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Economia

A lógica da ação e o ciclo da prosperidade

08/04/2015

A lógica da ação e o ciclo da prosperidade

Uma das principais discussões da filosofia se concentra no debate sobre até que ponto a mente humana é apenas um subproduto da realidade objetiva e, consequentemente, até que ponto devemos confiar na razão para a busca de conhecimento.

A visão predominante afirma que é na realidade objetiva que devemos buscar e comprovar todo o tipo de conhecimento acessível à mente, mesmo nas ciências sociais, de forma que qualquer teoria ou hipótese sobre o mundo ou sobre a mente deve estar amparada em dados empíricos.  

Assim, os empiristas e positivistas argumentam que os racionalistas, por apresentarem elaborações a partir de conceitos e noções sem qualquer vínculo evidente com a experiência, seriam dogmáticos, sendo suas elaborações incapazes de constituir um conhecimento cientificamente válido.

A seguir, algumas objeções a esse raciocínio.  O enfoque é mostrar que:

1) o "motor do conhecimento" se encontra na mente humana, sendo ele obtido, primordialmente, a partir do uso da razão;

2) é a realidade que se conforma com a mente a partir da ação humana; e

3) não há limites para o conhecimento humano e para o progresso, desde que sejamos livres para agir.

Epistemologia

Na história do pensamento, Platão nos traz a divisão entre o reino da mudança, que é aquele que trata do mundo das coisas sensíveis, e o reino do ser, que é aquele que trata do mundo das coisas puramente inteligíveis, imateriais, representadas na mente humana, local onde se processam as ideias, formas, categorias e conceitos derivados da realidade objetiva.

O que em comum têm esses dois mundos? E o que eles têm de diferente?

De diferente, notamos que o reino da mudança se processa na forma da estabilidade e regularidade das leis da natureza -- pelo menos, é o que percebemos pelos nossos sentidos até o presente momento da história humana na terra --, ao passo que o reino do ser se processa na mente humana de forma irregular e abstrata.

Em comum entre esses dois reinos, nota-se a forte presença da noção de movimento, seja pela percepção da regularidade dos eventos naturais, ou, no caso das coisas inteligíveis da mente, pela nossa capacidade de escolher e de compreender a intencionalidade da ação humana.

Não cabe aqui entrar na discussão sobre como surgiu a capacidade da mente de compreender a intencionalidade da ação humana. O fato é que ela existe e é uma verdade autoevidente[1].

Essa foi a grande contribuição de Ludwig Von Mises: a sistematização do fato de que a nossa mente funciona a partir da percepção de categorias da ação humana. Mises observou que:

Ação humana é comportamento propositado.  Também podemos dizer: ação é a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida.  Estas paráfrases podem esclarecer a definição dada e prevenir possíveis equívocos.  Mas a própria definição é adequada e não necessita de complemento ou comentário.

Mises compreendeu que a "ponte" entre a mente e a realidade está na compreensão da ação humana proposital e, portanto, na noção de movimento. Isso porque compreendemos o mundo a partir dos efeitos advindos de nossas ações propositais, que são motivadas pelas mais diversas intenções ou vontades humanas, chamadas de causas finais.

Essas causas finais são processadas na mente como categorias da ação humana, de forma que o funcionamento da mente é indissociável da percepção dessas categorias.

Perceba que todo objeto criado pelo homem está associado a alguma categoria da ação. Exemplo: dinheiro -> comprar e vender; cadeira -> sentar-se; talheres -> comer; quadros -> olhar, contemplar, refletir etc.

É impossível negar esse fato sem entrar em contradição. Podemos dizer, de forma resumida, que a mente funciona em termos de categorias da ação humana, que por sua vez são derivadas a partir da interação com a realidade.

Nesse sentido, não cabe falarmos que o conhecimento humano é independente da realidade objetiva ou da experiência sensível, isso porque a ação humana, desde os primórdios, sempre se deu na realidade objetiva.  E, se a mente apresenta categorias e conceitos derivados da ação, o conhecimento e a razão humana não podem ser completamente independentes dessa realidade -- o que, como veremos, está bem distante de dizer que todo o conhecimento vem da realidade objetiva, e que, portanto, estaria eternamente limitado por ela.

Mente x realidade

Para aprofundar o entendimento sobre a relação entre mente e realidade, é necessário buscar semelhanças entre esses dois "reinos" a partir da análise de categorias do entendimento. Podemos identificar que as categorias 'espaço', 'tempo' e 'causalidade' são perceptíveis pela mente humana tanto a partir do entendimento das regularidades dos eventos naturais do mundo externo (realidade objetiva), quanto a partir do entendimento sobre ação humana proposital.

Senão vejamos:

 - Espaço: o movimento de objetos, a regularidade dos eventos da natureza e a ação humana proposital ocorrem no espaço da realidade objetiva, porém o entendimento sobre essa regularidade e sobre a intencionalidade da ação somente pode ser processado pela mente;

 - Tempo: confunde-se com a percepção do movimento de objetos e da regularidade dos eventos naturais (exemplos: movimento dos astros, relógio do sol, movimento dos ponteiros de um relógio) e também com a passagem da ação humana intencional (exemplos: a percepção de presente se confunde com a ação realizada no momento, o passado é a lembrança da ação realizada, e o futuro é a consciência sobre a ação ainda não realizada);

- Causa e efeito: toda alteração ou movimento de um objeto na realidade objetiva pressupõe uma causa inicial, e toda ação humana pressupõe uma intenção ou causa final, concebida subjetivamente na forma de categorias da ação.

Como a realidade objetiva surgiu antes da mente humana, essas categorias foram incorporadas pelo homem a partir da interação da mente com a realidade ao longo da história da ação humana na terra.

