Filosofia
A teologia do estado no Novo Testamento – Romanos 13 e a “submissão” aos governos
A teologia do estado no Novo Testamento – Romanos 13 e a “submissão” aos governos
Os ensinamentos de Paulo sobre o Estado
Ao passo que os Evangelhos pressionam o leitor a desenvolver por conta própria uma teologia completa e meticulosa sobre como os cristãos deveriam interagir com o estado, as epístolas de Pedro e Paulo tratam dessas questões de forma mais aprofundada.
Romanos 13:1-7 é a exposição mais explícita no que diz respeito ao governo civil. Outras escrituras importantes incluem Tito 3:1-3, 1 Timóteo 2:1-3 e 1 Pedro 2:11-17. Contudo, em nome da brevidade, somente Romanos 13 será examinada em detalhe. A seguinte análise beneficiou-se grandemente da obra do Dr. John Cobin, especificamente dos livros Bible and Government (tradução livre: "Bíblia e Governo") e Christian Theology of Public Policy (tradução livre: "A Teologia Cristã da Política Pública"), os quais, na opinião deste autor, oferecem a melhor e mais completa tentativa de integrar essa passagem (Romanos 13) a uma compreensão consistente da teologia da política pública.
Paulo era um cidadão romano de nascimento, e chegou até mesmo a usar sua cidadania a seu favor em uma ocasião em Atos 22 e 23. Ainda assim, ele era o "hebreu dos hebreus" e um fariseu no que tange à lei de Deus (Filipenses 3:5). Por isso, era de se esperar que ele, como os fariseus nos Evangelhos, fosse um tanto rancoroso com relação aos romanos por causa de seu domínio sobre as terras de Israel. No entanto, em Romanos 13, Paulo parece ser bastante positivo em relação ao domínio romano. Uma leitura "desatenta" do texto pode levar uma pessoa a acreditar que o estado é uma força muito positiva na sociedade e talvez mesmo uma instituição divinamente ordenada, da mesma forma que a família e a igreja o são.
Todavia, não creio que esse tipo de interpretação seja justificável. Exortações apostólicas com relação ao governo civil não podem ser facilmente conciliadas com uma leitura direta dos textos do Novo Testamento. Caso contrário, a conclusão seria a de que os apóstolos ou estavam errados -- falando dentro de um contexto cultural irrelevante -- ou eram simplesmente loucos. Quando se considera o verdadeiro contexto histórico de Romanos 13 -- em vez de fazer apenas uma leitura descontextualizada das escrituras --, uma leitura totalmente diferente emerge.
Para ilustrar esse ponto, como seria a interpretação caso os termos "autoridades governamentais", "governantes" e os pronomes pessoais fossem substituídos pelos nomes do imperador e dos reis daquele tempo, a saber, Nero, Herodes e Agrippa? O texto diria o seguinte:
Todos devem sujeitar-se a Nero e Herodes, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas. Portanto, aquele que se rebela contra Nero e Herodes está se opondo contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos. Pois Nero e Herodes não devem ser temidos, a não ser por aqueles que praticam o mal.
Você quer viver livre do medo de Nero e Herodes? Pratique o bem, e ela o enaltecerá. Pois são de Deus para o seu bem. Mas, se você praticar o mal, tenha medo, pois eles não portam a espada sem motivo. São servos de Deus, agentes da justiça para punir quem pratica o mal.
Portanto, é necessário que sejamos submissos a Nero e Herodes, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência. É por isso também que vocês pagam imposto, pois eles estão a serviço de Deus, sempre dedicadas a esse trabalho. Deem a cada um deles o que lhe é devido: se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra. (Romanos 13:1-7)
Como os cristãos atuais interpretariam esse trecho sabendo que Nero estava no poder nos tempos dos escritos de Paulo? Como lidar com o problema de que Nero matou boas pessoas -- a saber, cristãos -- e, ao mesmo tempo, tal passagem claramente diz que o governo civil recompensa e protege aqueles que fazem o bem? Claramente, o problema de interpretação não pode ser resolvido recorrendo a uma máxima tão simplista quanto "faça o que o governo ordena". Tanto o Velho quanto o Novo Testamento manifestam que isso não é certo ou verdadeiro em várias ocasiões. Alguns exemplos incluem:
- Hebreus desafiando os decretos do Faraó ordenando o assassinato dos recém-nascidos (Êxodo 1)
- Rahab mentindo para o Rei de Jericó sobre os espiões hebreus (Josué 2)
- Ehud enganando os ministros do rei e assassinando o próprio rei (Juízes 3)
- Daniel, Sadraque, Mesaque e Abednego recusando-se a cumprir os decretos do rei, e sendo miraculosamente salvos duas vezes (Daniel 3 e 6)
- Os Reis Magos do Oriente desobedecendo às ordens diretas de Herodes (Mateus 2)
- Pedro e João escolhendo obedecer a Deus em vez dos homens (Atos 5)
O texto de Romanos 13 pode ser mais bem compreendido ao se entender o contexto histórico e a razão evidenciada por meio das escrituras e da experiência, em vez de se fazer uma interpretação "crua" como a maioria dos cristãos costuma fazer.
