Esse site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando neste site, você concorda com suas condições.

< Artigos

Filosofia

Anarquismo, razão e história

23/12/2010

Anarquismo, razão e história

Pode algum estado ter um "direito de existir"?  Essa pergunta é feita repetidamente pelo professor Hans-Hermann Hoppe em seu livro Democracia: O Deus que Falhou.  Sua resposta é um retumbante Não.

Hoppe é apenas o mais recente pensador na tradição do anarquismo filosófico.  Seu mentor, o falecido Murray Rothbard, era outro.  Ambos devem suas ideias a um grande, porém muito pouco conhecido, americano do século XIX, Lysander Spooner.

A posição de Spooner era simples.  Existe uma lei moral, cuja essência aprendemos desde a nossa infância, mesmo antes de decorarmos a tabuada.  Basicamente é essa: não faça o mal a outras pessoas; não as agrida gratuitamente.  O princípio é simples, ainda que suas aplicações possam ocasionalmente ser difíceis.

Disso, raciocinou Spooner, conclui-se que nenhum estado pode existir.  Ninguém pode reivindicar o poder de alterar a lei moral; ninguém pode reivindicar o monopólio da autoridade para colocar essa lei moral em vigor.  Porém, o estado reivindica para si o direito de fazer ambos.  Ele tenta alterar a lei moral por meio de legislações, as quais ele (erroneamente) crê serem capazes de aprimorar a moral e a ética de seus súditos; e ele insiste que apenas ele, o estado, pode definir, criminalizar e punir os errados.

Dentre os resultados dessas reivindicações do estado estão as guerras, a tirania, a escravidão e a tributação.  A sociedade humana estaria em melhor situação sem o estado.

O melhor argumento para uma sociedade sem estado (anarquia) foi o próprio século XX.  Um estudioso do assunto, o professor R.J. Rummel (clique no link para ver uma lista de seus trabalhos), calcula que os governos daquele século assassinaram aproximadamente 177 milhões de seus próprios cidadãos -- e esse número sequer contabiliza as guerras internacionais.  É inconcebível imaginar que criminosos privados pudessem matar esse mesmo tanto.  Seria interessante saber também o quanto de riqueza os estados já confiscaram e desperdiçaram.  O valor iria deixar o mundo apoplético.

Porém, sempre fica a pergunta: a sociedade poderia existir sem o estado?  Seria o estado um mal necessário para a existência humana?  Poderia ele até mesmo ser um bem positivo?

Aristóteles dizia que o homem é um animal político; porém, sua concepção de comunidade, ou polis, era muito diferente da concepção do estado moderno.  Ele imaginava que a comunidade deveria ser pequena o bastante para que todos os seus membros pudessem se conhecer uns aos outros.  Isso se parece com algum estado que você conheça hoje?

Santo Agostinho via o estado, junto com a escravidão, como uma consequência do Pecado Original.  Embora jamais pudesse ser uma coisa boa, o estado era tido como algo inescapável para os homens, todos pecadores e desgraçados (destituídos da graça) por natureza.  Mas devemos nos perguntar se é preciso ser assim mesmo; na época de Agostinho, a escravidão parecia ser um malefício necessário da vida social, e um mundo sem escravidão era difícil de ser imaginado.  Ninguém da época poderia se lembrar de como era -- e poucos podiam imaginar como seria -- uma economia sem escravos.

Será possível que nós tenhamos, da mesma forma, assumido que o estado é inevitável apenas porque já nos acostumamos a ele, e, por isso, dificilmente conseguimos imaginar um mundo sem estado?  Assim como as tarefas domésticas antes executadas por escravos são hoje distribuídas distintamente entre homens livres, talvez, como argumentam os anarquistas, as funções do estado poderiam também ser distribuídas entre agências voluntárias.

O filósofo renascentista Thomas Hobbes imaginava que a anarquia -- o "estado da natureza" -- seria "uma guerra de todos contra todos", tornando a vida humana "solitária, pobre, desagradável, brutal e curta".  Sua solução para evitar tudo isso era o estado, o qual iria reprimir as intermináveis batalhas entre os homens.  Hobbes entretanto não anteviu que o próprio estado poderia agravar esses conflitos e fazer com que a ordem social fosse ainda mais miserável do que a anarquia jamais poderia lograr fazer.

John Locke, um quase contemporâneo de Hobbes, ofereceu uma alternativa mais atraente: o estado limitado, o qual teria o poder de assegurar ao homem seus direitos naturais, porém sem ter o poder de violá-los.  Mas tal estado nunca existiu por muito tempo.  Uma vez que o monopólio do poder passa a existir, ele tende a se degenerar em tirania; os anarquistas argumentam que tal declínio é inevitável, pois a tirania é inerente à própria natureza do estado. 

Por incrível que pareça, o grande conservador Edmund Burke (1729 - 1797) começou sua carreira com um tratado anarquista, argumentado que o estado era naturalmente e historicamente destrutivo para a sociedade humana, para a vida e para a liberdade.  Mais tarde ele viria a dizer que sua intenção havia sido apenas fazer uma ironia, mas muitos ainda hoje duvidam disso.  Seu argumento em favor da anarquia era poderoso demais, apaixonado demais e persuasivo demais para ser apenas uma piada.  Tempos depois, já um político profissional, Burke pareceu ter ficado de bem com o estado, acreditando que, não importa quão sangrenta sua origem, o estado sempre poderia ser domado e civilizado, como na Europa, pelo "espírito de um cavalheiro e pelo espírito da religião".  Porém, ao mesmo tempo em que ele escrevia, a velha ordem que ele amava já estava se desintegrando.

Qualquer que seja a verdade, o fato é que os anarquistas têm a razão ao seu lado.  E a história.


Sobre o autor

Joseph Sobran

(1946-2010) era um jornalista conservador que se converteu ao anarcocapitalismo em sua última dÉcada de existência. Foi um dos mais importantes e prolíficos escritores americanos.

Comentários (9)

Deixe seu comentário

Há campos obrigatórios a serem preenchidos!