Os perigos do endividamento externo
Em contrapartida, a Espanha, que possui uma relação dívida/PIB muito mais baixa (espera-se que ela atinja 80% ao final deste ano), é considerada muito mais instável pelos investidores. Um dos motivos apresentados para a fragilidade espanhola é que aproximadamente metade dos títulos do governo espanhol está nas mãos de estrangeiros.[1]
À primeira vista, é de se duvidar deste raciocínio. De fato, sendo eu um indivíduo que mora na Espanha, pouco me importa se o empréstimo que irei obter será de um amigo espanhol ou de um amigo alemão. Por que seria diferente para o governo espanhol? Por que se importar se os empréstimos virão de espanhóis ou de alemães?
Governos, em última instância, se baseiam na violência física ou na ameaça de violência física. O estado possui o monopólio da violência dentro de um determinado território. E é na violência que jaz a diferença. Uma dívida cujos títulos estejam em posse de cidadãos nacionais gera renda para estes cidadãos, os quais, por sua vez, são tributados pelo governo nacional, que possui o monopólio da violência. Isto significa que parte dos juros que o governo paga sobre a dívida interna volta para o governo por meio de impostos. Já os juros pagos sobre a dívida externa vão para o bolso de cidadãos estrangeiros, os quais são tributados pelos governos destes outros países. Sendo assim, o governo nacional nada ganha no final.
Mas há outro e ainda mais persuasivo motivo por que o monopólio da violência é importante: eu não posso forçar nem o meu amigo espanhol nem o meu amigo alemão a rolarem seu empréstimo para mim quando ele maturar. Embora o governo nacional não possa forçar aqueles indivíduos fora do seu território a rolarem os empréstimos que concederam, ele pode forçar cidadãos e instituições dentro de sua jurisdição a fazê-lo. De uma forma mais sutil, governos podem pressionar seus financiadores tradicionais, os bancos, a rolarem a dívida pública.
Bancos e governos vivem em uma relação de simbiose. Os governos concederam aos bancos o privilégio de operarem com reservas fracionadas, e deram ao sistema bancário garantias implícitas e explícitas de socorro em caso de problemas. Um apoio adicional é fornecido por meio de um banco central controlado pelo governo, o qual pode ajudar em casos de problemas de liquidez. Adicionalmente, os governos controlam o sistema bancário por meio de uma miríade de regulamentações. Em troca do privilégio de poderem criar dinheiro do nada através do mecanismo das reservas fracionárias, os bancos utilizam este poder para financiar os governos comprando os títulos de sua dívida.
Por causa deste intenso relacionamento e do monopólio estatal da violência, o governo japonês pode pressionar seus bancos a rolarem a dívida pendente. Ele também pode pressioná-los a não saírem vendendo abruptamente os títulos desta dívida (o que faria com que seus preços caíssem e, consequentemente, os juros subissem), bem como estimulá-los a comprarem ainda mais dívida. No entanto, o governo japonês não pode obrigar os estrangeiros a se absterem de vender os títulos desta dívida ou a comprarem ainda mais. E é aí que está o perigo para os governos que possuem uma alta porcentagem de dívida em mãos estrangeiras, como é o caso do governo espanhol.
Ao passo que os bancos e os fundos de investimento espanhóis irão obedecer ao governo da Espanha e não irão inundar o mercado com títulos da dívida do governo espanhol, as instituições estrangeiras podem fazer o oposto.[2] E o governo espanhol não pode "persuadi-las" ou "forçá-las" a não agir assim, uma vez que elas estão localizadas em outras jurisdições. A única coisa que o governo espanhol pode fazer -- e os governos da periferia do euro já estão fazendo -- é pressionar os políticos destes países credores a pressionarem seus próprios bancos a manterem esses títulos da dívida em seus balancetes, e rolá-los em vez de vendê-los.
O endividamento externo também representa um perigo para o governo dos EUA. Bancos centrais estrangeiros, como o Banco Central da China ou o Banco Central do Japão, estão em posse de somas substantivas de títulos da dívida do governo americano. A ameaça -- crível ou não -- de despejar estes títulos no mercado (e, com isso, levar a um grande aumento dos juros nos EUA) pode dar a estes governos, especialmente o chinês, alguma alavancagem política.
E o déficit na balança comercial?
No que diz respeito à estabilidade de uma moeda ou à sustentabilidade da dívida de um governo, a balança comercial (a diferença entre exportações e importações de bens e serviços) também é importante.
Um superávit de exportações implica que um país está acumulando ativos estrangeiros -- afinal, exportações trazem ao país moeda estrangeira, a qual tende a ser reinvestida no seu país de origem, normalmente em títulos da dívida do governo de lá. À medida que ativos estrangeiros são acumulados, a moeda nacional tende a ficar mais forte. Ativos estrangeiros podem ser utilizados em momentos de crise para financiar a reparação de estragos. O Japão, novamente, nos fornece um bom exemplo. Após o terremoto de março de 2011, ativos estrangeiros foram repatriados para o Japão e foram utilizados para pagar as importações necessárias. Cidadãos japoneses venderam seus dólares e euros em troca de produtos de infraestrutura, com os quais repararam os estragos ocorridos no país. Não houve nenhuma necessidade de pedir empréstimos em moeda estrangeira, o que pressionaria o iene.
