundamentado e mais eficiente para a consecução desse fim.
Espera-se que, com esse artigo, dirimam-se desentendimentos sobre a relação entre liberalismo e bem-estar geral; e espera-se, ainda, que pessoas que se identificam automaticamente com a esquerda possam reconhecer, no ideário liberal, maior compatibilidade com a sua visão do mundo.
Liberalismo e bem-estar
Assim como outros ideários, o liberalismo visa ao bem-estar geral; no dizer de Mises, "historicamente, o liberalismo foi o primeiro movimento político que almejou a promoção e o bem-estar de todos, e não o de grupos especiais"[2].
Não se trata de dizer, no entanto, que o liberalismo proponha um plano central para a implantação do bem-estar de todos. Em realidade, reside aqui uma das maiores distinções entre o liberalismo e o ideário de esquerda.
Duas formas de organização
As organizações e ordens que se verificam no mundo podem-se dividir, segundo Friedrich Hayek, em dois tipos[3]. De um lado, existem as organizações artificiais, aquelas que criamos deliberadamente, racionalmente, para a consecução de determinado fim. Um exemplo desse tipo de organização é uma escola, por exemplo, criada racionalmente com funções e processos para o provimento de educação a crianças.
De outro lado, existem estruturas que, muito embora sejam bem ordenadas, não são produto de um planejamento deliberado. Um exemplo disso é a linguagem. Sem dúvida, a linguagem é fruto da ação humana, sendo resultado das infinitas interações e transformações que sofreu em sua utilização diária ao longo de séculos; mas ela não deve sua ordenação ao fato de que pessoas a desenharam deliberadamente. A linguagem é um fenômeno espontâneo, que, embora seja ordenado, não conta com planejamento central.
Em sua busca pela promoção do bem-estar geral, a esquerda tende a privilegiar organizações do primeiro tipo, em que entes centrais planejam e executam planos de forma deliberada e racional. O liberalismo, por sua vez, argumenta que as ordens espontâneas são mais eficientes e trazem menos riscos aos indivíduos.
Dos princípios do liberalismo à ordem espontânea do mercado
O liberalismo inicia-se com o princípio básico da liberdade individual[4], o que inclui a liberdade de expressão, a de contratar e de se relacionar com quem bem entender (desde que com mútuo consentimento), e a de possuir propriedade privada.
Quando essas liberdades são garantidas, as pessoas começam a produzir, a inovar, a aprimorar suas propriedades, a contratar e a trocar com outros indivíduos. Logo se verifica, assim, uma dinâmica de trocas que envolve milhões de pessoas, em cidades e países diversos; e essa dinâmica é tão ordenada que pode parecer que alguém a coordena -- que há burocratas, ou um computador central, que orientam todas as ações dos indivíduos na economia.
Como se sabe, no entanto, cada indivíduo está agindo conforme suas próprias preferências (sejam egoístas, sejam altruístas); a ordem que verificamos nessa dinâmica de trocas não é, portanto, resultado de criação deliberada, mas sim uma ordem espontânea, que emerge como efeito colateral das inúmeras ações dos indivíduos e de suas relações no dia a dia.
A essa dinâmica de trocas em constante movimento o liberalismo chama de mercado.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a distinção entre o liberalismo e os ideários de esquerda refere-se, sobretudo, aos meios pelos quais o bem-estar de todos possa, e deva, ser alcançado. A esquerda costuma privilegiar ações centralizadas e planificadas, normalmente pelo uso do estado; e o liberalismo costuma preferir a ordem espontânea que emerge com a livre-interação e a livre-contratação pelos indivíduos no mercado.
Direitos naturais e o papel do estado
A esquerda costuma ver o estado como o principal promotor do bem; qualquer problema social deve ser objeto de solução pelo estado, comumente por meio de novos programas sociais e novas leis, que devem ou permitir, ou proibir, toda e qualquer ação. Essa visão implica, ainda, que os direitos dos cidadãos -- como à vida, à segurança, ou à propriedade -- somente existem porque são conferidos pelo estado. A esquerda faz parecer que os indivíduos devem agradecer ao estado, ou à constituição, por terem direitos.
Na perspectiva do liberalismo clássico, essa visão representa erro lógico -- uma inversão entre precedente e consequente. O estado nada mais é do que uma organização social construída por cidadãos, para os propósitos definidos por estes mesmos cidadãos. As pessoas têm direitos naturais, independentemente do estado; e, se constituem o estado, é porque acreditam que essa seja uma via para a garantia desses direitos. O estado existe para as pessoas, e não as pessoas para o estado.
