Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Economia

A perigosa relação entre a confiança no governo e o poder de compra da moeda

01/12/2015

A perigosa relação entre a confiança no governo e o poder de compra da moeda

Por mais paradoxal e contraintuitivo que pareça, está havendo uma escassez de dinheiro na Venezuela.  Em um país cuja inflação anual verdadeira está estimada em 800% e o dinheiro está sendo literalmente utilizado como guardanapo, várias instituições financeiras estão se vendo obrigadas a limitar os saques de dinheiro, pois a quantidade de cédulas está acabando.  Na prática, está ocorrendo um corralito venezuelano.

Como é possível que, justamente em um país cuja quantidade de dinheiro tenha aumentando exponencialmente e o dinheiro tenha chegado a valer menos que o papel em que está impresso, esteja havendo escassez de dinheiro?  Não seria uma aparente contradição que a oferta desmesurada de dinheiro coexista com uma demanda não suprida?

Desgraçadamente, não.

As hiperinflações não se caracterizam somente por uma explosão na quantidade dinheiro, mas também, e acima de tudo, pela expectativa de que o valor do dinheiro irá se desmoronar aceleradamente.  As causas desse desmoronamento são várias, mas o essencial é que a demanda pelo dinheiro como ativo financeiro desaparece.  As pessoas, as empresas, os investidores e os especuladores param de poupar em dinheiro e passam a fazê-lo por meio de outros ativos financeiros que não têm um valor nominal constante (como ações) ou em ativos reais (como imóveis). 

O ato de guardar dinheiro, portanto, deixa de ser efetuado em dinheiro e passa a ser feito por meio de outros bens ou ativos (no extremo, muitos produtores optam por consumir sua própria produção em vez de levá-la ao mercado para trocá-la por um dinheiro cujo valor afunda diariamente).  Consequentemente, o ato de se desfazer do dinheiro em troca de bens tangíveis se aumenta aceleradamente.  A demanda pelo dinheiro despenca.

No entanto, dizer que a demanda pelo dinheiro como ativo financeiro despenca não equivale a dizer que ninguém irá necessitar de dinheiro para nada.  As compras e vendas realizadas dentro da economia continuarão sendo intermediadas pelo dinheiro: é o que se chama de demanda por dinheiro com objetivo de transação.  Ou seja, quando necessito comprar algo, vendo alguns bens reais ou ativos financeiros que possuo e rapidamente compro aqueles de que necessito. 

No caso da Venezuela atual, um de seus vários problemas monetários é que essa demanda por dinheiro para transações nem sequer pode ser satisfeita, não obstante a gigantesca oferta de dinheiro na economia.  A razão disso é que, como dito acima, os vendedores de mercadorias não desejam se desfazer das mesmas em troca de quantidades de dinheiro que não planejam gastar de imediato.  Isso significa que se um comerciante possui mercadorias no valor de 10.000 dólares e, durante o próximo mês, planeja gastar apenas 500 dólares, ele não irá vender seu excesso de mercadorias de 9.500 dólares em troca de bolívares que se depreciam a um ritmo acelerado.  O comerciante só irá demandar bolívares para satisfazer suas transações de curto prazo, mas não para poupá-los. 

A única maneira de induzi-lo a vender a maior parte de suas mercadorias é lhe pagando um preço suficientemente alto como que para compensá-lo pela depreciação futura que se espera que irá ocorrer com o dinheiro.  Em termos mais técnicos: os preços de suas mercadorias à venda aumentarão até o ponto em que incorporem um bônus sobre a inflação futura esperada -- a qual, por se estar em meio a uma hiperinflação, será altíssima.

Consequentemente, em uma hiperinflação, os preços se multiplicam não em função do dinheiro que foi impresso, mas sim em função do valor que se espera que o dinheiro terá no futuro.  Por isso, os preços podem aumentar a uma taxa muito mais acelerada do que a taxa de aumento da quantidade de dinheiro, por mais volumosa que seja esta última. 

Imagine que um governo multiplica por 100 a oferta de dinheiro e que, como reação, os comerciantes multiplicam os preços por 10.000.  Nessas condições, poderá ocorrer a circunstância de que os cidadãos não terão dinheiro suficiente para fazer as mesmas compras que vinham fazendo antes do aumento de preços; ou seja, poderá haver carência de dinheiro para adquirir os mesmos bens que era possível comprar antes da inflação.