O superávit comercial do Japão também se manifesta no balancete do Banco Central do Japão. Ao exportarem, os exportadores japoneses são pagos em moeda estrangeira, a qual é comprada pelo Banco Central do Japão em troca de ienes para os exportadores. Estas reservas estrangeiras podem ser utilizadas em uma situação de crise para reduzir a dívida pública ou para defender o valor da moeda no mercado de câmbio. Com efeito, se considerarmos as reservas estrangeiras em posse do Banco Central do Japão (de mais de US$ 1 trilhão), a dívida líquida de seu governo cai 20%. Sob essa ótica, superávits comerciais tendem a fortalecer uma moeda e a sustentabilidade da dívida pública do país.
Por outro lado, déficits comerciais -- por um mecanismo inverso ao explicado acima -- resultam em uma maior quantidade de dívida em mãos de estrangeiros. Um país com vários anos de déficits em sua balança comercial tende a ficar exposto a uma grande quantia de endividamento externo, algo que pode gerar problemas para o governo no futuro, como também discutido acima.
A balança comercial pode também ser um indicador da competitividade de uma economia e, indiretamente, da qualidade de sua moeda. Quanto mais competitiva a economia, mais o governo tende a conseguir se financiar por meio apenas da expropriação da riqueza real criada por esta economia competitiva, de modo que ele não terá problemas com o endividamento público. Adicionalmente, quanto mais competitiva a economia, menores as chances de os problemas gerados pelo endividamento público serem resolvidos por meio da impressão de dinheiro. Ao passo que um superávit comercial é um sinal de competitividade -- pois a economia estaria produzindo mais do que consome --, um déficit comercial pode ser um sinal de falta de competitividade, pois a economia estaria produzindo menos do que consome. Com efeito, déficits comerciais duradouros, além de serem um sinal de falta de competitividade, frequentemente andam de mãos dadas com um alto endividamento público, o que exacerba a falta de competitividade da economia.
Economias com salários elevados e inflexíveis -- como as do sul da Europa -- podem ser pouco competitivas, e em consequência apresentarem déficits comerciais. A falta de competitividade é sustentada pelos altos gastos do governo. Os governos do sul da Europa contrataram um número excessivo de pessoas para ocuparem sinecuras em seus inchados setores públicos, criaram generosos esquemas de aposentadoria precoce, e ofereceram auxílios-desemprego em massa, aliviando desta forma as consequências do desemprego gerado por um mercado de trabalho inflexível. O resultado deste aumento nos gastos públicos foi não apenas uma falta de competitividade e um déficit comercial, mas também um déficit orçamentário para os governos. Consequentemente, déficits orçamentários e comerciais frequentemente andam lado a lado.
Na periferia europeia, as importações foram pagas com empréstimos concedidos por outros países da zona do euro. O déficit comercial destes países não pode durar para sempre, pois o endividamento público iria aumentar para sempre. Uma situação de contínuo déficit comercial, como o da Grécia, pode ser interpretada como um falta de vontade política para se reformar o mercado de trabalho e, com isso, readquirir competitividade. Por conseguinte, contínuos déficits comerciais podem causar uma desvalorização da moeda ou uma venda em massa dos títulos públicos deste país. Neste sentido, o superávit comercial da Alemanha sustenta o valor do euro, ao passo que os déficits comerciais da periferia europeia diluem seu valor.
Em suma, uma dívida pública alta (em mãos estrangeiras) e contínuos déficits comerciais são sinal de uma moeda fraca. O governo pode ter de dar um calote ou de recorrer à impressora de dinheiro para tentar se livrar destes problemas. Por outro lado, uma dívida pública baixa (em mãos estrangeiras) e contínuos superávits comerciais tendem a fortalecer uma moeda.[3]
[1] Outro importante motivo é que o governo espanhol não pode utilizar a impressora de dinheiro sempre que quiser, pois ela é compartilhada por outros governos da zona do euro, os quais podem protestar. Já o governo do Japão, por outro lado, controla seu banco central e, consequentemente, a impressora de dinheiro.
[2] Vale notar que os títulos recém-emitidos da dívida espanhola estão exclusivamente em mãos de bancos espanhóis, pois outros investidores estão cada vez menos interessados em financiar um governo que simplesmente se recusa a implantar medidas de austeridade reais e efetivas.
[3] Neste ponto, vale ressaltar a importância de um orçamento equilibrado. Caso os déficits orçamentários de um país (por exemplo, o Brasil) fossem eliminados, os déficits comerciais fariam com que os estrangeiros, em vez de aplicarem o dinheiro de suas exportações em títulos do governo brasileiro, necessariamente direcionassem esse dinheiro para o setor produtivo brasileiro, aumentando a riqueza nacional. Déficits comerciais não ampliariam a dívida em mãos estrangeiras, de modo que todo o resultante investimento estrangeiro ampliaria a poupança e a acumulação de capital do país. O problema, portanto, não é a existência de déficits comerciais, mas sim a existência de déficits orçamentários do governo. [N. do .T.]
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