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Transporte coletivo e privado

23/07/2012

Transporte coletivo e privado

[p]Faz um bom tempo que venho pensando no porquê de o transporte coletivo ser sinônimo de transporte público.  Existe algo de especial na atividade de levar pessoas de um ponto a outro que torna válido impedir a concorrência e proibir empreender no setor?  Existe algo que justifique a não existência de uma variabilidade de serviço conforme o interesse de cada passageiro em uma cidade?  O transporte coletivo público no Brasil é reconhecidamente ineficiente, e é a camada da população mais pobre, que mais depende deste serviço, que sai prejudicada.

Como uma empresa poderia ingressar no mercado ou inovar tecnologicamente em transporte público?  Muito além do básico que falta nas linhas brasileiras -- como um sistema de identificação de rotas tanto online como no próprio ônibus (em Porto Alegre, é preciso saber o que códigos como T1 e T5 significam como rota) --, saber que ônibus passa em cada parada já seria um início e um grande diferencial comparativo para um novo entrante.  Enquanto dependemos da eficiência do poder público, o grupo portoalegrense Shoot the Shit elaborou uma iniciativa colaborativa para descobrir quais são os ônibus que param em cada lugar, ainda sofrendo uma reação inicial da EPTC de encarar a atitude como vandalismo.

Uma outra estratégia empreendedorial seria identificar quais trajetos estão saturados de passageiros, tentando lucrar por meio da criação de um ônibus a mais para atender os passageiros que não estão sendo atendidos na margem.  Ou então fazer exatamente o contrário: tentar descobrir a demanda para rotas ainda inexistentes a partir de pesquisas de mercado.  Ainda, uma forma muito mais simples seria fazer o que muitas escolas adotam para o transporte de seus alunos, porém, neste caso, concentrando-se em estabelecimentos de usos variados. Uma empresa poderia abordar edifícios comerciais de um determinado bairro e perguntar de qual bairro os trabalhadores estão vindo, e se eles estariam dispostos a contratar um serviço para este trecho, sem paradas.  Se apenas esta última alternativa fosse viável e viesse a acontecer de forma generalizada pela cidade, muitas pessoas já poderiam se desfazer de seus carros, já que, independentemente do lugar em que elas trabalham, é muito possível que exista um transporte específico para a rota de que cada um precisa.

sidecar-confirmation.jpgOutro exemplo, extremamente atual, seria o aplicativo para iPhone ou Android chamado Sidecar, recentemente publicado no TechCrunch, que permite conectar passageiros indo para o mesmo lugar, transformando praticamente qualquer automóvel em um pequeno veículo de transporte coletivo, no qual a tarifa é paga voluntariamente pelo usuário, com a quantia sendo decidida a partir do valor médio pago pelos usuários anteriores.  Uma invenção genial, mas que tiraria o monopólio municipal que existe hoje sobre o transporte coletivo, sendo exatamente esta regulação o que impede o aplicativo de entrar no mercado.

Assim, levei meus questionamentos sobre a restrição do empreendedorismo ao transporte coletivo a Manuela D'Ávila e a José Serra, candidatos às prefeituras de Porto Alegre e São Paulo, respectivamente, no evento realizado pelo INSPER sobre cidades, que teve como convidado (infelizmente à distância) o urbanista Edward Glaeser.

Manuela me respondeu que estranhava minha pergunta, pois ela considera o transporte coletivo, no caso de Porto Alegre, privado, sendo empresas privadas que operam cada linha.  Estranhei mais ainda a resposta, já que sabemos que é quase impossível conseguir uma licença e todas as empresas que atuam em Porto Alegre são concessões estatais altamente reguladas, que devem ainda seguir o padrão da Carris, a empresa pública de transporte.  Tentei continuar a conversa perguntando pelo Twitter "como posso inovar em transporte coletivo com licenças limitadas, cargas, tarifas e rotas controladas?", mas infelizmente não tive resposta.