As ineficiências da intervenção do estado
É comum que seres humanos se revoltem com determinados problemas sociais. Veja-se, por exemplo, o caso de alguém que esteja doente, mas não tenha recursos para contratar o tratamento. Essa situação é indesejável, e indignar-se com isso não é reação exclusiva de nenhum campo político. A diferença de visão no espectro político inicia-se, no entanto, no debate sobre a maneira pela qual o problema deva ser resolvido.
A esquerda costuma justificar intervenções estatais com base nas chamadas falhas de mercado; o que raramente faz, no entanto, é cotejá-las com as falhas de estado. Note-se que o liberalismo não diz que o livre-mercado é perfeito; diz apenas que é melhor do que a ação centralizada do estado.
Em seu clássico Economia em uma Única Lição, Henry Hazlitt alerta para a consideração central de qualquer análise econômica: toda intervenção na economia provoca efeitos não-intencionais, em especial em outros grupos e ao longo do tempo.
Veja-se o seguinte exemplo. O estado brasileiro decidiu que o setor automotivo nacional fosse protegido por meio de barreias à importação. Com isso, reduzem-se as importações de automóveis; com essa redução, as empresas nacionais sofrem menos competição; com a competição reduzida, os automóveis disponíveis no mercado tenderão a ser mais caros e de menor qualidade. A política de proteção a um setor termina, assim, por prejudicar um número muito maior de pessoas, que são consumidoras no mercado, e que ganhariam com os preços baixos e a qualidade proporcionados por maior competição no setor.
Veja-se outro exemplo. Imagine-se que o estado imponha regulação obrigando empresas de telecomunicações a oferecer acesso gratuito à internet em regiões remotas do país. As antenas que as empresas deverão instalar aumentarão seu custo de operação; como elas não desejam reduzir seu lucro, farão o máximo para repassar o custo ao preço dos consumidores que pagam pelo serviço. Os consumidores -- inclusive os mais pobres --, passarão a pagar mais pelo mesmo serviço, para poder bancar a cortesia oferecida pela regulação. E ainda que o estado ofereça algum tipo de subsídio para a compra das antenas, deve-se lembrar que o estado não produz riqueza; tudo o que tem é retirado dos entes privados via cobrança de impostos[5]. O estado está, assim, retirando de uns (inclusive dos pobres) para dar para outros. Acaso isso é justo?
A esquerda raramente faz análises que levem em consideração os custos e os trade-offs envolvidos; se visa a ajudar determinado setor -- para, por exemplo, preservar empregos --, parece não querer acreditar ser possível que a medida possa prejudicar outro setor. A esquerda contenta-se com a pureza de suas intenções.
Afora o problema apontado, intervenções econômicas exigem que façamos considerações de ordem ética. É justo, por exemplo, que os consumidores (inclusive os mais pobres) tenham de arcar com automóveis mais caros para a proteção dessa indústria? E, principalmente: quem, no estado, deve deter o poder de fazer esse tipo de escolha entre beneficiados e prejudicados, entre vencedores e perdedores? Acaso alguém deveria deter esse poder?
A intervenção do estado na economia, quando logra amenizar um problema, o faz à custa da criação de outro problema; se melhora a situação de um, termina por prejudicar a de outro.
O liberalismo costuma ser, portanto, receoso das consequências não-intencionais de toda intervenção econômica.
A ação estatal e o risco da tirania
A esquerda aponta que indivíduos agindo no livre-mercado -- como empresários -- têm vícios; esses mesmos indivíduos, caso virem funcionários públicos, no entanto, sofrem metamorfose: tornam-se perfeitos. A esquerda costuma assumir que os burocratas que agem em nome do estado têm os pré-requisitos para planejar e implantar o bem-estar geral.
No dizer de Vito Tanzi, muitos assumem que "a intervenção do estado para corrigir as falhas de mercado é intrinsecamente benevolente e que o estado é capaz de corrigir essas falhas administrativamente. Os policy makers que agem pelo estado são confiáveis, sábios e competentes agentes dos eleitores. Eles têm a sabedoria de Salomão, o conhecimento do Google e a honestidade dos santos"[6].
O liberal, no entanto, é cético quanto à ação estatal, porque a implantação do bem-estar geral demandará concentração de poder e de riqueza no estado. Essa concentração reduz o poder da sociedade, e pode torná-la refém das elites que controlam o estado. E se os políticos e os burocratas voltarem-se contra nós? E se aumentarem os impostos demasiadamente? E se retirarem dinheiro das áreas prioritárias para aumentar os seus próprios privilégios? E se começarem a fechar o regime, e limitarem a nossa ação? E se implantarem censura? E se assassinarem opositores?
