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Filosofia

"Todos os brasileiros adoram futebol" - logo, há algo de errado comigo

03/07/2014

"Todos os brasileiros adoram futebol" - logo, há algo de errado comigo


Após a Copa, a Arena Amazônia será o palco de populosos e rentáveis jogos, como Rio Negro x São Raimundo
Morando no Canadá, uma das primeiras perguntas que me fazem quando descobrem que sou brasileira é: "Você deve estar muito empolgada por estar sediando a Copa do Mundo, não?  Você gosta muito de futebol?"

No íntimo, sempre quis dar a seguinte resposta: "É claro que estou muito empolgada e é óbvio que gosto muito de futebol!  Assim como absolutamente todos os canadenses amam xarope de Maple e comem donuts na arena de hóquei, absolutamente todos os brasileiros amam futebol.  Não é óbvio?"

No entanto, dado que sempre opto pela resposta educada e verdadeira -- não e não --, tais encontros sempre acabam em situações embaraçosas, pois meus interlocutores aparentemente imaginam ser inconcebível encontrar uma brasileira que, além de não gostar de futebol, definitivamente não está torcendo pelo Brasil.

Até onde sei, não importa quem seja o campeão da Copa, os perdedores serão os brasileiros.  E, como sempre ocorreu na história do país, os mais pobres e os mais vulneráveis serão os mais atingidos.

Para mim, é difícil entender como um país com um PIB per capita de US$11.340 sediou a mais cara Copa do Mundo da história, estimada em US$11,3 bilhões

"Ei, mas a Copa irá trazer um número suficientemente grande de turistas para estimular a economia e compensar todos estas gastos governamentais!  Logo, não há com o que se preocupar!"  Acontece que, segundo estimativas do próprio governo (o mais interessado em inflar os números), as receitas geradas por turistas serão de aproximadamente US$3 bilhões.  Ou seja, ainda faltarão US$8,3 bilhões para fechar o rombo. 

Mas a encrenca é ainda maior: a Federação do Comércio de São Paulo estima que, em decorrência de feriados e da dispensa de trabalhadores para acompanhar os jogos da Seleção, os prejuízos em termos de produção podem alcançar US$14 bilhões.

Ou seja, somando-se os prejuízos gerados pelos gastos públicos e os prejuízos com a produção, podemos chegar a um prejuízo total de US$22,3 bilhões.  Trata-se de uma conta de US$112 por cidadão brasileiro em um país em que 11% da população vive com menos de US$2 por dia.

Políticos desviaram dinheiro de impostos para construir estádios que não trarão serventia para ninguém (exceto para as empreiteiras que os construíram, é claro).  Manaus, cidade cujo Índice de Desenvolvimento Humano coloca em 850ª entre as cidades brasileiras, possui agora um estádio que custou US$300 milhões (quase R$700 milhões), e que, após a Copa do Mundo, não mais será utilizado em sua capacidade, tornando-se um genuíno elefante branco.  Ótimo uso do dinheiro dos pagadores de impostos.

Sediar a Copa do Mundo realmente levou a um grande uso dos recursos públicos.  Um país com infraestrutura calamitosa, hospitais em ruínas, e um sistema educacional precário finalmente recebeu o estímulo de que precisava.  Obrigada pelo estímulo, FIFA!

Ah, mas a coisa fica ainda melhor.  Além de termos o iPhone mais caro do mundo, de ofertarmos quartos de hotel sem janela por US$250 (R$575) por noite, e de fabricarmos carros que, quando vendidos no Brasil, custam o dobro do preço de quando vendidos no exterior, o Brasil já é classificado como um dos países mais caros do mundo.  Somente as ricas Noruega, Suécia e Suíça, bem como a disfuncional Venezuela, conseguem apresentar custos de vida mais altos. Pelo menos neste ranking estamos no topo.

E agora, graças ao aumento na demanda por bens e serviços em decorrência da Copa do Mundo, a inflação de preços oficial acumulada em 12 meses chegou a 6,4%.  Isso é apenas 0,1 ponto percentual abaixo do teto da meta estipulada pelo próprio Banco Central.  Um país que já oferecia uma moeda com um baixo poder de compra agora o faz a uma taxa 6,4% pior.

É o novo panem et circenses.  Ou talvez seja panem et morbi.  As classes média e alta, cujos impostos pagos chegam a 36% do PIB -- sendo que em países similares mal chegam a 21% --, e os pobres, que são os mais severamente atingidos pela carestia dos alimentos, devem estar empolgadíssimos.  Não sei por que eu não estou.  Talvez eu não seja devidamente patriota.  Ou vai ver é porque eu odeio futebol.


Sobre o autor

Larissa Flister

É economista, formada na Unisinos, e tambÉm bacharel em Administração pela Santa Fe College, nos EUA. Atualmente, faz pós-graduação na University of Regina, em Regina, na província de Saskatchewan, Canadá.

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