Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Direito

A moralidade da descriminalização das drogas

19/02/2015

A moralidade da descriminalização das drogas

Somos donos do nosso corpo. A soberania do indivíduo sobre o próprio organismo lhe dá o direito de nele introduzir quaisquer substâncias (inclui drogas) que desejar.  Se o estado limitar esta liberdade, ele estará se apossando indevidamente do corpo das pessoas, violando a mais sacrossanta propriedade privada

O jurista Lysander Spooner distingue vício de crime.  No primeiro, um homem prejudica apenas a si próprio, ao passo que, no segundo, ele vitima o próximo.

Usar drogas não agride outrem.  Logo, não pode ser considerado um crime. Pode levar à ruína pessoal, mas uma pessoa não é verdadeiramente livre sem a liberdade de errar.

Atender à demanda do consumidor voluntário produzindo e vendendo algo que não causa danos a terceiros não é uma agressão.  É isso que um vendedor de drogas faz.

Afirmar que um comerciante de ecstasy está agredindo uma pessoa que voluntariamente lhe procura e pede o fornecimento de seu produto faz tanto sentido quanto afirmar que a AmBev agride alcoólatras.  

Impedir o livre comércio de drogas, por outro lado, gera guerras e leva à chacina de inocentes.  Os mercados proibidos ou fortemente regulamentados são infestados de ofertantes inescrupulosos e violentos.

Empiricamente, já deveria estar mais do que óbvio que a violência anda de mãos dadas com os mercados que sofrem de ampla proibição estatal.  Traficantes de drogas não são (completamente) imprudentes; eles operam pelo dinheiro.  Para compensar o alto risco de se operar em um mercado que foi proibido pelo estado, os retornos monetários do comércio de drogas têm de ser astronômicos.  Por isso, o benefício de se ganhar uma fatia de mercado no comércio de drogas é enorme.  Cada novo cliente pode significar um lucro extra de milhares de dólares por mês. 

Consequentemente, para os traficantes, faz sentido ficar rondando portas de escola, vendendo seus produtos para adolescentes, ou até mesmo dando amostras grátis para novatos.  Ao passo que você nunca vê representantes da Kellogg's vendendo caixas avulsas de Sucrilhos para as crianças, pois o cliente adicional não compensa o custo, para um traficante tal estratégia faz perfeito sentido.  Conquistar novos clientes, nem que seja apenas um, é algo muito mais valioso e lucrativo para quem opera nas indústrias proibidas do que para quem opera no setor livre. 

É por isso que matar um rival -- e com isso ganhar acesso a seus clientes -- é muito mais lucrativo nos setores proibidos.  As disputas territoriais de gangues rivais que ocorrem atualmente nas grandes cidades são decorrência da proibição das drogas.  Essas disputas não ocorrem, como pensam alguns, porque o comércio de cocaína seja algo intrinsecamente "louco" ou "insensato".

A repressão estatal elimina os produtores comuns, fazendo os preços dispararem. O aumento do potencial de lucro atrai pessoas com habilidades criminosas e dispostas a tudo para ampliar sua fatia de mercado.  

Quando o estado ameaça prender os produtores de um determinado bem, ele acaba alterando os incentivos de mercado, de modo que a violência passa a ser muito mais lucrativa para essa indústria.  Consequentemente, aquelas pessoas que têm predisposição para ser assassinas cruéis ganham um incentivo adicional com a política de ilegalidade de certos mercados, o que permite que elas prosperem e se tornem muito ricas em uma sociedade cujas leis antidrogas são rigorosas. 

A indústria impedida é então dominada por quadrilhas, e a inevitável consequência são os conflitos armados entre os concorrentes.  A criminalidade vai se alastrando por toda a sociedade. 

Logo, as leis antidrogas acabam por fazer com que sociopatas possam ganhar milhões por ano vendendo drogas -- sendo que com esse dinheiro ele agora poderá comprar armas automáticas, contratar capangas, subornar policiais e se tornar o rei das ruas.

Com a Lei Seca (1920 -- 1933), quando a produção e a venda de bebida alcoólica foram banidas nos EUA, homicídios dispararam.  Em 1929, a máfia de Al Capone metralhou homens do concorrente Bugs Moran em uma disputa por mercados de álcool em Chicago.  Hoje, é inimaginável que a Budweiser mande explodir a Heineken.  Por outro lado, vemos a brutalidade dos narcocartéis no México, onde há 8 mil homicídios anuais ligados à guerra contra as drogas.

