Economia
Um pequeno histórico das políticas monetárias do real - e por que estamos em uma sinuca de bico
Um pequeno histórico das políticas monetárias do real - e por que estamos em uma sinuca de bico
Neste mesmo período, a inflação de preços da Austrália -- país de dimensões e economia semelhantes ao Brasil -- foi de 65%. Na Nova Zelândia, 53%. No Chile, 126%. No final, nosso histórico é semelhante ao da Colômbia (459%), país que até 2003 vivenciou algo muito semelhante a uma guerra civil.
Por
que esse histórico tão desanimador? O
que pretendo mostrar neste artigo é que, dentre todas as opções de política
monetária que se mostraram possíveis a cada momento, sempre escolhemos a pior. E, no atual arranjo, isso tem gerado distorções com um potencial trágico.
Sim, é fácil e confortável fazer acusações olhando em retrospecto, mas tal comodidade não deve ser um impeditivo para absolver as autoridades monetárias de suas culpas.
Mesmo em nosso melhor momento, que foi durante a primeira etapa do Plano Real (1994-1998), as coisas não foram feitas como deveriam ser.
Para acabar com uma hiperinflação
Um país que está vivenciando uma hiperinflação e que quer estabilizar sua economia -- como o Brasil no início da década de 1990 -- não tem muita opção: ele não apenas tem de trocar sua moeda, como tem também de mostrar para todo o mundo que está genuinamente disposto a, dali em diante, "levar as coisas mais a sério". Caso não transmita essa confiança aos investidores internacionais, sua nova moeda simplesmente não terá nenhuma aceitação no mercado internacional -- e, consequentemente, sua população não terá nenhum poder de compra fora do país.
Adicionalmente, dado que a causa de todas as hiperinflações da história sempre estiveram no hiperativismo de seus Bancos Centrais -- que, até a década de 1990, podiam imprimir dinheiro para financiar diretamente o governo federal --, a primeira medida a ser tomada pelo país é mostrar que esta instituição operará de agora em diante de maneira bastante contida.
Sendo assim, não basta apenas trocar a moeda -- afinal, nada garante que o Banco Central não continuará desvairado. É preciso deixar claro que a nova moeda terá "qualidade", isto é, que ela será lastreada por uma moeda mundialmente reconhecida como forte. Apenas isso pode gerar confiança no novo regime que está sendo adotado. E uma maneira bastante eficaz de se fazer isso é adotando um regime de câmbio fixo.
Existem três tipos de política cambial: há o câmbio fixo, há o câmbio atrelado e há o câmbio flutuante.
Câmbio fixo e câmbio atrelado
O câmbio fixo -- e aqui me refiro ao câmbio estritamente fixo, cujo valor nunca se modifica -- só ocorre quando uma economia opera sob um Currency Board. O Currency Board nada mais é do que uma agência de conversão de moeda que, por definição, tem de manter reservas internacionais em um volume que seja igual ou maior que a base monetária da moeda nacional. A função do Currency Board é trocar moeda nacional pela moeda estrangeira escolhida para servir de "âncora cambial" a uma taxa de câmbio fixa. Normalmente, essa moeda é o dólar. Mas, ao longo da história, a libra, o marco alemão e, atualmente, o euro já desempenharam e seguem desempenhando essa função.
Sob este arranjo, quando um empreendedor exporta produtos, ele recebe como pagamento uma moeda estrangeira -- no caso, o dólar. Ato contínuo, o Currency Board emite moeda nacional a uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar e deposita o valor na conta deste exportador. Os dólares ficam com o Currency Board. Inversamente, quando um empreendedor importa produtos, a moeda nacional é trocada por dólares a uma taxa fixa no Currency Board, que então fica com a moeda nacional e envia os dólares para fora.
