A intervenção estatal na economia é inevitável?
Neste pequeno ensaio, o termo 'intervenção estatal' se refere a atos arbitrários do governo para interferir na economia de mercado. Tais atos intervencionistas violam as regras gerais de funcionamento da interação social, regras estas que foram acordadas ao se estabelecer o arcabouço da governança. A boa sociedade é aquela cujo arcabouço da governança permite aos indivíduos auferirem os ganhos da cooperação social sob a divisão do trabalho e, consequentemente, vivenciarem os benefícios do progresso material, da liberdade individual e da paz -- uma sociedade formada por indivíduos livres e responsáveis, que participam de uma economia de mercado baseada no sistema de lucros e prejuízos, que têm a oportunidade de prosperar dentro dela, e que atuam voluntariamente em comunidades voltadas para a caridade para os mais desvalidos.
A grande expansão do comércio e da tecnologia ocorrida nos séculos XX e XXI produziu um nível de riqueza material que permitiu que o custo da intervenção governamental fosse contrabalançado e permanecesse em grande medida oculto para muitos observadores. Esta possibilidade não é um fenômeno novo. Adam Smith já havia demonstrado que a busca pelo interesse próprio em uma economia de mercado é tão poderoso, que é capaz de superar "uma centena de obstruções impertinentes que as insensatas leis humanas frequentemente colocam no caminho".
É importante enfatizar que o grande progresso material ocorrido nos últimos 100 anos não se deu por causa da expansão da intervenção estatal na economia, mas sim apesar destas intervenções. E o ponto da virada ocorrerá quando o número de 'obstruções impertinentes' aumentar de centenas para milhares, fazendo com que a economia de mercado não mais consiga ocultar os custos da insensatez das leis humanas.
Tal insensatez é simplesmente uma consequência de ideias e interesses. Sendo assim, é necessário primeiramente abordarmos as ideias que clamam por intervenções estatais para, em seguida, abordarmos o ambiente institucional que cria os incentivos para esse processo de criação de políticas.
Mario Rizzo recentemente listou três grandes ameaças ao argumento em prol de um mercado desobstruído e livre de intervenções governamentais: (1) ambientalismo fanático, (2) o ressurgimento do keynesianismo, e (3) a economia comportamental. Mas estas são apenas as mais recentes manifestações de argumentos que tentam arduamente solapar os princípios do laissez-faire. À medida que tais argumentos forem ganhando força, a probabilidade de intervenções estatais na economia também irá aumentar. A tarefa do economista comprometido com os princípios da liberdade é reduzir esta probabilidade.
No século XX, o crescimento dos governos tanto em termos de escala (gastos em porcentagem do PIB) quanto de escopo (aumento das atribuições do estado) foi astronômico. No século XXI, este crescimento se acelerou ainda mais à medida que as democracias ocidentais tiveram de lidar com a percepção de tensões geradas pela globalização e pelo aumento da disparidade de renda entre o Ocidente e o Oriente. No entanto, como vem demonstrando tão claramente a situação fiscal dos países ocidentais ao longo dos últimos anos, a escala e o escopo dos governos atuais é insustentável.
Os gastos governamentais em porcentagem do PIB nas democracias ocidentais subiram de aproximadamente 12,7% em 1913 para 47,7% em 2009. E os gastos cresceram ainda mais desde 2009 em decorrência do esforço de se estimular a demanda agregada após a crise financeira global. Os governos gastam porque as economias estão fracas, e as economias continuam fracas porque o gasto governamental -- que retira recursos das mãos de investidores, empreendedores e trabalhadores produtivos, e os redireciona na forma de subsídios para grandes empresas e grupos de interesse e na forma de salários para uma insaciável e gigantesca burocracia, garantindo assim a boa vida de empresários ineficientes, de políticos e de burocratas improdutivos que regulam toda a economia -- inibe o investimento privado.
Trata-se de um ciclo vicioso que tem de ser rompido por meio de uma reavaliação da função e do escopo do governo em uma sociedade formada por indivíduos livres e responsáveis. A tarefa política e intelectual mais importante de nossa era não é a de tentar privar completamente o estado de recursos, mas sim a de construir o argumento intelectual que resulte na total retirada de atribuições ao estado.
