Por que austríacos lecionam em universidades públicas
Com crescente frequência ouvimos jovens estudantes, a maioria dos quais aparentemente entusiastas da filosofia política do libertarianismo, expressarem a opinião de que os autores deste artigo não seriam intelectualmente honestos, pois ao mesmo tempo em que defendem a causa da liberdade, estão na folha de pagamentos do estado. Sendo assim, teriam eles base moral para a sua pregação?
O que nos levou a escrever este texto não foi tanto a "acusação" dirigida às nossas pessoas -- um argumento ad hominem não merece muita atenção -- mas sim a preocupação que temos com um perigo associado aos rumos tomados na batalha pela liberdade. Observamos cada vez mais pessoas que se dizem liberais manifestando opiniões convictas sobre assuntos políticos e econômicos sem que essas opiniões sejam acompanhadas pelo estudo dos debates relevantes. Essa tendência, em nossa opinião, é a antítese do liberalismo e merece ser discutida.
Nutrimos a convicção de que o liberalismo depende de sólida compreensão das teorias econômicas, políticas e filosóficas que o embasam. Como disse Mises, "O liberalismo não tem flor ou cor como símbolo partidário, nem canções ou ídolos, nem símbolos ou slogans. Tem a substância e os argumentos." O poder desses argumentos também depende, de forma crucial, do estudo das teorias contrárias, na medida em que estas trazem à tona aspectos da realidade que não consideramos no nosso modelo original.
Pois bem, achar que os ensinamentos da Escola Austríaca de Economia se submetem às doutrinas políticas do libertarianismo revela preocupante falta de familiaridade com os autores dessa escola. Em primeiro lugar, os economistas austríacos sempre enfatizaram que as teorias econômicas constituem conhecimento científico, independente dos julgamentos de valor de seus proponentes. Um economista austríaco examinaria o mérito dos argumentos empregados e não a motivação de quem o formulou. É melhor que essa última prática seja deixada com os socialistas e os marxistas, especialistas no assunto.
Em segundo lugar, se para sermos considerados economistas austríacos "legítimos" não devemos ser funcionários públicos, então o exame da história dessa escola revelará que provavelmente nenhum economista se qualifica! Carl Menger, seu fundador, era professor da Universidade de Viena, recebendo na prestigiosa instituição pública um salário bem elevado. Além de funcionário público, era tutor do príncipe herdeiro do Império austro-húngaro. Eugen von Böhm-Bawerk, por sua vez, foi ministro das finanças por duas vezes, assim como seu cunhado, Friedrich von Wieser, foi ministro do comércio do mesmo império. Ambos trabalharam em universidades públicas: todos foram funcionários públicos. Mises, professor não assalariado da mesma universidade, seguramente aceitaria o cargo, caso este fosse obtido. Todos eles trabalharam em comissões governamentais que influenciaram as políticas públicas. Se considerarmos as gerações seguintes, dificilmente encontraremos economistas que trabalharam exclusivamente em instituições isentas de qualquer verba pública, de forma que dificilmente teríamos um economista austríaco "legítimo".
Em terceiro lugar, a leitura dos austríacos revela que não existe na escola uma doutrina econômica, filosófica ou política unânime, mas sim grande riqueza de opiniões. A maioria dos economistas austríacos era de liberais clássicos, postura política que não implica em absoluto a rejeição de toda atividade que envolva ação estatal. E mesmo se tomarmos a doutrina política do libertarianismo, tal como defendida por Rothbard e seus seguidores, não necessariamente deveríamos ter, em um mundo intervencionista, a defesa da tese de que todo contato profissional com o estado devesse ser recusado.
Vamos supor agora que todos os austríacos sejam anarquistas (o que não corresponde à verdade). Como eles deveriam se portar em uma sociedade altamente intervencionista? Deveriam eles necessariamente abandonar suas missões como professores e pesquisadores, a menos que tenham fontes alternativas de sustento? Essa seria uma escolha pessoal possível. Seria a alternativa uma hipocrisia? O caso de dizer uma coisa e fazer outra? Vejamos.