Note que, sob um Currency Board, a variação da base monetária é completamente passiva. Ela aumenta e diminui estritamente de acordo com a entrada e saída de moeda estrangeira. O Currency Board não faz política monetária. Ele não pode criar moeda nacional e injetá-la na economia em troca de um ativo qualquer. Ele só pode emitir moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda estrangeira.
Sob este regime de câmbio estritamente fixo e de política monetária totalmente passiva, quando há um superávit no balanço de pagamentos, a base monetária se expande. Isso gera uma redução nos juros e, consequentemente, uma expansão no crédito e uma elevação nos preços. Ato contínuo, as importações aumentam, o que gera uma saída de reservas do país. Tal saída de reservas reduz a base monetária. Os juros sobem, a economia se desacelera e o balanço de pagamentos volta ao equilíbrio. Tal arranjo funciona exatamente como funcionaria um padrão-ouro, com uma moeda estrangeira fazendo o papel do ouro. (Com o tempo, o balanço de pagamentos tende ao equilíbrio, de forma que tais flutuações econômicas sejam mínimas.)
O Currency Board gera confiança na moeda doméstica justamente porque ele mantém reservas internacionais em um volume igual ou maior que a base monetária da moeda nacional. Em teoria, quando a operação do Currency Board é obedecida ortodoxamente, ataques especulativos não geram resultados -- afinal, seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição impossível). Essa é a principal atratividade do sistema: ele dá segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem repatriar seus lucros.
Uma explicação mais detalhada sobre o funcionamento de um Currency Board já foi feita neste artigo. A intenção aqui é apenas ressaltar que tal arranjo não apenas é o mais eficiente para se aniquilar rapidamente uma hiperinflação, como também é o arranjo que realiza tal feito com o mínimo de efeitos colaterais: ele aniquila uma hiperinflação sem deixar de herança juros estratosféricos, como ocorreu no Brasil. Um país que adota um Currency Board passa a operar com juros semelhantes aos juros vigentes no país emissor da moeda utilizada como âncora.
O melhor exemplo histórico deste fenômeno é fornecido pela Bulgária. Em 1996, sucessivas trapalhadas econômicas fizeram com que o país decretasse moratória em sua dívida externa. Em 1997, o país entrou em hiperinflação e vários protestos nas ruas quase levaram o país a uma revolução social.
Em março de 1997, o país apresentava uma inflação anual de 2.019%. A legislação para a implantação de um Currency Board foi então apresentada e o Currency Board, que teria marcos alemães como reserva, foi criado no dia 1º de julho. Em um ano e meio, a inflação de preços caiu de 1.500% para 1,4%.
Gráfico 1: taxa de inflação de preços na Bulgária, janeiro de 1997 a dezembro de 1998
Ainda mais espantosa foi a queda dos juros do mercado interbancário (equivalente à nossa SELIC): de 555% no auge da hiperinflação para apenas 3,56% no mesmo mês em que o Currency Board passou a operar.
Gráfico 2: taxa de juros do mercado interbancário na Bulgária, janeiro de 1997 a janeiro de 1998.
A Bulgária foi apenas o mais extremo dos exemplos. Mas todos os outros países que também adotaram um Currency Board -- Hong Kong, Estônia, Lituânia e Argentina -- vivenciaram este mesmo fenômeno: queda abrupta na inflação de preços e, principalmente, drástica redução nas taxas de juros, que caíram para apenas um dígito.
E isso vale ser ressaltado: com a exceção de Hong Kong, todos os países acima citados estavam na mais completa baderna. Não obstante, a criação de um Currency Board logrou fazer com que suas economias -- até então completamente avacalhadas -- se tornassem repentinamente civilizadas, com inflação de preços e taxas de juros iguais às de países desenvolvidos.
Agora comparemos esse histórico ao que fez o Brasil.