A sociedade pode, com efeito, criar o arcabouço propício e efetuar os atos de caridade que façam com que as ações do estado se tornem desnecessárias. Mas antes disso é necessário demonstrar que os argumentos que justificam o estado não são tão incontestáveis quanto se imagina, e que tanto a oferta quanto a demanda por ações do estado possuem suas fontes em outro lugar.
Intuições morais e a demanda moral da ordem econômica
Um dos grandes desafios para uma economia de livre mercado é a crença de que as discrepâncias de renda e riqueza decorrem de ganhos imorais que são destrutivos para a ordem social. Dado que conflitos de classe tendem a descambar em conflitos reais -- uma vez que os oprimidos se rebelam contra a injustiça --, uma demanda por igualdade de tratamento (uma política que não se caracterize nem pela discriminação e nem pelo controle) se transforma em uma demanda por igualdade de recursos, sendo que essa transição de um para o outro ocorre sem muito raciocínio lógico.
Esta alegação de injustiça está profundamente enraizada em nosso passado evolucionário. Como observou James Buchanan, a grande contribuição dos economistas clássicos foi a demonstração de que a autonomia, a prosperidade e a paz poderiam ser simultaneamente alcançadas por uma economia de mercado baseada na propriedade privada. Mas foi justamente no auge da confirmação empírica desta constatação, que a economia de mercado baseada na propriedade privada passou a ser criticada como sendo uma forma ilegítima de organização social por causa das injustiças que ela permitia. O desenvolvimento da teoria da produtividade marginal dos salários não impediu o alastramento da crença moral de que o capitalismo era injusto. A lógica fria da ciência econômica entrou em conflito com as emoções ardentes da injustiça moral.
Por que existe esta tensão? A ciência econômica é uma disciplina científica que oferece conjecturas sobre como o mundo funciona, ao passo que a teoria moral fornece juízos e sugere como o mundo deve ser. Mas e se nossas intuições morais estiverem em conflito com as demandas institucionais que devem ser atendidas para que os indivíduos possam prosperar? Hayek postulou que esta tensão entre nossas intuições morais e as demandas morais da ordem econômica era um produto de nosso passado evolucionário. Culturalmente, os seres humanos foram condicionados por normas sociais que eram apropriadas a um pequeno grupo que vivia conjuntamente. Porém, com a divisão do trabalho, com a especialização e com o comércio, as normas de ordem íntima tiveram de dar lugar a normas mais apropriadas para as interações com terceiros anônimos.
Nosso dilema não é como garantir uma justa divisão de uma quantidade fixa de renda, mas sim o de decidir quais regras são apropriadas para governar nossas vidas de modo a permitir que estranhos vivam bem em sociedade ao perceberem os ganhos que podem obter por meio das trocas comerciais entre si. A moralidade vigente em um grupo pequeno tem de ser substituída pela moralidade vigente em um grupo grande. Em vez de empatia moral são necessárias regras gerais que sejam uniformemente aplicáveis -- regras que governem interações anônimas. Deirdre McCloskey argumenta que esta mudança de paradigmas -- o abandono da moralidade dos antigos e a ascensão das virtudes burguesas -- resultou no milagre do crescimento econômico moderno, melhorando as vidas de bilhões de pessoas inicialmente na Europa e nos EUA, e depois se alastrando por todo o mundo.
O estado não deve ser requisitado a intervir para abolir injustiças relacionadas às desigualdades de renda que naturalmente surgem em uma genuína economia de livre mercado. No livre mercado, indivíduos auferem lucros ao satisfazer as demandas dos consumires -- a perspectiva do lucro não apenas alerta o empreendedor para oportunidades de trocas benéficas, mas também para ganhos oriundos da inovação tecnológica. A concorrência reduz os custos ao mesmo tempo em que estimula o aprimoramento da qualidade dos produtos; sendo assim, as empresas poderão auferir lucros mais altos somente se melhor atenderem as demandas de seus consumidores. Em última instância, são os consumidores que determinam a lucratividade de empreendimentos comerciais ao decidirem se consomem ou se se abstêm de consumir seus produtos. Não há absolutamente nada de injusto nesta distribuição. Sim, Bill Gates possui mais riquezas do que eu, mas somente porque ele soube como melhor atender as demandas de um número bem maior de indivíduos.