O leitor deve se perguntar se o fato de que os três únicos economistas acadêmicos austríacos atuando no país trabalham em universidades públicas seria ou não uma coincidência. Poder-se-ia argumentar que, em um mundo liberal ideal, com separação entre educação e estado, o volume de riqueza seria tal que existiriam indivíduos ricos o bastante para que tivéssemos especialistas em cada campo do conhecimento humano, incluindo aquelas áreas menos demandadas, como literatura húngara, história da Mesopotâmia, musicologia do shakuhachi (a flauta japonesa de bambu) e...economistas especializados em preservar o conhecimento sobre a importância da propriedade privada e liberdade para o futuro da humanidade!
Em uma sociedade intervencionista, porém, algo como "economista austríaco" não é demandado: as poucas faculdades privadas que contratam pesquisadores se interessam por macroeconomistas tradicionais e especialistas em finanças. Nas públicas, apesar da predominância das teorias econômicas intervencionistas, ainda existe liberdade acadêmica: podemos dominar o conhecimento de teorias rivais, passar em concursos públicos, participar dos debates e propor nossas ideias. No sistema atual, poderíamos apenas dar (muitas) aulas em faculdades privadas, sem fazer pesquisa.
Embora existam concursos específicos para Macroeconomia, Microeconomia, Economia Industrial etc., não existem concursos para disciplinas austríacas. Isto não acontece apenas no Brasil: em todo o mundo, a Escola Austríaca é minoritária, embora seja a mais antiga, mas também é a que mais vem crescendo, tudo levando a crer que tal crescimento deverá não apenas se manter, mas também se acentuar nos próximos anos. Nosso papel nesse ambiente de crescimento é muito importante! Será que devemos nos abster de participar do debate em que quase toda a pesquisa acadêmica é realizada? Infelizmente, somos apenas três mosqueteiros dentro da estrutura do estado, mas se amanhã formos quatro, cinco, dez, cem, mil, será muito melhor para a sociedade!
Adicionalmente, ao optar por defender uma teoria econômica liberal, fizemos consideráveis sacrifícios pessoais. Como nosso trabalho é julgado pelos pares (geralmente economistas keynesianos ou marxistas), o reconhecimento na academia é muito mais difícil se defendemos ideais liberais. Além disso, o custo de oportunidade salarial do economista não é pequeno, mas, em vez de ganhar dinheiro no mercado financeiro, ou em outros campos, optamos pela sala de aula, em nome da perseguição de um ideal, da busca de um horizonte melhor para todos -- ensinar os valores econômicos, o extraordinário cabedal de conhecimentos dos quais a civilização depende. Como observou Mises no último parágrafo de sua monumental obra Ação Humana, "cabe aos homens decidirem se preferem usar adequadamente esse rico acervo de conhecimento que lhes foi legado ou se preferem deixá-lo de lado. Mas, se não conseguirem usá-lo da melhor maneira possível ou se menosprezarem os seus ensinamentos e as suas advertências, não estarão invalidando a ciência econômica; estarão aniquilando a sociedade e a raça humana".
Cabe perfeitamente, então, a seguinte pergunta: dado que a escolha por carreira universitária implica significativos custos de oportunidade, que sacrifícios ou renúncias pela causa liberal os que nos criticam por lecionarmos em universidades públicas fizeram ou estão dispostos a fazer?
Há vários outros argumentos em nosso favor. Um deles é que em nosso país, infelizmente, as universidades privadas também estão sob o controle do estado, de modo que, sob esse ponto de vista, não faz diferença, na prática, se você é empregado de uma empresa privada ou de universidade pública. Talvez a única diferença seja a de que, na segunda hipótese, como você ingressou na universidade pública por concurso, não poderão demití-lo. Além disso, as atividades de um professor de uma universidade pública não se limitam à universidade, já que muitos podem trabalhar em outras instituições (de ensino ou não), podem manter sites e blogs e podem dedicar-se, por exemplo, ao Instituto Mises.
Um artigo bastante interessante sobre a ingerência do estado na educação e, em especial, no ensino superior é A quem as universidade públicas estão servindo? Nele, o Professor José Maria Alves da Silva, economista (não austríaco) da Universidade de Viçosa, mostra as distorções que tal interferência tem gerado na qualidade do ensino e na produção acadêmica. Que tal pinçarmos dois parágrafos desse interessante artigo?
Em contraste com as atividades produtivas agrícolas e industriais, ou nas áreas de segurança, saúde, transporte e energia, os "inputs" e "outputs" mais essenciais da "função de produção acadêmica" envolvem coisas intangíveis como pensamentos e ideias científicas, políticas ou artística.