Ao contrário do que é dito até hoje com muita frequência, o Plano Real nunca se baseou um uma "âncora cambial" ou em um "câmbio fixo". Desde que o real foi introduzido em primeiro de julho de 1994, o câmbio nunca foi fixo, sequer por um dia. O Brasil adotou o regime de "câmbio atrelado ao dólar". Neste sistema, o Banco Central faz intervenções diárias no mercado de câmbio (comprando ou vendendo dólares) com o intuito de manter a cotação do dólar próxima a um valor por ele estipulado.
Veja a evolução da taxa de câmbio de julho de 1994 até dezembro de 1998, último mês antes da alteração do regime cambial.
Gráfico 3: evolução da taxa de câmbio durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro de 1998
O principal problema em se utilizar um câmbio atrelado é que há uma contradição entre a política monetária e a política cambial. Com uma taxa de câmbio fixa -- no caso, um Currency Board --, não há política monetária; as variações no balanço de pagamento determinam as variações da base monetária da economia. Com uma taxa de câmbio flutuante -- a ser analisada mais abaixo --, não há política cambial; o Banco Central se preocupa apenas em fazer política monetária. Já com um câmbio atrelado, o Banco Central tenta fazer as duas coisas ao mesmo tempo: determinar uma política monetária e uma política cambial, sendo que ambas são mutuamente excludentes, impossíveis de serem efetuadas simultaneamente. Inevitavelmente, a política cambial acaba entrando em choque com a política monetária, e os ataques especulativos são a consequência inevitável.
Quando se trabalha com um câmbio atrelado, o Banco Central tem de, diariamente, fazer intervenções no mercado de câmbio de para fazer com que o dólar fique próximo à cotação determinada pelo Banco Central. Sendo assim, quando ocorre uma entrada "excessiva" de dólares no país, há uma tendência de apreciação do câmbio. Para evitar isso, o Banco Central compra estes dólares criando reais, o que gera um aumento da base monetária. Ato contínuo, para evitar este súbito aumento da base monetária, o Banco Central vende títulos públicos para retirar da economia os reais que ele próprio acabou de criar quando fez a conversão de dólares para real (esse processo é tecnicamente chamado de "esterilização").
Já quando ocorre uma saída de dólares, o fenômeno inverso é observado: há uma tendência de depreciação do câmbio devido à maior procura por dólares. Para evitar isso, o Banco Central vende dólares para satisfazer esse aumento da demanda por dólares. Essa venda de dólares pelo Banco Central gera uma redução da base monetária. Para evitar essa redução, algo que tende a gerar uma recessão, o Banco Central cria reais e compra títulos públicos em posse dos bancos.
Adicionalmente, vale enfatizar que, durante toda essa primeira fase do Plano Real, houve déficits na balança comercial (mais importações do que exportações). Para compensar esses déficits, o Banco Central tinha de manter juros bastante altos para atrair dólares e fazer com que o balanço de pagamentos pudesse se equilibrar.
Observe que este comportamento ativo do Banco Central é totalmente distinto do comportamento de um Currency Board, que permite que a base monetária varie automaticamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos.
E é exatamente por isso que a opção por um regime de câmbio atrelado custa caro: como o regime não inspira confiança nos investidores internacionais -- pois uma desvalorização pode ocorrer a qualquer momento -- e dada a contínua necessidade de estar sempre atraindo dólares para se fechar o balanço de pagamentos e para manter o câmbio dentro do intervalo especificado pelo Banco Central, as taxas de juros têm de ser bastante elevadas. O gráfico abaixo mostra a evolução da SELIC de agosto de 1994 até o final de dezembro de 1998. Compare com os juros da Bulgária, no gráfico 2.
Gráfico 4: evolução dos juros do mercado interbancário brasileiro (taxa SELIC), de agosto de 1994 a dezembro de 1998.
E esta foi justamente a "mácula" da primeira fase do Plano Real: a necessidade de manter juros altos para atrair dólares e, com isso, manter a confiança da comunidade internacional no Plano. Não bastasse isso, o governo ainda apresentava um déficit orçamentário de aproximadamente 7% do PIB (não havia sequer superávit primário). Tamanha necessidade de financiamento contribuía ainda mais para a elevação dos juros.