Restringido as depredações privadas, criado depredações públicas
A ideia de que é necessário restringir as depredações privadas é utilizada para justificar a própria existência do estado: sem um soberano para definir e impingir direitos de propriedade, a sociedade rapidamente se degeneraria em uma guerra de todos contra todos, e a vida seria sórdida, bestial e curta. Todos estariam em melhor situação se cooperassem uns com os outros. Mas os oportunistas estariam ainda melhores se, em decorrência deste arranjo, eles pudessem confiscar a riqueza criada pela cooperação de todos. Logo, a única maneira de sair deste equilíbrio predatório é estabelecendo uma terceira parte que seja forte e impositiva.
Porém, tais entidades também são capazes de gerar depredações muito maiores e mais perigosas do que os predadores privados. Pesquisas feitas nos últimos 25 anos mostram que comunidades podem coibir a depredação privada criando regras que (a) limitem o acesso, (b) atribuam responsabilidades e imputabilidades, e (c) instituam punições graduais a infratores. Em grupos pequenos, isso é majoritariamente feito por meio da reputação e do ostracismo; já em grupos grandes, nos quais o agente transgressor não é claro, a dissuasão e a punição efetiva têm de ser instituídas sem recorrer a uma entidade governamental, ou pelo menos sem expandir o papel do governo.
Embora os seres humanos historicamente sempre tenham demonstrado uma propensão à violência (estupros, pilhagens e saques), também descobrimos maneiras de superar esta propensão e de constatar os benefícios gerados pela cooperação social pacífica (permuta, escambo e comércio). Os arranjos que satisfazem a nossa propensão à cooperação se tornam ricos e criam pessoas saudáveis e ricas, ao passo que os arranjos que satisfazem nossa propensão à violência submetem seus indivíduos a uma vida de ignorância, pobreza e sordidez.
O estado, na condição de detentor do monopólio geográfico dos meios de coerção, está na vantajosa posição de depredar e violar os direitos humanos de seus cidadãos e de empobrecer a população. Dar poder ao estado para que ele possa restringir as depredações privadas cria a possibilidade de estimular as depredações públicas. Como enfatizou David Hume, ao criarmos instituições governamentais, temos de pressupor que todos os homens são patifes e safados, e que as restrições apropriadas devem ser embutidas no sistema para impedir um comportamento safado mesmo que safados estejam no poder. Uma economia política robusta, similar àquela que os economistas políticos clássicos queriam estabelecer, é uma que possua severas restrições à capacidade predatória do governo, de modo que homens maus, caso cheguem ao poder, sejam incapazes de fazer grandes estragos.
Falhas de mercado se transformam em justificativa para impedir os ajustes do mercado
A teoria das falhas de mercado fornece a justificativa econômica perfeita para a intervenção do governo em uma economia de livre mercado. As quatro básicas 'falhas de mercado' são: (1) monopólio, (2) externalidades, (3) bens públicos, e (4) instabilidade macroeconômica.
Para os economistas clássicos, o monopólio é um produto da intervenção do estado e não das forças de mercado. Lamentavelmente, essa definição foi suprimida no final do século XIX e início do século XX e deu lugar à teoria de que o monopólio era uma consequência da concorrência capitalista. Não obstante todas as evidências empíricas e todos os desenvolvimentos teóricos comprovando que a definição dos economistas clássicos é a explicação mais coerente para o monopólio, a ideia de que o poder monopolista é consequência do capitalismo desenfreado ainda prevalece.
Os economistas clássicos argumentaram que os bens públicos de fato resultaram em uma demanda por um aumento da intervenção do estado na economia. Estradas e pontes, por exemplo, não seriam ofertadas pela economia de mercado porque os indivíduos iriam se beneficiar delas, mas, devido à sua natureza, podiam se esquivar de pagar por esse benefício. Logo, esse problema do 'carona' impediria que uma empresa pudesse ofertar tal serviço de forma lucrativa. Tal intuição se transformou na teoria pura dos bens públicos. Mas existem soluções tecnológicas para o problema do 'carona' e há numerosos exemplos ao longo da história de barganhas coaseanas que permitiram soluções privadas para bens públicos.
