quinta-feira, 11 nov 2010
Sociedade voluntária x sociedade tiranizada
Na
falta de um termo melhor, estou dando a essa lei o nome de Lei de Woods: sempre
que o setor privado introduz uma inovação que melhora a situação dos pobres, ou
ofereça benefícios ou termos que ninguém mais está preparado para lhes
oferecer, alguém — sempre em nome de estar ajudando aos pobres — irá requerer
a restrição ou até mesmo a abolição de tal inovação.
O
exemplo universalmente famoso é o da Wal-Mart, a rede varejista que vende
produtos a preços baixos, beneficiando exatamente os de menor renda. Exatamente por isso, diversos ativistas pedem
sua abolição, com a justificativa de que a Wal-Mart paga salários baixos e
compete deslealmente com seus concorrentes.
Da mesma forma, pense em qualquer empreendedor que tentou vender
produtos a preços baixos, de olho no segmento de baixa renda e, exatamente por
isso, foi processado por agências reguladoras por estar praticando dumping e
prejudicando concorrentes menores.
Comentando
esse fenômeno com o professor Christopher Westley,
da Jacksonville State University, percebi que ele também apresentou uma lei que
pode perfeitamente ser chamada de Lei de Westley. Ainda mais simples que a Lei de Woods, a Lei
de Westley afirma que o setor público sempre é cobrado com bem menos rigor do
que o setor privado. Logo, o setor
privado é condenado mais intensamente por erros que o governo comete com muito
mais consistência e em escala muito maior. Ou, colocando de outra forma, as falhas do
governo são tratadas bem mais complacentemente — quando sequer são notadas —
do que as falhas cometidas por agentes privados.
O
controle da criminalidade é um bom exemplo.
Certa vez, quando eu morava em Manhattan, um amigo de Connecticut que
veio me visitar teve o rádio de seu carro roubado enquanto estávamos comendo em
uma lanchonete. Por acaso, no momento em
que estávamos inspecionando o carro para ver se algo mais tinha sido levado,
passou um carro de polícia. Fizemos
sinal para que ele parasse e explicamos a situação. O policial nos disse que realmente era uma
pena o que havia ocorrido, e foi embora.
Quando
o governo diz às pessoas que nada pode ser feito quando sua propriedade é
roubada, elas normalmente aceitam tal fato com uma amarga resignação. Agora, imagine uma empresa privada dizendo a
mesma coisa: nós de fato dissemos que iríamos proteger você, mas a verdade é
que não vamos mover uma palha para tentar achar o meliante, recuperar seu item
roubado ou indenizá-lo por sua perda.
E
é melhor nem entrar no detalhe de quantos crimes, mesmo os mais graves, não são
solucionados pelo estado e tampouco mencionar o fato de que, como me foi dito
por um policial que conheço, exatamente nada acontece com ladrões de carro
primários. Em alguns locais, você tem de
roubar um carro pelo menos cinco vezes para que finalmente alguma penalidade
lhe seja imposta.
Já
me perguntei várias vezes qual seria a reação das pessoas se uma empresa privada
fosse assim tão negligente e tão obviamente incapaz de cumprir suas tarefas. Iríamos para sempre ouvir sermões sobre a
incompetência do mercado e sobre a necessidade de regulamentações mais estritas
e de supervisão estatal mais intensa. Os
fracassos do estado, por outro lado, quando são corretamente percebidos, geram
apenas gracejos e abanos negativos de cabeças.
Sim, ocasionalmente um político flagrado em corrupção renuncia, mas
ninguém perde o emprego pelo fato de os Correios serem caros e ineficientes ou
porque a polícia não pode fazer nada em relação ao roubo de carros. O estado, de alguma forma, conseguiu se
isentar da obrigação de ter de seguir os mesmos padrões de comportamento e performance
que os agentes privados são obrigados a observar — e, pior ainda, a maioria
das pessoas concorda e aceita que tudo seja assim.