No final, o que vale ser ressaltado é que esta postura do Banco Central -- de ficar vendendo e comprando dólares para manter o câmbio dentro de um intervalo especificado e de ficar arbitrando juros para atrair dólares para fechar o balanço de pagamentos -- gera um descasamento entre a quantidade de dólares nas reservas internacionais e a base monetária do país: haverá um momento em que a quantidade de dólares nas reservas internacionais será bem menor do que a base monetária. Quando isto ocorre, é apenas uma questão de tempo para que os especuladores descubram esta contradição entre política cambial e política monetária e forcem uma desvalorização da moeda -- ou a imposição de controle de capitais.
Este tipo de ataque especulativo varreu a América Latina e o sudeste asiático ao longo da década de 1990. A crise do México em 1994, a crise asiática em 1997 e 1998, a crise do real em janeiro de 1999 e a crise da Argentina em dezembro de 2001 (cujo Currency Board havia sido praticamente abolido em junho daquele ano) -- todas ocorreram de acordo com este mecanismo. Com efeito, até mesmo o ataque perpetrado por George Soros à libra esterlina em 1992 se deu por causa deste arranjo, uma vez que o Banco Central da Inglaterra vinha mantendo a libra atrelada ao marco alemão.
Veja a evolução das reservas internacionais do Brasil, e observe a queda súbita ocorrida no segundo semestre de 1998 em decorrência do ataque especulativo que culminou com a abolição do regime de câmbio atrelado:
Gráfico 5: evolução das reservas internacionais durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro de 1998
Sendo assim, surge a pergunta inevitável: se um Currency Board é estável e se um regime de câmbio atrelado sempre se esfacela, por que então a opção pelo último é quase que universal? Há várias respostas, mas duas se sobressaem: o regime do câmbio atrelado não abole a moeda nacional e, principalmente, o governo mantém sua autonomia para fazer política monetária, algo de extrema importância para financiar seus déficits via inflação. O preço desse nacionalismo e dessa autonomia governamental são juros altos, instabilidade e crise no balanço de pagamentos.
Por outro lado, para não dizer que só há críticas ao arranjo brasileiro, houve um fator positivo: o comportamento da inflação de preços. Como o Banco Central tinha de manter a expansão monetária contida para evitar uma súbita desvalorização do real perante o dólar, a inflação de preços apresentou um continuado declínio. Não tão súbito quanto o da Bulgária e da Argentina, mas ainda assim substancial.
Gráfico 6: evolução da inflação de preços durante a primeira fase do real, junho de 1995 a dezembro de 1998
A adoção do câmbio flutuante e o problema com o sistema de metas de inflação
Após a inevitável série de ataques especulativos (detalhados aqui) ocorrida no final de 1998, que reduziu abruptamente a quantidade de reservas internacionais do Banco Central, o regime de câmbio atrelado foi abolido logo no início de 1999.
A partir daquele ano, adotou-se aquilo que é conhecido hoje como 'tripé macroeconômico': câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação.
Em tese, adotar um câmbio flutuante significa que o Banco Central irá se preocupar exclusivamente com a política monetária -- isto é, irá se preocupar apenas em controlar a evolução da base monetária e dos agregados monetários (M1, M2, M3 e M4) visando a atingir uma determinada meta de inflação de preços, sem olhar para o câmbio. O comportamento da taxa de câmbio ficará exclusivamente por conta das forças de mercado. Justamente por não se preocupar com a taxa de câmbio, um regime de câmbio flutuante não sofre crises no balanço de pagamentos, como ocorre com o regime de câmbio atrelado.