De acordo com a teoria dos efeitos externos, a economia de mercado irá com frequência produzir um excesso de efeitos colaterais ruins -- como poluição -- e uma escassa quantidade de bens "bons", pois os custos sociais não estão alinhados aos custos privados no processo de decisão. A 'mão invisível' seria incapaz de reconciliar essas diferenças. Mas a principal razão para esse descompasso é a incapacidade do estado de definir, atribuir e impingir direitos de propriedade. A poluição é um bom exemplo: por causa de uma definição obscura e de uma débil proteção dos direitos de propriedade, indivíduos irão gerar um excesso de poluição; no entanto, se fosse possível especificar e deixar claros os direitos, os deveres e as punições, a internalização da externalidade iria reduzir a poluição até seu nível ótimo. A ineficiência de hoje representaria uma oportunidade de lucro amanhã para o empreendedor que soubesse corrigir com eficácia esta ineficiência. A intervenção estatal, por outro lado, obstrui esse processo de descoberta e de ajuste de mercado, e, em vez disso, oferece apenas uma solução política.
As mais significativas alegações para a intervenção estatal na economia atualmente advém do argumento da instabilidade macroeconômica. O mercado livre e desimpedido é instável e propenso a sofrer crises periódicas; isso gera incerteza quanto ao futuro, desemprego e pobreza. Nas economias ocidentais, a Grande Depressão destruiu a fé de toda uma geração na economia de mercado. E as crises financeiras americana e europeia novamente estão desafiando essa crença. Porém, em todos esses casos, as políticas do governo foram as responsáveis pelas distorções econômicas que levaram à crise. A duração e a severidade da recuperação se devem às políticas monetárias e fiscais fracassadas, e às crescentes regulamentações e restrições que inibem o processo de reajuste de mercado.
Problemas de escolha pública, e não de falha de mercado, são a razão do intervencionismo
Mesmo que os contra-argumentos e as evidências em prol da não-intervenção sejam persuasivos, a teoria da escolha pública explica que, por falta de restrições sobre a ação democrática, as demandas levarão inevitavelmente a intervenções na economia. Independentemente de qualquer que seja o argumento intelectual clamando por intervenção estatal, o fato é que o processo político é governado, do lado da demanda, pelo voto dos eleitores e, do lado da oferta, pelo comportamento de quem está em busca destes votos.
Sendo assim, políticos irão priorizar medidas que gerem consequências imediatas e facilmente identificáveis, e irão postergar ou até mesmo ignorar medidas sensatas que gerem consequências apenas no longo prazo, mesmo que estas sejam geradoras de riqueza. E terão os votos da maioria dos eleitores, que querem justamente isso.
Ademais, o governo, por definição, detém um monopólio geográfico do uso dos meios de coerção. Sendo assim, há um forte incentivo para que lobistas e grupos de interesse capturem essa poderosa entidade para se beneficiarem à custa do restante da população. O governo pode ser, e será, usado por estas pessoas a menos que elas sejam efetivamente impedidas de fazer isso.
Uma política sem discriminação ou domínios
O enigma da atual economia política é descobrir regras definitivas que permitam a formação de uma sociedade criadora de riquezas.
Adam Smith já havia argumentado que os governos, tanto os antigos quanto os atuais, apresentam uma acentuada propensão a praticar incessantemente o truque de incorrer em déficits, acumular dívidas e inflacionar a moeda para monetizar a dívida. Na atual crise do mundo ocidental, este infindável ciclo de déficits, endividamento e desvalorização da moeda se tornou incontrolavelmente evidente.
Defrontando-nos com estes artifícios fraudulentos, a única maneira de restringir o estado é amarrando as mãos dos prestidigitadores que o comandam. Uma medida que seria efetiva já no curto prazo é a criação de regras para as políticas fiscais e monetárias. Ainda melhor seria retirar responsabilidades do estado. É verdade que não é possível retirar a política fiscal da esfera de ação do estado, mas é perfeitamente possível retirar a política monetária do controle do estado. Não só é possível, como historicamente ela já esteve fora do domínio do estado em vários países durante certos períodos. Logo, alguma combinação entre restrições constitucionais, descentralização fiscal e desestatização da moeda pode servir para reprimir o poder do estado de maneira efetiva.
Sem essas medidas drásticas, a demanda por contínuas e crescentes intervenções do estado na economia, na sociedade e nas questões morais e religiosas será uma constante. É necessário uma rejuvenescida defesa do argumento liberal-clássico em prol de regras que amarrem completamente o governo. Somente assim será possível reduzir a probabilidade de intervenções estatais e desencadear as energias criativas e todo o poder criador de riqueza do livre mercado.
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