O vazio da expressão “direitos humanos”
Dada a inexistência de um escopo amplamente aceito, qualquer projeto de governo pode ser incorporado pela Secretaria de Direitos Humanos, pois a corrente jurídica socialista fez com que essa expressão não significasse absolutamente nada.
Factualmente, ela se tornou um enfeite que pode ser colocado -- literalmente -- em qualquer contexto para decorar uma ideia, normalmente com consequências negativas.
Um pouco da história
Tecnicamente, os direitos humanos podem ser divididos nas chamadas "gerações". Teóricos conseguem pensar em inúmeras gerações. Contudo, historicamente, podemos dividir os autointitulados direitos humanos em duas correntes distintas sob o ponto de vista econômico.
A primeira, com origem na filosofia liberal, consiste basicamente em direitos negativos: o indivíduo tem o direito de que não tirem sua vida, não restrinjam sua liberdade, e não confisquem sua propriedade honestamente adquirida. Destes direitos negativos derivam-se direitos positivos, como liberdade de expressão, religião e associação; direito ao porte de armas; devido processo legal; direito de livre iniciativa; entre outros.
Um dos principais documentos que denotam essa geração é o Bill of Rights norte-americano, dentro do contexto histórico. No cenário internacional, essa geração foi incorporada parcialmente no International Convenant on Civil and Political Rights (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos).
A segunda geração de direitos humanos tem base filosófica explicada na obra Sobre a Questão Judaica, de Karl Marx. Escrita em 1843 e publicada em 1844, a publicação adquire especial relevância uma vez que o autor faz uma reflexão acerca da situação dos judeus na Prússia, sedimentando então a concepção de materialismo histórico.
Especificamente, encontra-se nessa obra a visão teórica de direitos dos homens pela perspectiva socialista de Marx, a qual se expandiria em um corpo bem definido e chegaria ao ápice ao servir de base para as constituições da União Soviética.
Conforme Marx expôs, segundo Joy Gordon:[1]
Nenhum dos chamados direitos do homem vai além do homem egoísta; o homem como ele é, na sociedade civil, é como um indivíduo se esquivando por trás de seus interesses privados e caprichos, e separado da comunidade.
No decorrer da obra, Marx propõe que os direitos são detidos por aqueles que o conquistam; ou seja, não se aplicam igualmente a todos. Além disso, eles são uma conquista de classe e, por isso, coletivos. Conhecidos como "direitos sociais", têm uma conotação de prestação positiva, os quais devem ser fornecidos por meio da alocação de recursos do estado: direito à saúde, à educação, à moradia, à alimentação etc. -- a lista é longa, pois a expansão (política) só depende da caneta do legislador.
Exemplos de positivação dessa geração encontram-se no artigo 6º da Constituição Federal Brasileira.
No cenário internacional, seria a Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) -- nunca ratificado pelos EUA.
Mas como foi que chegamos a esse ponto político em que os "direitos humanos" servem como embasamento para discursos que versam sobre basicamente qualquer proposição?
A transmutação
Para se analisar precisamente este fenômeno deve-se fazer uma investigação geral de sua formação.
Como assevera Paul Gordon Laurem,
Ideias de justiça e direitos humanos possuem uma longa e rica história. Elas não se originaram exclusivamente em uma única região geográfica do mundo, em um único país, em um único século, em uma única forma, ou mesmo em uma única forma política de governo ou de sistema legal.[2]
Tal proposição confirma a ideia de universalidade do conceito de direitos humanos, relacionando-se inclusive com a proposição jusnaturalista, que diz que o indivíduo possui direitos negativos pelo simples fato de existir e de ser dotado da faculdade da razão.[3]
As mais antigas das codificações dos direitos humanos incluem os seguintes textos: Sumerian Code of Ur-Nammu (c 2100-2050 BCE), codex of Lipit-Ishtar (c 1930 BCE), e o Akkadian Laws of Eshnunna (c 1770 BCE).[4]
Tais codificações foram seguidas pelo famoso Código de Hamurabi, que cobriu certos aspectos do que hoje chamaríamos de direitos humanos.[5]
De fato, o referido código apresentou um dos primeiros exemplos do direito à liberdade de expressão, presunção da inocência, direito de defesa e devido processo legal[6] -- todos hoje considerados a primeira geração de direitos humanos, de características individuais e majoritariamente negativas.