O problema é que, na prática, tal teoria nunca foi de fato implantada. Em primeiro lugar, o Banco Central brasileiro nunca se preocupou exclusivamente com a política monetária, deixando a taxa de câmbio flutuar ao sabor do mercado. Ele sempre tentou controlar as duas variáveis, que são incompatíveis. Consequentemente, ao tentar fazer duas coisas mutuamente excludentes -- política monetária e política cambial --, o resultado final foi uma inflação de preços continuamente acima da meta (a qual, diga-se de passagem, sempre foi muito alta).
O gráfico abaixo detalha este descasamento. A linha azul mostra como seria a inflação de preços acumulada de 1999 caso o Banco Central de fato conseguisse manter a inflação de preços dentro da meta por ele próprio estipulada. Já a linha vermelha mostra a verdadeira inflação de preços acumulada. (Veja os valores anuais aqui).
Gráfico 7: inflação de preços acumulada de acordo com a meta estipulada pelo Banco Central (linha azul); inflação de preços observada (linha vermelha)
Mas o principal problema desse atual tripé macroeconômico nem chega a ser o conflito entre política monetária e política cambial: o problema está justamente no formato escolhido para a política monetária.
O modelo de política monetária utilizado pelo Banco Central brasileiro se resume a estipular uma meta para a taxa de juros do mercado interbancário (a SELIC) e, em seguida, fazer injeções de dinheiro no mercado interbancário para tentar manter essa taxa de juros estipulada. Por meio de cálculos econométricos sofisticadíssimos (e sempre errados), o Banco Central estipula qual é o valor da SELIC que, na crença dos burocratas, fará com que a inflação de preços fique próxima do valor tido pelo Banco Central como 'desejável'.
Tal prática -- a qual, segundo a imprensa, foi unanimemente testada e aprovada ao redor do mundo -- não apenas gerou um legado desastroso para o Brasil, como também, ao contrário do que se imagina, é utilizada por apenas um outro grande Banco Central em todo o mundo: o Fed.
Um pequeno histórico do sistema de metas para a taxa de juros
Essa
política de metas para a taxa de juros foi adotada pela primeira vez nos EUA no
final dos anos 1970. O então presidente
do Fed e criador desta política foi um cavalheiro chamado G. William Miller,
que, de tão desastrado, durou no cargo apenas de janeiro de 1978 a agosto de
1979. O resultado de sua criação foi tão
pavoroso, que Jimmy Carter teve de tirar o sujeito do comando do Fed e colocar
o durão Paul Volcker em seu lugar.
O problema desta política criada por Miller -- e hoje adotada pelo Brasil -- é
que, quando você estipula uma determinada taxa de juros como alvo, você perde
totalmente o controle do crescimento da base monetária e dos agregados
monetários, os quais passam a se comportar de forma totalmente errática. O M2 americano, sob o comando de Miller,
passou a crescer a uma taxa de dois dígitos (12%), algo até então inédito na
história do país. Foi isso que aniquilou
Miller e provocou a inflação galopante americana daquela época. Para se ter uma ideia, em novembro de 1978,
apenas 11 meses após implantar sua nova política, Miller fez com que o dólar se
desvalorizasse 34% em relação ao marco alemão e 42% em relação ao iene japonês.
Já no início de 1980, o "IPCA" americano
estava em 15%.
Gráfico 8: evolução da inflação de preços
nos EUA, janeiro de 1977 a março de 1980
Quando Miller foi retirado, Paul Volcker assumiu o comando e disse que essa prática
de determinar uma meta para a taxa de juros não mais seria a política do Fed, e
passou a controlar diretamente o crescimento da base monetária e dos agregados
monetários, desconsiderando totalmente as taxas de juros resultantes, as quais
passaram a flutuar alucinadamente. De
início, isso aniquilou a inflação de preços, que caiu de 15% em 1980 para 2,5%
em 1983.
Gráfico 9: evolução da inflação de preços nos EUA, março de 1980 a julho de 1983
Abaixo, a variação da taxa básica de juros americana neste período.