Por conta dos princípios de liberdade mencionados anteriormente, os liberais são cautelosos e desconfiados do poder; e, em especial, desconfiados de pessoas que querem deter poder. O liberalismo não é indiferente à pobreza e à necessidade de bem-estar; apenas entende que o estado traz riscos demasiados à liberdade individual, e por isso prefere soluções menos arriscadas, menos centralizadas, com menos regulações, ainda que pareçam sub-ótimas quando comparadas a um modelo hipotético e perfeito da realidade.
Atuação indireta pelo estado
Não há consenso entre liberais sobre o tamanho ideal do estado. Alguns defendem a sua extinção, ou ao menos a não-participação voluntária; outros entendem que o estado deva prover serviços mínimos, como segurança pública e justiça; e ainda outros defendem que o estado deva financiar alguns outros setores básicos, como saúde e educação, àqueles que não podem pagar.
Por conta das ineficiências e dos riscos trazidos pelo estado, no entanto, liberais tendem a concordar quanto à diminuição da ação direta pelo estado. Ainda que se queira que pessoas tenham acesso a determinado serviço público, isso não significa que o estado deva provê-lo diretamente.
Por exemplo, imagine-se que queiramos ofertar alimentos a pessoas em extrema miséria. Isso não significa, no entanto, que o estado deva ele mesmo produzir comida e entregar às pessoas. Pode-se proceder, por exemplo, como o bolsa-família, em que simplesmente se entrega o dinheiro diretamente nas mãos de quem precisa. Ou seja: uma coisa é o valor que queremos agregar à sociedade; e outra coisa é a forma de provimento desse valor.
Em geral, pessoas de esquerda costumam concordar com a eficiência da transferência de dinheiro no caso do bolsa-família; o curioso, no entanto, é que elas parecem não aceitar isso quando se fala em saúde e educação. Imaginemos o que seria o bolsa-família se ele seguisse a lógica da saúde, por exemplo, em que tudo -- desde os prédios dos hospitais, passando pelos equipamentos e gestão de pessoal -- é estatal.
Nesse caso, teríamos fazendas públicas, estoques públicos, centros de distribuição públicos; concursos para agricultores públicos, estoquistas públicos e atendentes públicos; licitações públicas para a manutenção de todos os ativos do programa; escritórios públicos de auditoria e controle; escritórios públicos de apoio (administração, contabilidade, informática) para suportar toda essa operação; e assim por diante.
Teríamos, por fim, uma enorme estrutura burocrática, ineficiente e cara.
Além disso, a entrega direta de alimentos pelo estado prejudica os mercados locais de alimentos, pois dificulta o cálculo e a previsão de demanda que os empreendedores devem fazer para planejar seus investimentos. Ao entregar o dinheiro às pessoas, no entanto, o estado evita essa distorção, e permite que as pessoas continuem agindo nas mesmas estruturas de mercado.
Deve-se considerar ainda que, com a entrega direta de alimentos, o beneficiário não tem qualquer poder; se ele não gostar da qualidade dos produtos, por exemplo, a quem irá recorrer? Como o estado monopoliza o programa social, não haveria alternativa.
No caso da transferência em dinheiro, no entanto, ocorre empoderamento do beneficiário; ele mantém o seu poder de consumidor no mercado, podendo optar pelo melhor -- e mais barato -- fornecedor de alimentos de sua região.
Direito de escolha e paternalismo
A esquerda costuma aprovar o modelo de provimento do bolsa-família; mas, comumente, não aceita o provimento em dinheiro quando se trata de saúde e educação. Ao liberal isso não parece racional nem justo, e entende que se deva atentar ao que prefere, de fato, a pessoa que receberá o serviço.
Será que a pessoa vivendo a aflição da doença está preocupada em ser curada em um hospital público ou privado? Será que lhe importa o que pensa o sindicato dos médicos? Será que lhe importa se tal política é "neoliberal" ou "privatizadora", de que muitas vezes se a acusa?
A visão liberal tende a responder negativamente essas perguntas; mas suponhamos que haja pessoas que prefiram, de fato, ser atendidas em hospitais estatais. Não há problema; basta que se confira, a todos, o direito de escolha. Quem preferir poderá continuar sendo atendido em um hospital estatal; mas a escolha dessa pessoa não deve obstruir a escolha de outra pessoa que, por exemplo, poderá preferir receber o valor em dinheiro e contratar um plano de saúde privado.