Já Serra argumentou que o transporte, assim como alguns outros serviços públicos infraestruturais, não podem sofrer o risco de parar, já que muitas pessoas dependem dele.  Porém, qualquer cidadão sabe que estes serviços públicos são mais suscetíveis a greves do que empresas privadas, causando o caos no transporte que vimos algumas semanas antes do evento. Se houvesse um mercado aberto, com várias empresas competindo entre si e com facilidade de entrada, não haveria motivos para que esse serviço parasse.  Estes são os mesmos motivos pelos quais é difícil imaginar a falta de comida no mercado de alimentos, como citado no recente artigo de Leandro Narloch na Folha, o qual teve minha singela colaboração.

A experiência histórica mais recente de um sistema desmonopolizado de transporte coletivo é a do Chile, que permitiu a livre concorrência e o livre estabelecimento de preços por empresas neste setor a partir do final da década de 1970 até o início dos anos 1990, quando o setor foi novamente regulamentado.  Após ouvir uma série de podcasts, ler artigos e ouvir depoimentos (ver referências abaixo) sobre esta experiência, parece-me serem três as principais críticas em relação ao sistema, as quais comento a seguir.

A primeira e principal crítica de uma possível desregulamentação é semelhante à crítica comum feita a qualquer setor que corre este risco: a criação de um cartel e o aumento das tarifas em um sistema gerido por empresas privadas, impedindo que os mais pobres usufruam deste direito. Segundo Gómez-Lobo, as tarifas médias de Santiago praticamente dobraram de valor no período de 1979 a 1990, mas a análise vê o problema apenas na superfície.

O valor não leva em consideração os subsídios, recursos coletados por meio de impostos, utilizados para manter esta tarifa baixa.  Segundo o economista Mike Munger, o sistema de ônibus de Santiago, que hoje é regulado, tem prejuízo de Ch$600 milhões anuais, e embora eu não tenha os números de antes de 1979, é de se esperar que haja um grande subsídio estatal para manter as tarifas baixas.  

Em Porto Alegre, a empresa municipal Carris teve prejuízo anual de R$1,8 milhão devido ao preço das tarifas, e na capital paulistana o repasse de subsídios às empresas de transporte coletivo (sem contar o metrô), chega a quase R$800 milhões para manter a tarifa a R$3,00.  Isto significa, basicamente, que são os cidadãos que não utilizam o transporte coletivo que estão pagando por quem usa.  Há quem defenda esta política como sendo "social", já que, por ser um transporte mais barato, ele normalmente é utilizado por uma camada mais pobre da população. Porém, o que acontece é que muitos dos usuários são de classe média e até mesmo alta, que acabam recebendo subsídios de quem ganha menos, mas que também paga impostos.

Adicionalmente, a meu ver, transporte coletivo não deveria ser algo limitado à camada mais pobre da população, podendo existir alternativas mais baratas ou mais caras dependendo da importância e do valor que cada cidadão atribui para seu transporte pessoal.  Por fim, vejo um grande problema ao tentar corrigir um problema de desigualdade social e renda distorcendo toda a rede de transporte público.  Se o problema é a falta de renda, então seria no mínimo mais racional se estes mesmos subsídios fossem repassados aos cidadãos mais pobres para que estes pudessem escolher eles mesmos o tipo de transporte que gostariam de utilizar.

De forma geral, sabemos que, se as barreiras políticas à entrada no mercado fossem realmente eliminadas, a pressão dos concorrentes tenderia a levar a um aumento da eficiência e à diminuição dos preços para tentar atrair mais consumidores para este mercado.  No que mais, diferenças em capacidade, flexibilidade de rotas, qualidade e idade dos veículos, densidade de passageiros por ônibus e, ainda, a eficiência de gestão de cada empresa influenciariam no preço de cada trajeto, criando uma ampla gama de escolhas em transporte coletivo.

O segundo problema citado da experiência chilena, a qual inclusive ouvi pela primeira vez do Secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre Luís Afonso Senna, é a concorrência que existia entre motoristas de ônibus para pegar passageiros em uma determinada parada. J á que as paradas continuaram sendo públicas e os motoristas são recompensados por eficiência, os relatos dos moradores de Santiago são que os motoristas de ônibus agiam como Ben-Hur na corrida de bigas, correndo para buscar o grupo de passageiros que estava à espera.  Isto causou um aumento no número de acidentes e uma percepção pública muito negativa do sistema, onde a busca pelo lucro das empresas aumentava o número de mortes no trânsito.