A pobreza aumenta, tanto por culpa dos impostos que financiam o aparato repressor, quanto pelo menor influxo de investimentos nas áreas tomadas pelo crime organizado.

Há quem diga que o usuário de drogas sobrecarrega a saúde pública[1]. Tal argumento abre perigosos precedentes a autoritarismos espartanos, uma vez que o mesmo poderia ser dito de obesos, fumantes, sedentários, promíscuos, aposentados e trabalhadores de risco.  De qualquer forma, é a descriminalização o que minimizaria os danos à saúde do usuário e sua propensão ao consumo.

Proibir ou regular causa elevação dos preços e impõe barreiras à entrada, levando os usuários a buscar alternativas baratas no mercado clandestino.  Surgem assim drogas mais pesadas ou adulteradas, fabricadas sem nenhum parâmetro de segurança e qualidade.  Isso explica as perigosas bebidas misturadas vendidas durante a Lei Seca.

A metanfetamina, chamada de "cocaína dos pobres", é fruto da proibição da cocaína, assim como o oxi, que é subproduto do crack (o qual, por sua vez, é subproduto da cocaína). O "Opium Act" de 1878, por meio do qual os britânicos regulamentaram o comércio de ópio na China, contribuiu para difundir o vício em heroína.[2]

O aumento de preços resultante da crescente repressão estatal não inibe o desejo do viciado, mas exaure os recursos que ele poderia investir no próprio tratamento. É por isso que nos EUA as mortes por overdose de drogas ilícitas aumentaram 540% entre 1982 e 1996.[3]  Foi em 1982 que os militares e a CIA se engajaram no combate ao tráfico.

Houve uma época em que todas as drogas já eram liberadas. Heroína era vendida nas farmácias da Belle Époque como antitussígeno alternativo à morfina.  Havia tônicos e analgésicos à base de cocaína ou ópio, mas o vício era raro.  O terror que conhecemos hoje resulta da interferência estatal.  

Em um mercado livre e desregulamentado os competidores desenvolveriam drogas recreativas e medicinais cada vez mais seguras, disputariam certificados de qualidade de empresas privadas e estariam sujeitos a processos judiciais em caso de fraude ou defeito.  Estes selos privados teriam credibilidade porque estariam concorrendo no mercado e dependendo de sua reputação para sobreviver.  Uma vida perdida por conta de um produto mal-testado pode significar sua falência. 

Quando o estado assume o papel de regulador moral, as instituições que seriam naturalmente responsáveis pela moralidade se enfraquecem, abrindo mão de suas funções.  O indivíduo se torna menos zeloso e mais dependente, sem falar no apelo do fruto proibido.  A inibição moral do consumo de drogas cabe à família, religião, cultura, e não aos burocratas.

É temerário delegar escolhas morais ao agente coercitivo estatal, cuja campanha repressiva apenas aumentou o índice e a gravidade do vício. Nos estados americanos onde vigorou a Lei Seca, o consumo de ópio era 150% maior que o dos outros.[4] Na Holanda, a política de "não-aplicação da lei anti-droga"s, que levou a uma descriminalização de facto da maconha, diminuiu a proporção de usuários jovens de 28% para 21%.[5]

Onde houver demanda haverá alguém disposto a ofertar, o que reduz as abordagens definitivas ao problema das drogas a apenas duas: a primeira é a de Mao Tsé-Tung, que condenou os usuários à morte (nenhum ser humano com um mínimo de decência apoiaria tal barbárie); a segunda é a total liberação.

___________________________________

Robert Murphy contribuiu para este artigo.



[1] Uma das várias vantagens da total privatização da saúde é que isso eliminaria o problema da socialização dos custos e seu consequente risco moral

[2] Dikötter, Frank, Lars Laamann, and Zhou Xun. Narcotic culture: a history of drugs in China. Chicago: University of Chicago Press, 2004. Pág 9

[3] Substance Abuse and Mental Health Services Administration. Dados do Drug Abuse Warning Network (DAWN): Annual Medical Examiner Data, [1992-1997]

[4] Thornton, Mark. 1991. The Economics of Prohibition. University of Utah Press. Pág 61

[5] Travis, Alan (2007). "Cannabis use down since legal change". London: The Guardian (UK). http://www.theguardian.com/society/2007/oct/26/drugsandalcohol.homeaffairs


Sobre o autor

Paulo Kogos

É um anarcocapitalista anti-político. Estuda administração no Insper e escreve para o blog Livre Liberdade

Comentários (217)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!