1 Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.
O verso 1 diz que as autoridades governamentais são instituídas por Deus. A mensagem principal de Paulo aos cristãos, todavia, não é que os governos/estados são especialmente instituídos da mesma forma que o são a família e a igreja, mas sim que o estado não está operando fora dos planos de Deus. Nesse sentido, o estado é divinamente instituído da mesma foram que Satã é divinamente instituído. Deus não é surpreendido quando os estados agem da forma como agem. Como notado, especificamente nos Evangelhos, o estado é entendido, no decorrer de todos os livros, como sendo intimamente ligado a Satã e a seu reino, e patentemente oposto ao Reino de Deus. O status do estado dentro do plano final de Deus não legitima o mal que ele comete.
Uma submissão ao governo civil, portanto, é permitida. A ordem é obedecer em termos gerais; mas em ocasiões iremos desobedecer a algumas políticas públicas por causa de nossas convicções pessoais e religiosas. Os cristãos devem obedecer à maioria das políticas sempre e quando diretamente solicitados a fazê-lo, mas não devem prometer uma submissão ativa a toda e qualquer política pública. A submissão pode ser feita sempre que for conveniente, vantajosa e prática com relação aos homens, e glorificante perante Deus.
O doutor John Cobin explica que, "qualquer pecado de desobediência surge somente quando uma ação não é prudente, envolve má administração, requer a negação dos deveres familiares ou prejudica o principal propósito do cristão em sua vida". (Christian Theology of Public Policy, 120).
2 Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se opondo ao que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos. 3 Pois os governantes não devem ser temidos, a não ser por aqueles que praticam o mal. Você quer viver livre do medo da autoridade? Pratique o bem, e ela o enaltecerá. 4 Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas, se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal.
Os versos 2-4 indicam que, se você lutar contra o estado, você despertará a sua ira, mas se você se comportar da maneira como o estado desejar, você será protegido. Em muitos pontos, o que o estado define como bom e mau pode ser diametralmente opostos ao que Deus define como bom e mau. Mas o que Paulo está falando aos cristãos de Roma é que, se você fizer algo que o governo romano define como mau, então provavelmente você será punido.
Não podemos abstrair esse verso do seu contexto cultural e torná-lo um requisito absoluto para todas as culturas, em qualquer época da história. Fazê-lo significaria tornar os cristãos submissos a políticas públicas ruins. Não existe uma razão convincente para pensar que Paulo estava deliberadamente escrevendo a respeito de outros governantes senão aqueles do Império Romano.
Paulo sabia muito bem do poder de Nero e do potencial estrago que ele poderia causar aos cristãos de Roma -- Paulo o chama de "a espada" --, de modo que ele não quer que os cristãos sejam perseguidos por qualquer outra coisa que não seja o nome de Cristo e o que Ele defende. Paulo, no entanto, recorda aos cristãos romanos que até mesmo o temível poder do estado não está acima do poder de Deus. Sua mensagem a eles é a mesma de Romanos 8:28, que diz que "Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que O amam, dos que foram chamados de acordo com o Seu propósito". O estado pode, com efeito, ser um meio de santificação para a igreja do Senhor.
5 Portanto, é necessário que sejamos submissos às autoridades, não apenas por causa da possibilidade de uma punição, mas também por questão de consciência. 6 É por isso também que vocês pagam imposto, pois as autoridades estão a serviço de Deus, sempre dedicadas a esse trabalho. 7 Deem a cada um o que lhe é devido: Se imposto, imposto; se tributo, tributo; se temor, temor; se honra, honra.
Os versos 5-7 expandem as razões para submeter-se e inclui razões práticas pelas quais os cristãos romanos deveriam responder à mensagem de Paulo. Cobin diz, "a razão pela qual devemos nos submeter ao governo é para evitar a violência ou a preocupação de ser agredido pela autoridade estatal. Deus não deseja que nos misturemos com as questões desse mundo a ponto de que tal envolvimento nos desvie da nossa missão principal". (Christian Theology of Public Policy, 125).