É isso o que está ocorrendo na Venezuela: a multiplicação da oferta de dinheiro deu lugar ao colapso de sua demanda como ativo financeiro e, portanto, a uma multiplicação dos preços muito superior ao aumento da oferta monetária.  Consequência?  O dinheiro tornou-se escasso para efetuar vários pagamentos que, antes da multiplicação da oferta monetária, podiam ser efetuados com normalidade.

A escassez de dinheiro na Venezuela não é uma prova de que o governo imprimiu pouco dinheiro, mas sim de que imprimiu em demasia.  Mais ainda: espera-se que vá imprimir muito mais.

Países "normais" também correm esse risco

A perda acelerada do poder de compra de uma moeda não é exclusividade de países cujos governos imprimiram muito dinheiro.  Ela pode acontecer com praticamente todo e qualquer país: basta que seu governo perca a credibilidade e descuide do orçamento.  O que irá variar é apenas a intensidade com que a moeda se desvaloriza.

Ao contrário do que ocorria quando a moeda era uma commodity (como o ouro) não controlada pelos governos, as moedas hoje são puramente fiduciárias.  Uma moeda fiduciária não é uma moeda de mercado, mas sim uma moeda governamental.  Se, por exemplo, o governo vigente é derrubado por uma revolução e espera-se que o governo seguinte não reconheça a moeda fiduciária atual como um instrumento para pagar tributos, então é evidente que estaremos diante de meros pedaços de papel de utilidade nula.  Ou seja, meros pedaços de papel que ninguém irá querer manter em seu patrimônio.

Caso a Grécia, por exemplo, tivesse saído da zona do euro e adotado uma nova moeda, seguramente o país sofreria uma hiperinflação -- como ocorreu com vários países latino-americanos em decorrência de sua crise da dívida na década de 1980.

Diferentemente do ouro, cujo valor independe dos ditames do governo vigente, o valor da moeda fiduciária depende majoritariamente da sobrevivência do regime político que a emite de maneira monopolística. 

Os países ocidentais estão muito longe de uma hiperinflação clássica, mas há um risco iminente: países cujos governos não mantêm um orçamento equilibrado -- e, consequentemente, vivenciam um aumento descontrolado da dívida pública -- estão colocando em risco a credibilidade e a solidez da economia.  À medida que os agentes econômicos, principalmente os investidores estrangeiros, esperam que o governo irá recorrer à inflação para seguir financiando seus déficits orçamentários, a confiança na moeda pode se esvair.  

Quando os déficits orçamentários do governo se tornam grandes e permanentes, ao ponto de que é impossível cortar gastos sem gerar convulsões sociais e tampouco é possível financiá-lo se recorrer a uma inflação de grande calibre, a demanda global pela moeda nacional cai, a taxa de câmbio dispara, todos os produtos importados ou que utilizam componentes importados se tornam inacessíveis para o cidadão comum, os preços de todos os produtos aumentam em ritmo crescente, e toda a dinâmica de uma hiperinflação ao estilo venezuelano (variando apenas a intensidade) é desencadeada.

Nem é necessário haver um grande aumento da oferta monetária; basta que o governo perca credibilidade ou que não controle seu orçamento. Isso pode fazer com que a demanda pela moeda desabe. 

[N. do E.: Nesse cenário, caso um rigoroso ajuste fiscal por meio do corte de gastos não seja feito, a única maneira de manter a demanda pela moeda nacional é elevando a taxa de juros a níveis estratosféricos, de modo a manter o interesse de investidores e especuladores em aplicações financeiras.

No Brasil, isso foi feito logo no início de 2003, quando, após a eleição de Lula, o câmbio disparou.  A SELIC foi elevada para 26,50% para conter uma inflação de preços que chegou a 17%. (Veja todos os detalhes aqui).  Isso garantiu uma taxa de juros real de 8,12%. 

Atualmente, com a inflação de preços acima de 10% e com a SELIC em 14,25%, a taxa de juros real está em "apenas" 3,85%.]


Sobre o autor

Juan Ramón Rallo

É diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.

Comentários (49)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!