Gráfico 10: variação da taxa básica de juros americana. De meados de 1979 ao final de 1983, o Fed se preocupou exclusivamente em controlar os agregados monetários, gerando aquelas desenfreadas variações nos juros.
Porém, como havia vários distintos e complexos agregados monetários, ninguém se entendia a respeito de "o que era dinheiro" e qual agregado monetário deveria ser seguido: o M1, o M1-A, o M2, o M3 ou o M4?
Consequentemente, mais tarde, em agosto de 1982, o Fed retornou à política de determinar uma meta para os juros, sendo até então o único Banco Central do mundo a fazer isso. Quinze anos depois, mais especificamente a partir de 1999, o Banco Central brasileiro também viria a imitá-lo. Hoje, estes são os únicos grandes bancos centrais do mundo a fazer este tipo de política monetária.
Como tal afirmação parece estranha, vale a pena enfatizá-la: dentre os grandes, apenas o Fed e o Banco Central brasileiro utilizam este mecanismo de continuamente injetar dinheiro no mercado interbancário -- chamado de operações de mercado aberto -- para manter a taxa básica de juros em um determinado nível. O Banco Central Europeu, o Banco Central suíço, o Banco Central da Inglaterra, o Banco Central japonês, o Banco Central canadense, o Banco Central australiano e o Banco Central neozelandês estipulam os juros por meio da janela de redesconto, um mecanismo muito mais punitivo para os bancos.
Já o Banco Central de Cingapura não estipula juros nenhum. Ele apenas controla a taxa de câmbio do dólar cingapuriano em relação a uma cesta formada pelas moedas dos principais parceiros comerciais do país.
Não é o objetivo deste artigo especificar como funcionam os mecanismos utilizados por estes outros bancos centrais; basta dizer que mercado aberto (Brasil e EUA) é dar dinheiro para os bancos em troca de títulos públicos, ao passo que janela de redesconto é empréstimo.
Como aqui os economistas só leem literatura americana, eles adotaram o Fed e suas operações de mercado aberto como modelo a ser seguido.
Consequências
As duas principais consequências deste modelo de política monetária adotada pelo Banco Central brasileiro são o estímulo maior à inflação monetária e ao endividamento das pessoas.
Se o Banco Central está continuamente injetando dinheiro no mercado interbancário para tentar manter os juros próximos a um valor específico, ele irá estimular os bancos a concederem mais empréstimos. Consequentemente, a expansão do crédito -- isto é, a expansão da quantidade de dinheiro na economia -- será mais intensa e mais errática.
O gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de títulos públicos em posse do Banco Central. Ele mostra a quantidade de dinheiro que o Banco Central brasileiro já criou e entregou ao sistema bancário com o intuito de manter a taxa básica de juros, a SELIC, próximo do valor por ele estipulado.
Gráfico 11: títulos públicos comprados do sistema bancário pelo Banco Central brasileiro
A consequência desta maciça injeção de dinheiro no mercado interbancário foi a volumosa expansão do volume de crédito na economia. Quando bancos concedem crédito, eles criam dinheiro eletrônico para emprestar a pessoas e empresas. O gráfico abaixo mostra a evolução do crédito concedido pelos bancos ao setor privado da economia (pessoas físicas, indústrias, setor rural, comércio e serviços).
Gráfico 12: total do crédito concedido pelo sistema bancário brasileiro ao setor privado
E a consequência desta expansão do crédito foi a desordenada, errática e colossal expansão da quantidade de dinheiro na economia. O gráfico abaixo mostra a expansão do M2 brasileiro (cédulas e moedas metálicas, depósitos em conta-corrente, depósitos em poupança e depósitos a prazo).