Podem-se somar quantidades de diplomas concedidos ou de artigos publicados em revistas indexadas, mas não os conteúdos dos diplomados e das publicações. Além disso, atividades como as filosóficas e científicas são caracterizadas por períodos de gestação longos e variáveis, incompatíveis com os objetivos imediatistas subjacentes à ação dos órgãos avaliadores.
O estado tem o controle sobre o sistema, porque as pessoas precisam de diplomas para conseguir um emprego. Mesmo se você se formar em uma universidade privada, a conferição de seu diploma terá que passar obrigatoriamente pelo crivo dos burocratas do Ministério da Educação. No mundo atual, para sermos bem diretos, alguém pode aprender muito mais no Google e no Youtube do que se frequentar algumas universidades (públicas e privadas).
Em nova autobiografia de Arnold Schwarzenegger, Total Recall, ele faz um relato fascinante de uma reunião com Milton e Rose Friedman. É verdade que Friedman nunca foi um austríaco, mas também é verdade que foi um grande defensor da economia de mercado. Vejamos o que relata Schwarzenegger: "Uma das coisas fascinantes que Friedman me disse foi que ele trabalhou para o governo durante o New Deal, programa do presidente Franklin D. Rossevelt na década de 1930 para a recuperação econômica e reforma social. Não houve outros trabalhos, disse ele. Foi um salva-vidas." Nesse caso então, segundo nossos críticos, Milton Friedman também não teria sido intelectualmente honesto...
A teoria econômica austríaca é uma ciência, não uma ideologia. Este fato inquestionável nos autoriza a trabalhar em qualquer instituição, privada ou pública, onde haja lugar para a investigação econômica. E, como qualquer empreendimento científico que não é ideológico deve também ter em conta as teorias opostas, os economistas austríacos, como economistas em um sentido científico, devem ser capazes de coabitar intelectualmente com quaisquer outros, inclusive marxistas e keynesianos, que devem realmente receber a sua oposição em termos de conhecimentos científicos, pela sede de conhecimento. De fato, parte significativa de tudo que escreveram os economistas austríacos consistiu em críticas das teorias rivais, criticas essas baseadas na atenta leitura dessas teorias. O isolamento autoimposto até que se chegasse a um puro mundo liberal seria inadequado para todos os envolvidos na discussão acadêmica.
Como economistas austríacos somos a favor de uma metodologia e teoria específica, que está em concorrência com paradigmas alternativos. Podemos ter convicção de que temos as melhores ferramentas, mas a nossa tarefa é principalmente a de tentar convencer os de um paradigma diferente. Assim funciona o processo acadêmico no que tem de melhor, o livre intercâmbio de ideias, o mercado competitivo de ideias onde os produtos às vezes ruins vendem mais do que os melhores, porque as pessoas não têm os recursos intelectuais para convencer as demais. Por exemplo, a McDonald tem um maior volume de negócios do que um restaurante três estrelas em Paris. Bons vinhos são apenas para alguns. Refeições requintadas são apenas para aqueles que podem pagar. Na área de ideias é a capacidade intelectual e também o tempo que contam. Seguindo com a nossa analogia, vemos que, para a maioria dos estudantes, a economia austríaca é "muito cara". Temos que trabalhar para torná-la mais acessível, sem diluir sua substância. Esse é o nosso desafio e é melhor enfrentá-lo entre os nossos colegas (que não são inimigos), que têm pontos de vista diferentes.
Como observações finais, lembramos que, quando atuamos em uma universidade, seja pública ou privada, abrimos oportunidade para publicar e atuar em outros caminhos acadêmicos -- assim, uma "posição" em uma universidade pública serve como "launching pad" ou rampa de lançamento. E sabemos que é muito difícil algum professor, especialmente em países como o Brasil, em que jamais se cultivou essa tradição, ser "reconhecido" como "Privatgelehrter" (estudioso independente).
Vale também mencionarmos uma ironia: Marx queria ser professor de uma universidade pública, mas, como não o conseguiu, acabou sendo mantido por Engels, um capitalista. Isso decerto levaria nossos críticos a afirmarem que o autor de O capital era também intelectualmente desonesto, já que criticava o capitalismo ao mesmo tempo em que era sustentado pelo que tanto atacava...
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