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Vai ter Copa do Mundo. E vai ter cambista também. Sempre haverá.

11/06/2014

Vai ter Copa do Mundo. E vai ter cambista também. Sempre haverá.

No momento em que iniciei esse texto, meu computador encontrava-se com uma planilha de Excel dos jogos da copa aberta. Também aberto estava um browser no site da FIFA, tentando comprar ingressos para os jogos da Copa do Mundo de futebol que são de meu interesse. Além disso, meu perfil no Facebook se encontrava na página da maior comunidade de compra e venda de ingressos no Brasil. Finalmente, algumas abas do navegador estavam abertas em alguns sites de venda de "tickets" para o "World Cup 2014". Faça uma pesquisa no Google e você encontrará vários deles.

Ocorre que, até o presente momento, eu não consegui nenhum ingresso de meu interesse no site da FIFA. Nem mesmo ingressos para os jogos de interesse anteriores à primeira tentativa de compra. Assim, para que eu pudesse realmente ir a um jogo da copa, tive de fazer uma espécie de reavaliação dos "meios e fins".

Como os gastos de transporte, translado e hospedagens estão muito caros para meu critério de valoração, restringi minhas expectativas e passei a considerar apenas quatro dos sete jogos que ocorrerão na cidade em que resido. O único jogo externo que ainda permaneceu como interessante para mim é o da final da competição. Mas, por motivos sobre os quais discorrerei neste artigo, não há a disponibilidade de ingressos para o jogo, deixando-o fora da minha alçada. A partir do momento em que ficou virtualmente impossível comprar ingressos pela maneira oficial, passei então a fazer o que muitos fazem: procurar ingressos com a figura dos "cambistas".

Minha percepção é que a condenação da figura do cambista decorre essencialmente do mau entendimento sobre o funcionamento dos mecanismos econômicos. Isso é ainda mais intenso no Brasil, país em que a "usura" foi condenada pelo parágrafo 3º do artigo 192 da Constituição Federal de 1988, limitando os juros reais a 12% ao ano. Não obstante esse parágrafo tenha sido revogado pela EC nº 40, ainda há toda uma miríade de artigos no Código de Defesa do Consumidor e no Código de Direito Civil que dá margem para punir os tais "juros abusivos", chegando ao Superior Tribunal de Justiça, que emitiu súmula limitando os juros[2].

No caso dos cambistas, a lei que especifica essa prática como crime é a de nº 1521/51. E, por essa lei, o cambismo é um crime contra a chamada "economia popular". Mais especificamente para eventos esportivos, há o "Estatuto de Defesa do Torcedor". Nele está tipificado o crime de cambismo, detalhado no artigo 41-F, que dispõe que vender ingressos de evento esportivo por preço superior ao estampado no bilhete é crime punível com reclusão de um a dois anos e multa[3].

Mas, afinal, por que existe o cambismo e por que muitas pessoas consideram uma prática danosa ao ponto dos governos taxarem-na como crime? E por que o maior evento futebolístico do planeta também é influenciado por essa prática?

Walter Block[4], em Defendendo o Indefensável detalha três condições para haver a atuação do cambista: 1) venda de quantidade fixa de ingressos; 2) que no ingresso esteja impresso o preço normal ou preço de face; 3) que o preço do valor de face do ingresso esteja abaixo do valor do real "preço de mercado" do evento.

No caso dos ingressos da Copa do Mundo, as condições número 1 e 2 são plenamente satisfeitas. O número de jogos é limitado, bem como o número de pessoas nos estádios. Ademais, nos ingressos estão descritos seus respectivos valores de face[5].

A terceira condição é um tanto mais complexa. Observe as duas figuras abaixo, que ilustram as disponibilidades de ingresso para os jogos em Salvador e em Cuiabá. Ambas foram obtidas no site da FIFA, por volta da 00h00min do dia 09/06/2014.

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Nota-se que, em Salvador, o jogo entre Bósnia e Irã tem alta disponibilidade (quadrado em verde) de ingressos em três das quatro categorias. E tem baixa disponibilidade de ingressos (quadrado em vermelho) na quarta categoria, justamente a categoria mais barata.

Pudera: um jogo entre Bósnia e Irã, com o devido respeito, não é o que poderíamos classificar como um grande clássico mundial.

Já em Cuiabá, há disponibilidade de ingressos em praticamente todos os jogos, e em especial nos jogos Bósnia x Nigéria e Rússia x Coreia do Sul.

A razão para isso é que todos os jogos da primeira fase da competição apresentam o mesmo preço para as quatro categorias de ingressos. Assim, jogos de menos apelo desportivo (como os da Bósnia, por exemplo) estão com precificação superestimada. Por outro lado, para os jogos do Brasil e os jogos de outras seleções tradicionais, os valores das partidas de primeira fase estão subestimados. Observe, por exemplo, que, na mesma praça em que sobra ingressos para Bósnia x Irã, não há mais entradas para o jogo entre Espanha X Holanda (reedição da final da última Copa do Mundo). Igualmente, não há mais ingressos para o jogo entre os poderosos e prestigiados selecionados de Alemanha e Portugal.

Fica evidente que os cambistas terão uma ótima oportunidade de atuação nestes jogos, ao passo que, na partida entre Bósnia e Irã, é provável que os mesmos cambistas venderão ingressos com deságio para qualquer torcedor, se é que haverá algum cambista que terá tais ingressos. O mais provável é que nenhum deles compre ingressos para tentar revender, dada a ausência de demanda em função do pouco apelo desses jogos.

Pois então. Devido à impossibilidade de comprar ingressos no site da FIFA, decidi ir procurar ingressos para tais jogos no mercado paralelo, mesmo não tendo interesse, a priori, em assistir a tais partidas ao vivo.