Gráfico 13: evolução do M2 brasileiro
No final, essa política monetária adotada pelo Banco Central que se resume a injetar dinheiro no mercado interbancário para controlar a taxa de juros gerou uma inflação de preços sistematicamente maior do que a vivenciada durante a era do câmbio atrelado. Observe no gráfico abaixo que, ao passo que a inflação de preços apresentava uma tendência claramente declinante até 1998 (sendo que o IPCA daquele ano foi de saudosos 1,65%), houve uma súbita e pronunciada inversão desta tendência a partir de 1999. A tendência de alta apresentada desde 2007 é preocupante.
Gráfico 14: evolução do IPCA acumulado em 12 meses
Porém, ainda pior do que a inflação de preços é o grau de endividamento da população brasileira. E isso era inevitável. Se você cria um sistema monetário que se baseia completamente no controle artificial dos juros e no estímulo ao crédito, o incentivo ao endividamento se torna irresistível. E as consequências podem ser trágicas.
O gráfico abaixo mostra o nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul) e os gastos das famílias com o serviço de suas dívidas -- ou seja, juros e amortização -- em relação à sua renda mensal (linha vermelha). De acordo com as últimas estatísticas, o endividamento das famílias é de quase 43,75% da sua renda acumulada em doze meses, e os gastos das famílias para cumprirem o serviço de suas dívidas é de 21,70% de sua renda mensal.
Gráfico 15: nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul); gastos das famílias com o serviço de suas dívidas -- juros e amortização -- em relação à sua renda mensal (linha vermelha).
A título de comparação, como é possível ver no gráfico deste artigo, esta mesma variável (linha vermelha) para os americanos é de apenas 11%.
Tal nível de endividamento levou a uma inadimplência total de R$85 bilhões, um recorde.
Gráfico 16: inadimplência dos brasileiros junto ao sistema financeiro
Conclusão
Eis aí a nossa sinuca de bico. O endividamento e a inadimplência estão em alta, o que reduz a propensão ao consumo futuro e, consequentemente, restringe novos investimentos. A atual contração do setor industrial, que se expandiu acentuadamente durante os anos de 2010 e 2011, época da farra do crédito, é uma consequência inevitável desta nova realidade.
Enquanto estas duas variáveis (endividamento e inadimplência) não forem equacionadas, não há grandes perspectivas para o crescimento econômico. E caso a SELIC mantenha sua trajetória de alta -- o que pode se traduzir em um aumento dos juros do crediário --, o endividamento e a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a economia e a situação financeira dos bancos, das empresas e das indústrias.
Adicionalmente, a quantidade de dinheiro na economia (gráfico 13) tem apresentado um acentuado arrefecimento no seu ritmo de crescimento, muito provavelmente porque os bancos estão mais contidos em seu ritmo de concessão de empréstimos -- certamente estão mais cautelosos com o nível de endividamento e com a inadimplência. Esse fenômeno foi analisado em detalhes neste artigo.
Essa combinação entre desaceleração do ritmo de crescimento da quantidade de dinheiro na economia e inflação de preços ainda em alta está afetando sensivelmente a renda real das pessoas. Em outras ocasiões em que inflação de preços também estava alta, como em meados de 2011, não havia esta sensação de renda afetada porque a quantidade de dinheiro na economia também estava crescendo acentuadamente, o que gerava um certo alívio. Agora, no entanto, o arranjo é outro: a inflação de preços está em alta, mas a quantidade de dinheiro na economia está crescendo bem mais contidamente, o que gera esta sensação -- real -- de aperto financeiro. Este atual arranjo dificulta ainda mais a capacidade das pessoas de honrarem suas dívidas.
E caso os juros aumentem (ou caso desemprego suba), tanto os gastos com o serviço da dívida quanto a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a receita das empresas e o balancete dos bancos.
Tudo isso é uma consequência natural do nosso atual sistema monetário e financeiro, no qual tecnocratas a serviço de políticos populistas -- que só pensam em popularidade e em alguns décimos de PIB -- estimulam os bancos a expandirem o crédito e a patrocinar o consumismo e o endividamento. Isso pode acabar mal.
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