Entretanto, o problema surgia porque eram empresas privadas atuando em uma plataforma pública -- paradas que pertenciam a todas as empresas em conjunto --, gerando então esta distorção no mercado.  Estes incentivos perversos foram analisados por Daniel Klein em um artigo falando sobre "curb rights", ou "direitos de meio-fio", argumentando que um modo simples de resolver este problema seria estabelecendo paradas específicas para cada empresa ou grupo de empresas, terminando com qualquer tipo de concorrência para a mesma parada e prezando pela segurança no trânsito.

800px-Curitiba_04_2006_06_RIT.jpgFisicamente, o formato destas paradas poderia ser muito parecido com as paradas de BRT implementadas em Curitiba e Bogotá.  Já que os passageiros à espera do ônibus em uma determinada parada já compraram sua passagem, esta poderia ser exclusivamente de uma empresa ou de um consórcio de empresas, acabando com qualquer tipo de corrida por passageiros e, ao mesmo tempo, praticamente implementando um BRT privadamente, sem onerar os cofres públicos.

A última crítica em relação aos ônibus de livre mercado chilenos foi que, para reduzir custos, as empresas deixaram de renovar e realizar manutenção nas suas frotas, gerando um grande número de veículos velhos na cidade, inseguros e poluentes.  Meu primeiro comentário a esta crítica seria que, para automóveis, o incentivo brasileiro é justamente o contrário: carros com mais de 10, 15 ou 20 anos, são isentos de IPVA, dependendo da região.  O motivo é social, já que normalmente os proprietários destes veículos são cidadãos pobres.  Repetindo o que comentei anteriormente, não me parece eficiente incentivar o trânsito de carros menos seguros e criar um problema de poluição urbana se a intenção é fazer redistribuição de renda: os assuntos devem ser resolvidos separadamente.

Por outro lado, se uma grande camada da população que anda de transporte coletivo possui menos recursos financeiros ou se importa menos com a qualidade dos ônibus para se deslocar, é natural que surjam, em um mercado livre, veículos para atender a estes consumidores.  Qualquer tipo de regulação municipal com o intuito de proibir agentes privados de emitir gases tóxicos ou de ameaçar os demais com veículos caindo aos pedaços recairia novamente no problema de as ruas serem propriedade pública.  Fossem as ruas privadas, não haveria motivo para tais conflitos.  No entanto, acredito que tais regulações não estabeleceriam padrões proibitivos aos mais pobres e nem seriam restritas a apenas carros ou ônibus, já que os danos são os mesmos.  Enfim, não acredito que este argumento por si só seja motivo suficiente para inviabilizar a inovação no transporte coletivo.

Mesmo assim, transporte coletivo segue sendo sinônimo de transporte público, restringindo os incentivos à inovação trazidos pela livre concorrência e pela possibilidade de falência, inexistente quando se pode cobrir qualquer ineficiência com mais impostos e mais subsídios.  Quando o serviço é ruim, quando a rota não existe, quando os veículos são poluentes, quando o preço é considerado alto ou as informações sobre rotas são inexistentes, resta ao cidadão reclamar ao poder público -- sempre com poucas chances de sucesso, sem a possibilidade de trocar de fornecedor nem de empreender algo melhor.

 

Podcasts e Artigos adicionais:

Munger on Private and Public Rent Seeking (an Chilean Buses)

Munger on the Political Economy of Public Transportation

Privatisation and Deregulation of Urban Bus Services: An Analysis of Fare Evolution Mechanisms, J. Enrique Fernández e Juan Carlos Muñoz

The Limits to Competition in Urban Bus Services in Developing Countries (Draft), Antonio Estache e Andrés Goméz-Lobo

The Limits to Competition in Urban Bus Services in Developing Countries, Antonio Estache e Andrés Goméz-Lobo

Planning Order, Causing Chaos: Transantiago, Mike Munger

 

Sobre o autor

Anthony Ling

É formado em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS

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