Por fim, o liberal apontará, na visão da esquerda, certa tendência paternalista de arrogar-se saber o que é melhor para os demais. Em vez de empoderar as pessoas e deixá-las fazer as próprias escolhas, a esquerda parece preferir que burocratas definam o que é melhor para a vida dos cidadãos.
Liberalismo e pautas da esquerda
A esquerda costuma imaginar que a defesa de certas pautas -- como casamento homossexual, legalização das drogas, redução da violência policial -- são de sua exclusiva preocupação. De fato, determinados grupos restringem sua adoção do liberalismo ao campo econômico, mantendo-se reacionários em pautas comportamentais. A visão do liberalismo que costuma prevalecer, no entanto, defende as pautas liberais de maneira geral, mesmo as comportamentais. Veja-se abaixo como algumas pautas comumente defendidas pela esquerda podem ser abordadas por um viés liberal:
Casamento homossexual. Na visão liberal, qualquer casamento deveria ser possível, pois o estado não deve regular nenhum tipo de casamento, nem mesmo o heterossexual. Casamento e relações sexuais são assuntos privados, e desde que ocorram entre adultos com consentimento, não há intervenção justificável por terceiros. O que o estado deve preservar é somente o contrato quanto às consequências jurídicas da união, como divisão de bens.
Legalização das drogas. O estado não deve regular o que o indivíduo faz com o seu próprio corpo. É claro que há debates sobre as maneiras de se legalizar, o gradualismo da mudança, e assim por diante. De todo modo, na visão liberal, o indivíduo deve ser sempre livre para escolher.
Redução da violência policial. A violência policial é caso grave de violação da liberdade individual; não há grande diferença de visão aqui. O que muitos liberais notam, no entanto, é que a esquerda parece preocupar-se mais com a violência policial do que com a violência em geral na sociedade. Para o liberal, o indivíduo que cometeu o ato de violência deve ser devidamente responsabilizado e punido, independentemente de quem seja.
Terras indígenas e favelas. O direito à propriedade privada é fundamental na visão liberal. A esquerda costuma ter preconceito com o conceito de propriedade privada porque costuma pensar no grande empresário; mas se esquece que esse direito vale, igualmente, para as terras indígenas e as favelas, por exemplo. Os princípios liberais valem para o rico e para o pobre, para a maioria e para a minoria. Ações do estado que visem a, por exemplo, construir hidrelétricas em terras indígenas sem o consentimento de seus donos seriam inaceitáveis numa perspectiva liberal da propriedade privada. Não há interesse nacional que se deva sobrepor ao interesse do dono da propriedade privada. De igual maneira, não há por que não conceder títulos de propriedade a moradores de favela e outras formas de "ocupação". Não é função do estado acumular propriedades.
O estado na periferia. A esquerda almeja defender a periferia, mas não leva em consideração todo o prejuízo da ação estatal nessas regiões. O estado violenta o direito à propriedade privada, com desapropriações e restrições no acesso à propriedade; fornece péssimos serviços em saúde, educação e transporte; criminaliza pessoas em relação a atos que nem deveriam ser ilegais, como uso de drogas; e age de maneira paternalista, assistencial, em vez de empoderar as pessoas por meio da redução de impostos e redução do tamanho do estado. Aqui alguém poderia objetar, referindo que o que se quer é um estado que aja com justiça e eficiência. Como se explicou acima, no entanto, o estado carrega consigo os riscos da tirania, e a melhor formar de proteger a sociedade é reduzindo o tamanho do estado.
Vendedores ambulantes. A esquerda costuma-se revoltar quando vê a polícia confiscando produtos de ambulantes. Ocorre, no entanto, que isso é apenas o resultado esperado da intervenção estatal na economia, da regulação do mercado. Como se mencionou, o estado traz esses riscos, e a opressão estatal sobre os pobres ambulantes é mais uma consequência não-intencional de sua intervenção na economia. Caso se retirem as regulações, reduzam-se as barreiras, e deixem-se livres os caminhos para o empreendedor, restaria desimpedida a livre-iniciativa dos vendedores ambulantes. O liberalismo entende que o estado não deve atrapalhar pessoas que queiram empreender, trabalhar e progredir na vida.
Direito de defesa. Infelizmente, existem pessoas que não respeitam a liberdade individual de outras. O direito de defesa, com todos os meios necessários -- inclusive com arma de fogo --, é basilar para muitos liberais, ainda que muitos defendam uma regulação mínima do porte de armas. Note-se que o direito de defesa pode ser importante para a sobrevivência em meio a problemas que a própria esquerda identifica em nossa sociedade; se vivemos em uma cultura do estupro, por exemplo, é importante que mulheres tenham mais meios de defesa à sua disposição.