Mas a formação do conceito não ficou restrita tão somente à formação da sociedade ocidental. Também se verificou fenômenos parecidos na antiga China, com a filosofia de Confúcio,[7] e na antiga Índia, com o Arthashastra (~300 AC).
A ideia de jusnaturalismo emerge na Grécia Antiga desde Platão,[8] sendo reforçada por Aristóteles, o qual arguiu pela importância de que a lei positivada deveria se amoldar aos direitos naturais.[9] O Direito Romano manteve essa visão, como denotado pelo filósofo e jusdoutrinador Marco Túlio Cícero.[10]
O período Medieval, sobretudo na antiga Britânia, é marcado pela Magna Carta, que demandou a supremacia do "rule of law" sobre o direito do monarca soberano, abrindo caminho para os avanços ocorridos na Idade Moderna por meio da delineação de algo mais próximo do sistema que temos hoje.
Tais ideias se aprofundaram ainda mais no Iluminismo, inclusive com Hugo Grócio, considerado o "pai do moderno direito internacional". De forma surpreendente, exatamente no mesmo período, Huang Zongxi professava ideias similares na China.[11]
O capitalismo foi o responsável direto pelo surgimento e solidificação dos direitos humanos individuais,[12] conforme vislumbra Paul Gorden Lauren:
Na Europa, o declínio do feudalismo, com sua rígida hierarquia e economia monopolista, gradualmente abriu caminho para a ascensão de mercados livres e de uma classe média, fortalecendo, assim, o conceito de direito individual à propriedade privada. Este conceito, por sua vez, levou ao desejo de transformar os direitos econômicos pessoais em direitos políticos e civis mais amplos.[13]
Sem dúvidas, o principal justeórico da corrente liberal foi o filósofo John Locke, o qual argumentou primeiramente pela liberdade de religião e consciência, para então em sua clássica obra, Second Treatise of Government, datada de 1690, lançar as bases fundamentais da teoria hoje vigente. Segundo Locke, um direito humano é:
Um direito à perfeita liberdade, e a um incontrolável gozo de todos os direitos e privilégios da lei natural, igualmente com cada outro homem ou grupo de pessoas do mundo, tendo por natureza um poder não só para proteger sua propriedade -- vida, liberdade e patrimônio -- contra agressões, mas também para julgar e punir as violações da lei natural por outros.[14]
A Inglaterra foi o terreno fértil para a solidificação desses direitos, e a existência de textos como a Magna Carta de 1215, a Petição de Direitos de 1627, o Ato de Direitos de 1668 e o Ato de Sucessão de 1701. Contudo, a codificação mais notável dos direitos humanos liberais veio através da Bill of Rights, as dez primeiras emendas à Constituição Americana.[15]
No que concerne à segunda geração de direitos humanos, a União Soviética, durante sua existência, possuiu três Constituições, datadas respectivamente de 1924, 1936 e 1977. De acordo com Jean Morange,[16] as concepções de direitos nas mesmas foram concebidas sob orientação burocrática, não tendo, de forma alguma, o objetivo de permitir a cada um levar sua vida segundo o que lhe dita a consciência, mas sim favorecer sua participação na sociedade de economia socialista.
A Constituição Soviética de 1924 não trazia nenhuma menção aos direitos aplicáveis à sua população, limitando-se a usar o termo para denominar alguns dos direitos que usufruíam as repúblicas que formaram a sua União.[17] Os estados eram literalmente os únicos dotados de qualquer direito sob a primeira constituição socialista da história.
Erigida 12 anos mais tarde, a Constituição da União Soviética de 1936 (também conhecida como "a Constituição de Stalin"), ao contrário de sua antecessora, ganhou um capítulo específico para tratar da questão de direitos e deveres fundamentais dos cidadãos.[18]
Inaugurado pelo artigo 118, o Capítulo X da referida Constituição protegia o direito a um salário estabelecido de acordo com a quantidade e a qualidade do mesmo; direito ao descanso, estabelecido desde já no texto constitucional por meio de políticas como férias, atividades de lazer, clubes etc.; direito à seguridade social;[19] direito à educação; direito à igualdade de direitos concernentes às esferas econômicas, estatais, culturais, sociais e políticas; entre outros.