Para Espanha x Holanda encontrei, no site mais demandado[6], ingressos na categoria 3 a R$ 400,00. Para o jogo entre Portugal e Alemanha, a entrada mais barata encontrada foi no valor de R$ 986,31.

Como ambos os ingressos são categoria 3, cujo valor de face é de R$ 180,00, constata-se um ágio de 122% no jogo Espanha x Holanda e de 447% no jogo Alemanha x Portugal.

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E se você pensa que esses ágios de 122% e 447% são aparentemente grandes, é porque ainda não viu os valores para a final da Copa do Mundo. Para esse jogo, um ingresso da mesma categoria 3 custa, no site oficial, R$ 880,00. No site de ingressos, o valor mais acessível para a Final da Copa do Mundo foi de R$ 11.867,00 (ver figura abaixo), o que dá um ágio de 1.248%. Esse ágio pode ser ainda maior, pois comparei apenas o valor de face do ingresso com o anúncio mais barato encontrado.

Foi justamente por achar esse preço obscenamente elevado, que a final da Copa do Mundo saiu das minhas possibilidades. Mas repare que esse exercício de valoração só foi possível justamente pela atuação de câmbio do site.

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Eis aí a função do cambista: ele atua em um mercado cujos ativos estão erroneamente precificados. Os cambistas reduzem aquilo que Walter Block chamou de "racionamento sem alteração de preço" e geram uma situação de "racionamento pelo preço".

Antes da atuação do cambista, os ingressos se esgotavam sem que aquelas pessoas que realmente desejavam os ingressos fossem capazes de obtê-los. Após a atuação do cambista, só terão os ingressos aquelas pessoas que realmente estavam dispostas a ir ao evento.

Tal análise, vale enfatizar, não faz juízos de valor. Ela é amoral. Ela não está preocupada em fazer julgamentos éticos e morais sobre a possibilidade de "pobres poderem ver jogos do Brasil na Copa". Ela apenas se limita a explicar por que surge a figura do cambista.

Evidentemente, o cambista, como todo empreendedor, incorre em riscos e opera em um ambiente de total incerteza. Se os preços praticados forem muito elevados, os ingressos ficarão encalhados e o cambista será então forçado a baixar o preço antes que o evento se inicie. O cambista busca então comprar ingressos de quem menos os valoriza para vender àqueles que mais dispostos estão a ir ao evento. O cambista "ajusta mercados", atuando como especulador em um ambiente que é definitivamente incerto.

E é minha opinião que, justamente por não entender funcionamento de uma função tão antiga quanto os próprios atos de negociar e comercializar, que as nossas autoridades criminalizam e punem as figuras dos cambistas. Pela mesma ignorância, a população deprecia tal atividade. E assim vemos notícias como essa de que a Policia Federal está atrás de cambistas[7], e que está investigando inclusive as redes sociais[8].

Mas é só quando compreendemos a natureza da atividade do cambismo e da valoração subjetiva, que entendemos por que os operários que trabalharam na construção do novo Maracanã e ganharam ingressos para algumas partidas revenderam esses mesmos ingressos para os cambitas[9].

Foi justamente por causa da existência desses cambistas que o pobre operário paraibano (que não quis se identificar na reportagem) vendeu seu ingresso a R$ 250,00 e agora provavelmente poderá presentear seu filho com uma bicicleta no dia do aniversário dele. Para esse indivíduo, o ato de presentear o filho com uma bicicleta vale mais do que assistir a um jogo da Copa do Mundo.

Na minha posição de torcedor demandante de ingressos, quem sou eu para julgá-lo? No entanto, e lamentavelmente, o ato de valorar mais o presente para o filho fez com que o governo o julgasse um criminoso: afinal, o que ele fez (vender o ingresso) é perfeitamente enquadrado no estatuto do torcedor como um crime.

Assim, termino mostrando que, salvo alguma catástrofe, vai haver a Copa do Mundo no Brasil. E haverá outras edições desse fascinante torneio. E as mesmas razões que sempre existiram para explicar a existência dos cambistas também estarão presentes para explicar por que eles sempre estarão lá. Para azar dos governos. E para nossa sorte.

 

 



[1] Aqui cabe uma importante ressalva. A condenação da usura não é de todo um monopólio da Igreja Católica no decorrer da história. Há condenação da usura registrada no Código de Hamurabi (1700 a.C.). Também na Lei das Doze Tábuas (núcleo do direito romano) já havia condenação dos juros, ao menos explicitamente na Tábua Terceira. Há passagens do Alcorão, o livro sagrado islâmico, que também rechaça a usura.

[2] http://direitobancarionabahia.blogspot.com.br/2012/01/stj-aprova-sumula-regulando-juros-de.html

http://www.dji.com.br/normas_inferiores/regimento_interno_e_sumula_stj/stj__0379.htm

[3] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.671.htm

[4] http://www.mises.org.br/EbookChapter.aspx?id=175

[5] http://atarde.uol.com.br/esportes/copa/noticias/fifa-divulga-modelo-de-ingresso-para-a-copa-do-mundo-1585144

[6] Há outros sites de compra e venda de ingressos. Optei por esse pela simples razão de ser em português e ter opção de entrega com envio prioritário.

[7] http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/futebol/conseguiu-ingresso-para-algum-jogo-da-copa-entao-sua-ficha-sera-analisada-pela-pf/

[8] http://veja.abril.com.br/noticia/esporte/antes-da-copa-cambistas-de-ocasiao-vao-parar-na-policia

[9] http://oglobo.globo.com/esportes/copa-2014/cambistas-revendem-ingressos-que-operarios-do-maracana-receberam-de-graca-12684283

Sobre o autor

Pedro Borges Griese

Possui mestrado em economia e colabora regularmente com o Instituto Carl Menger, de Brasília.

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