Educação sexual, escola sem partido e outros temas educacionais. Numa visão liberal, em que a educação não seria provida de maneira direta pelo estado (mas talvez financiada pelo estado, por meio de transferências diretas de dinheiro ou de vales-educação), esse problema nem existiria. Os pais colocariam seus filhos nas escolas que preferirem, pelos motivos que desejarem.
Legalização do aborto. Este é provavelmente o tema mais divisivo dentre os liberais. Por um lado, uns entendem ser o direito ao aborto parte do direito da mulher sobre o próprio corpo; por outro lado, outros entendem que o feto é uma vida e, portanto, ele próprio teria direito à preservação de sua vida. Há, ainda, os que entendem que o aborto deveria continuar proibido, porém com penas mais brandas. Não há consenso algum, e liberais de opiniões distintas convivem com essa diferença.
A humildade e a vantagem ética do liberalismo
Como afirmou Mises, "o liberalismo não é uma doutrina completa nem um dogma imutável"[7]. O liberalismo não propugna a perfeição, nem a realização de sonhos utópicos; apenas apresenta ideias e modelos de organização social que se provaram na prática como de menos riscos e menos conflitos à vida em sociedade.
Na ordem liberal, os riscos são menores por conta de seus princípios fundamentais e por conta da ordem espontânea do mercado, que prescinde de centralização e de autoridades burocráticas. Os conflitos, por sua vez, são reduzidos porque o liberalismo propõe o respeito absoluto à liberdade individual; o liberal não se opõe a nenhum arranjo elaborado por outros indivíduos, desde que ele não seja coagido a participar contra a sua vontade.
A visão liberal do mundo apresenta, portanto, maior tolerância e respeito à diversidade do que qualquer outra ordem; de fato, ela é tão livre, mas tão livre, que alguém pode até ser socialista dentro dela, bastando juntar os amigos em uma propriedade comunal e dividir a renda igualitariamente -- só não pode coagir ninguém a sê-lo também[8]. Em vez de coação, deve-se fazer uso da liberdade de expressão para tentar persuadir os demais à sua visão de mundo -- no caso, evidentemente, de as pessoas livremente escolherem ouvir.
A ordem liberal, baseada no respeito às liberdades individuais, implica que o futuro será sempre desconhecido; implica que, na maior parte das vezes, a sociedade não trilhará o caminho dos nossos sonhos. É preciso, assim, ter a humildade de aceitar que não se pode impor aos demais um plano, um projeto de engenharia social, baseado numa construção unilateral feita por uma elite ou por um partido; os indivíduos devem ser respeitados em sua subjetividade.
Ao criticar o liberalismo, ou o mercado, a esquerda costuma compará-los com um mundo socialista idealizado; tal comparação é injusta. Não se pode comparar o real de um sistema com o ideal de outro. Em sua versão idealizada, o livre-mercado também seria o mundo perfeito de riqueza plena para todos. A crítica justa deve comparar real com real, ideal com ideal[9].
A asserção conclusiva do liberalismo é que, ao se proceder com a comparação justa, real com real, nenhum outro sistema de organização social demonstra-se mais viável, mais conducente ao bem-estar geral, mais resiliente, e menos arriscado, do que aquele baseado em seus princípios. E isso ocorre não porque os liberais ocupam-se de planejar centralmente a ordem perfeita, mas porque reconhecem o valor da ordem espontânea que emerge com a liberdade de ação dos indivíduos.
[1] Em especial, a partir do liberalismo humanitário, conforme definido por Jeffrey Tucker, em "Dois tipos opostos de libertário – qual você é?".
[2] Ludwig von Mises. Liberalismo.
[3] O argumento desta seção é todo baseado na distinção proposta por Friedrich Hayek. Law, Legislation and Liberty, v1. Chicago: The University of Chicago Press, 1983.
[4] Por conta do enfoque do artigo, não me pareceu necessário estender-me aqui para, por exemplo, abordar o princípio da não-agressão.
[5] A rigor, há três formas de financiamento do estado: inflação, impostos, ou dívida.
[6] Vito Tanzi. Governments vs Markets. New York: Cambride University Press, 2011. p. 4.
[7] Ludwig von Mises, Liberalismo, p. 35.
[8] Esse argumento é de Jason Brennan. Why not capitalism.New York: Routledge, 2014.
[9] Esse argumento é desenvolvido em Brennan, já citado, e em Jean-Fraçois Revel. Last Exit to Utopia. New York: Encounter Books, 2009.
Comentários (56)
Deixe seu comentário