Mas, se a mente funciona em termos de categorias da ação humana derivadas a partir da realidade, por que ela não está limitada pela realidade, mas ao contrário, é a realidade que está limitada pela mente humana?  Simples: porque conseguimos imaginar situações e contextos que não existem na realidade, apesar de serem construídos a partir da combinação de conceitos originalmente extraídos da realidade objetiva -- como, por exemplo, a possibilidade de o sol não nascer amanhã, de sairmos voando por aí como o "Super-Homem", de voltarmos e de avançarmos no tempo etc.

Todas essas são situações construídas a partir das regularidades da realidade objetiva, de categorias de ação pré-existentes, processadas e combinadas pela mente em torno da noção de ação intencional -- ou seja, em torno da capacidade humana de transformar intencionalmente a realidade objetiva em que vive.

Assim, conseguimos materializar conhecimentos e conceitos, antes inexistentes na realidade objetiva, por meio da ação humana proposital, tendo, como ponto de partida, combinações mentais de categorias da ação previamente existentes no mundo externo (realidade objetiva).

Outra forma de constatar esse fato é refletirmos sobre as coisas à nossa volta, criadas pelos humanos. Antes de se tornarem realidade, elas tiveram, necessariamente, de ser constituídas na forma de uma ideia. Neste sentido, podemos dizer que foi a realidade objetiva que se conformou com a mente por meio da ação humana intencional, no momento em que essa realidade foi alterada pela ação.

Porém, como tudo aquilo que é modificado deve ter a capacidade de ser algo além do que era, uma nova realidade objetiva é criada. Essa nova expansão da realidade pela ação agora apresentará novos conceitos, significados e, portanto, novas categorias da ação, que, se novamente absorvidas e combinadas pela mente humana, darão origem a novos conhecimentos e ações que possibilitarão uma outra nova expansão da realidade, num processo de retroalimentação sucessiva entre mente, ação e realidade.

Se analisarmos resumidamente o processo de surgimento do automóvel, por exemplo, podemos perceber que sua origem se encontra na vontade humana de se locomover e de transportar objetos de forma mais eficiente. Para isso, a partir de elementos da realidade objetiva (animais, árvores e formas presentes na natureza), o homem agiu, domesticou animais, criou a roda e as carroças. Com a combinação e evolução desses conceitos e com o surgimento de outras novas soluções, como a pavimentação de superfícies, surgiram as carruagens. A partir da combinação de carruagem e de máquina a vapor -- concebida originalmente no séc. XVIII para retirar com maior eficiência a água acumulada nas minas de ferro e carvão e para fabricar tecidos --, chegou-se ao conceito inicial de automóvel.

Note que as causas finais que deram origem à carruagem e à máquina a vapor são distintas, e que, a partir delas, uma nova realidade foi criada. Esse é apenas um dos incontáveis exemplos de como se dá a evolução material humana a partir de conceitos criados pela ação proposital, ou seja, a partir do entendimento e da combinação de categorias da ação previamente presentes na realidade objetiva.

Obviamente, o grande catalisador desse processo de expansão da realidade é o empreendedor. É ele quem cria novos conceitos, aplicações, soluções e produtos que darão origem a novas relações de causa e efeito, num processo cíclico de inovações potencialmente ilimitadas ao longo do tempo, possibilitando a evolução do bem-estar material de uma sociedade.

É por isso que intervenções governamentais que atrapalhem a possibilidade da ação empresarial, como regulamentações, controles de preços, burocracia, leis de propriedade intelectual e seus monopólios artificiais, entre outras mazelas estatais, irão distorcer a realidade objetiva e as possibilidades de ação empreendedorial, atrasando ou impedindo a evolução material de uma sociedade.

Disso tudo decorre que, além da fonte de conhecimento estar na mente, não há limites ao conhecimento e ao progresso humanos.  Eventuais limites seriam apenas contingentes, podendo suas fronteiras ser ampliadas conforme se materializem as possibilidades de alteração da realidade pelo homem -- as quais são infinitas.

Assim, podemos entender a evolução do conhecimento como o resultado da transformação da realidade em camadas, expandidas pela mente por meio da ação humana proposital.

Conclusão

Para que o mecanismo acima funcione em direção ao progresso, existe uma condição necessária a ser preenchida: a capacidade humana de agir conforme as suas intenções.

Em outras palavras, é preciso que a categoria da ação "liberdade" esteja presente em nosso dia-a-dia, sem obstáculos e barreiras artificiais impostas pelo governo.  São essas barreiras que impedem que novas realidades possam existir, quebrando assim o ciclo da prosperidade. 

 



[1] O "axioma da ação humana", postulado por Mises, é irrefutavelmente verdadeiro.  Trata-se de uma proposição autoevidente cuja veracidade lógica não pode ser negada.  Qualquer tentativa de negá-la resultaria em uma insolúvel contradição intelectual, pois dizer que "humanos não podem agir" já é em si uma forma de ação humana.  

Igualmente, ele se baseia na proposição autoevidente de que os humanos agem propositalmente para sair de uma situação de desconforto. Todo indivíduo que tentar negá-la por meio de qualquer ação entrará em contradição, acabando por confirmá-la. Por exemplo, ao tentar negar "o axioma da ação", um indivíduo necessariamente estará se utilizando de argumentos (ação meio) para atingir um objetivo ou um fim desejado, qual seja: refutar o axioma da ação. Porém, ao tentar refutá-lo, entrará em contradição, pois estará empreendendo uma ação humana proposital para sair de uma situação de desconforto.


Sobre o autor

Tullio Bertini

É mestre em economia e finanças pela UFSC e membro do Instituto Carl Menger, em Brasília.

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