A palavra "consciência" no verso deveria ser interpretada de forma similar a 1 Coríntios 10 (que trata de sacrifícios de alimentos a ídolos). Os cristãos estavam preocupados com a possibilidade de o estado romano encontrar alguma razão legal para persegui-los. Não se pode utilizar esse verso em um sentido absoluto para dizer que os cristãos nunca poderão participar de um movimento para remover uma autoridade do poder, tal como, por exemplo, a Revolução Americana. Paulo também encoraja os cristãos "a vencer o mal com o bem" como entendido em Romanos 12:21 (isso inclui uma autoridade maligna), e trabalhar para ser livres sempre que possível (1 Coríntios 7:20-23)
Paulo também aconselha submeter-se a pagar tributos pela mesma razão: evitar a fúria do estado e assim poder viver para Deus. O indivíduo não gosta de pagar tributos, mas, para não ser perseguido pelo estado, paga. Da mesma forma "paga a quem for o que lhe for de direito" é ordenado pelo mesmo propósito, especialmente considerando o tumulto político daquele tempo.
Mas isso significa que uma pessoa peca se cometer um erro na declaração do IR? Paulo provavelmente diria que não. Os tributos modernos são muito diferentes dos romanos. Na verdade, a palavra grega para "impostos" no verso 7 é mais próxima de "tributo", mais especificamente o imposto de capitação (ou "por cabeça") do censo distrital romano. Os romanos enviavam soldados de cada em casa, contavam os moradores, calculavam o tributo e demandavam pagamento imediato. Se o cristão não consentisse, então ele, sua família, e possivelmente mesmo seus companheiros crentes enfrentariam sérios problemas.
Paulo pediu que não houvesse resistência contra esses homens quando fizessem isso; que os impostos simplesmente fossem pagos. Recusar-se a pagar faria apenas com que os cristãos fossem identificados como parte dos rebeldes e dos trapaceiros daquele dia, e daria aos Romanos razões para perseguir os cristãos em Roma e talvez em todo o Império. Paulo queria que os cristãos romanos evitassem chamar a atenção e se tornassem alvos governamentais.
Como princípio geral, os cristãos modernos deveriam fazer o mesmo quando há uma ameaça imediata da coerção estatal, seja na forma de tributos ou de qualquer outra intimidação. Contudo, os tributos modernos não têm sempre essa característica; tributos e tarifas não são formas culturalmente transcendentes de pagamentos ao estado. Por isso, uma pessoa não está pecando se cometer um erro em sua declaração do IR. Cobin vai ainda mais longe e diz que alguns tributos podem ser completamente desconsiderados sem culpa. (Christian Theology of Public Policy, 129).
Romanos 13 não é uma declaração abstrata e universal que demanda submissão a todos os tipos de leis estatais, em todos os lugares, em todas as circunstâncias, em todos os momentos. Tampouco é uma prescrição para qual forma particular de governo é sancionada por Deus ou sobre como os estados deveriam agir. O contexto e o fraseado histórico requerem mais cuidados daqueles que se propõe a discursar sobre como deve ser a submissão de um cristão ao estado.
A obediência cristã ao governo tem como objetivo a vivência pacífica e a manutenção da honra do nome de Deus. Cristãos não são obrigados a seguir todos os tipos de políticas públicas. No que mais, cristãos não devem seguir alguma lei que vá contra a lei de Deus. Se os cristãos forem perseguidos, que isso ocorra em nome de Cristo e daquilo que ele representa, e não pela recusa a seguir alguma lei quando ela acarreta ameaça direta de ação estatal.
Conclusão
Desenvolver uma teologia do estado baseando-se em uma análise do Novo Testamente é compreensivelmente difícil. Examinando os evangelhos, vemos que o Estado não é relacionado ao Reino de Deus de nenhuma maneira; com efeito, o estado alia-se a Satã em direta oposição a Deus.
A passagem na qual Jesus diz "dê a César" não legitima o estado e não forma a base para a interação cristã com o governo.
Finalmente, uma compreensão completa de Romanos 13, sob o seu devido contexto, nos ajuda a tomar melhores decisões dentro da estrutura governamental na qual nos encontramos.
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Observação:
Alguns acadêmicos não estão convencidos de que Romanos 13 está verdadeiramente falando do governo civil. Mark Nanos argumenta que Paulo na verdade está falando da obrigação dos cristãos -- particularmente os cristãos gentios que se associaram às sinagogas judaicas de Roma -- de "se subordinarem aos líderes das sinagogas e às "leis de comportamento" tradicionais que haviam sido desenvolvidas nas sinagogas no período da Diáspora, as quais definiam o comportamento apropriado dos "gentios corretos" que procuravam se aproximar dos Judeus e de seu Deus (Nanos, 291)
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