E, finalmente, estabelecia também uma breve lista de deveres a serem observados para a implementação desses direitos, que incluem o dever de disciplina de trabalho; respeito às regras socialistas; dever de proteger a propriedade do sistema soviético e dever militar universal.
Em 1964, um artigo intitulado La protection des droits des citoyens en U.R.S.S.,[20] escrito por M. S. Strogovitch, o membro da Academia de Ciências da União Soviética, descreveu o sistema de direitos que eram previstos no campo legal à população do referido país. Segundo o autor:
Os direitos dos cidadãos, direitos individuais (subjetivos) de acordo com o termo empregado na teoria do direito, não são considerados na URSS como concedidos pelo Estado, na medida em que ele pode, a seu critério, retirá-los. De acordo com a teoria comumente aceita, direito subjetivo nada mais é do que um reflexo do direito objetivo. Como consequência, para o Estado, e para a jurisprudência soviética, essa teoria é inaceitável, sendo antidemocrática por natureza.
Teórica e praticamente, os direitos dos cidadãos e a liberdade do indivíduo não existem na URSS -- existe apenas a expressão jurídica da situação que o trabalhador ocupa no seio da sociedade socialista.
Os direitos beneficiam o cidadão que confirma a lei, ao mesmo tempo em que seus deveres para com o Estado, para com a sociedade e para com os outros cidadãos constituem o estatuto jurídico do cidadão soviético, sua situação jurídica no Estado e na sociedade.[21]
Durante a guerra fria, ambas as visões do que eram Direitos Humanos para os EUA e a União Soviética inevitavelmente se conflitaram.
De um lado, a visão individualista buscava a consolidação da democracia liberal. De outro, a perspectiva da União Soviética puxava pelo completo desprezo pelos indivíduos, muitos confinados em campos de concentração (gulags) para que o regime conseguisse expandir a infraestrutura do país, já que a economia socialista soviética não era capaz de gerar crescimento econômico a partir de seu modelo.
A situação no Brasil
Desmembrada a questão histórica, como os juízes brasileiros resolvem hoje um conflito entre direitos advindos dessas gerações opostas de direitos humanos?
Quando esse tipo de conflito ocorre, as decisões da justiça nacional dão notável preferência aos direitos sociais.
Embora tenhamos o direito de sermos livres para trabalhar, sindicatos podem proibir estabelecimentos de abrirem aos domingos e os empregados de trabalhar.
Ainda que a Constituição defenda o direito de propriedade, movimentos terroristas como o MTST não apenas invadem propriedade privada, como ainda conseguem se manter com a posse de imóveis invadidos.
Ainda que tenhamos o direito de não dar satisfação aos outros sobre o que fazemos sem prejudicar terceiros, municípios não encontram dificuldades em restringir o que fazemos com nossas residências, terrenos e estabelecimentos.
A lista é longa e a justificativa para a supremacia dos "direitos" de segunda geração é sempre a mesma: preocupação social.
"Social" é a poderosa palavra que garante um passe-livre para qualquer causa política. Adicione o advérbio "socialmente" a uma frase, e qualquer expressão se torna mais "palatável":
- O transporte coletivo é necessário.
- O transporte coletivo é socialmente necessário.
Qual a diferença?
Palavras sem significado sempre foram a base dos discursos dos demagogos -- especialmente na filosofia que mais os gera: o socialismo.
Um exemplo interessante foi a participação de Dilma Rousseff nos debates das eleições presidenciais de 2010. Para que fosse mais fácil para a presidente exercer seu "pensamento" durante as falas, a mesma foi instruída a usar a palavra "sistematicamente" sempre que possível.
Essa palavra foi -- sistematicamente -- repetida centenas de vezes pela candidata em um mesmo debate. Veja o efeito:
- "Nosso governo vai investir em infraestrutura."
- "Nosso governo vai, sistematicamente, investir em infraestrutura."
Não é novidade que o socialismo seja a regra filosófica dos acadêmicos de direito no Brasil. Seja na corrente marxista, no ecoambientalismo, no latinismo etc., essa tendência acabou por trazer o "demagogismo" inerente a ela, e destruir uma das áreas mais importantes: a defesa do indivíduo, incorporada nos direitos humanos.
Assim, absolutamente qualquer coisa virou "direitos humanos", independente de sua base teórica histórica e suas filosofias.
E pior: a cada nova política, o fator de igualdade (formal, no sentido liberal) acaba se deteriorando. Consequentemente, as políticas não apenas causam divisões e conflito de demografias, como também estimulam o ódio, pois os indivíduos acuados tendem a votar em políticos populistas. Essa é a regra de conduta entre os socialistas.
Por tudo isso, é urgente resgatar o verdadeiro sentido dos direitos humanos. Neste (re)nascimento do movimento liberal/libertário no Brasil, eis aí uma bandeira pela qual se vale a pena lutar.
[1] GORDON, Joy. The Concept Of Human Rights: The History And Meaning Of Its Politicization. Brooklyn Journal of International Law. 23 Brooklyn J. Int'l L. 689. 1998,
[2] SHELTON, Dinah. The Oxford Handbook of International Human Rights Law. ISBN 9780199640133 Londres: OUP Oxford, 2013, tradução nossa)
[3] Especificamente no que se denota à filosofia jusnaturalista (tecnicamente objetivista) de Ayn Rand, e outros.
[4] SHELTON, op. cit., cap. II
[5] SHELTON, op. cit., cap. II
[6] CODE OF HAMMURABI. The Avalon Project. Disponível em: <http://avalon.law.yale.edu/ancient/hamframe.asphttp://avalon.law.yale.edu/ancient/hamframe.asp> Acesso em: 14 set. 2014
[7] Nome real Kong Qiu, estima-se que viveu na região hoje conhecida como China entre 551-479 AC. SHELTON, op. cit., cap. II
[8] PLATO. The Laws (2013, apud SHELTON, op. cit., cap. II).
[9] SHELTON, op. cit., cap. II
[10] CICERO, Marcus Tullius. The Republic and The Laws.Londres: OUP, 1998. (2013, apud SHELTON, op. cit., cap. II).
[11] STRUVE, Lynn. Huang Zongxi in Context: A Reappraisal of His Major Writings. Journal of Asian Studies, 1998. (2013, apud SHELTON, op. cit., cap. II).
[12] Importante ressaltar que autores marxistas consideraram os direitos humanos como uma "arma de guerra ideológica a serviço de uma classe social". Ver mais em MORANGE, Jean. Direitos Humanos e Liberdades Públicas. 5º Ed. Barueri – SP: Manole, 2004. p. 3
[13] (SHELTON, op. cit., cap. II, tradução nossa)
[14] Locke, John. Second Treatise on Government. Tradução Nossa.
[15] Lamentavelmente, o conceito de indivíduo não foi estendido a toda a população, e a escravidão continuou vigente até a Guerra Civil de 1861.
[16] MORANGE, Jean. Direitos Humanos e Liberdades Públicas. 5º Ed. Barueri – SP: Manole, 2004.
[17]UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS SOVIÉTICAS. Constituição da União Soviética de 1924. Traduzida para o Inglês. Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/Constitution_of_the_Soviet_Union > Acesso em: 17 de out. 2014
[18] UNIÃO DAS REPÚBLICAS SOCIALISTAS SOVIÉTICAS. Constituição da União Soviética de 1936. Traduzida para o Inglês. Disponível em <http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/36cons04.html#chap10> Acesso em: 17 de out. de 2014
[19] Em tradução ao inglês: "ARTICLE 120. Citizens of the U.S.S.R. have the right to maintenance in old age and also in case of sickness or loss of capacity to work. This right is ensured by the extensive development of social insurance of workers and employees at state expense, free medical service for the working people and the provision of a wide network of health resorts for the use of the working people."
[20] STROGOVITCH, M.S. La protection des droits des citoyensen U.R.S.S. In: Revue internationale de droit comparé. Vol. 16 N°2, Avril-juin 1964. pp. 297-306. Disponível em <http://www.persee.fr/docAsPDF/ridc_0035-3337_1964_num_16_2_13937.pdf http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/ridc_0035-3337_1964_num_16_2_13937> Acesso em: 17 de out. 2014.
[21] Ibid., des., tradução própria.
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