Porém,
o exemplo mais perfeito dessa fraude governamental está mesmo nas contas públicas. Ano após ano, o governo promete que vai
equilibrar o orçamento. E, ano após ano,
os déficits vão se acumulando. Como
consequência, a dívida interna, a qual você e seus descendentes terão de pagar
no futuro, vai aumentando — dívida essa, convém enfatizar, que você não pediu
e que não foi feita por você, mas que você terá forçosamente de pagar. Alguém é punido por esse crime? Alguém no Tesouro é demitido? Alguma
coisa, qualquer que seja, acontece com os responsáveis? Os jornais apenas
noticiam o fato como uma coisa corriqueira.
Amanhã essa notícia já será velha.
Agora,
imagine se uma empresa privada cujos serviços você não contratou fizesse uma
dívida e lhe mandasse a conta? Mais
ainda: imagine se ela fizesse isso com um grande número de pessoas? Dificilmente ela chegaria ao fim do mês.
Que
o governo tenha conseguido corromper nosso senso de justiça a ponto de poder
perpetrar sobre seres humanos perfeitamente conscientes fraudes tão
transparentes como essas, é apenas mais um argumento a favor da sociedade livre
e voluntária e contra o estado.
Poder x Mercado, ou: o mercado
transforma tudo em mercadoria?
Mais clichês já foram proferidos sobre a economia de mercado do que sobre
qualquer outro fenômeno social.
Recentemente, lendo as atas de um simpósio internacional ocorrido em
1982, editadas por Walter Block e Irving Hexham, deparei-me com essa
observação:
A filosofia do livre mercado nos faz olhar para toda a vida social como
se ela fosse um mercado... Ela leva as pessoas a considerarem tudo que as cerca
como mercadorias, como coisas que têm preços, como objetos a serem usados.
Quem disse isso realmente é o de menos, embora devo esclarecer que nenhum
dos dois editores foram os culpados por isso (duvido que Walter Block diria
algo assim mesmo sob ameaça de tortura).
Não se trata de um argumento atípico: o livre mercado supostamente
"mercadoriza" tudo, e reduz toda a vida a uma questão de cédulas e moedas.
Mas será que é realmente isso que o mercado faz?
Murray Rothbard descreveu o livre mercado como sendo simplesmente "o arranjo
social em que os indivíduo praticam trocas voluntárias de bens e serviços". Ao dar a um de seus livros o título Power and Market (Poder e Mercado), Rothbard estava
situando "poder" e "mercado" como antinomias.
O mercado consiste em transações voluntárias entre agentes dispostos a
transacionar; o estado, ou "poder", introduz a coação nas relações humanas,
criando efeitos coercivos que não teriam sido escolhidos voluntariamente pelos
indivíduos.
Se poder e mercado são opostos, comparemos então a pura economia de mercado
com a pura aplicação do poder — o serviço militar obrigatório. O recrutamento compulsório consiste em um
grupo de pessoas sobre as quais o estado declara ter o direito de utilizar seus
corpos em conflitos que envolvem a imposição de violência e o alto risco de
morte. O risco moral presente no
recrutamento compulsório é óbvio: o estado estará mais preparado para iniciar
guerras e incorrer em táticas propensas a gerar significantes perdas de vidas
caso o custo de tal atividade seja socializada e os soldados utilizados sejam,
do ponto de vista do estado, praticamente sem custos. Se houver muito mais de onde aquelas centenas
de milhares de soldados vieram, e nenhuma das autoridades tiver de ser
responsabilizada por qualquer custo gerado pela perda de vidas, então é de se
esperar que tal arranjo gere mais negligência com a vida humana do que em outro
contexto.
Nosso crítico diz que o mercado "leva as pessoas a considerarem tudo que as
cerca como mercadorias, como coisas que têm preços, como objetos a serem usados". Mas não seria exatamente isso que o estado faz no caso do recrutamento
compulsório, essa que é a mais antimercado das transações? O estado vê o populacho como uma simples
matéria-prima a ser empregada, involuntariamente, na busca dos perigosos e
violentos objetivos do estado — em outras palavras, como "um objeto a ser
utilizado." Com uma diferença: o estado
sequer paga um preço mutuamente acordado pela mão-de-obra que ele recruta!
É assim que o estado se comporta continuamente. Ele não precisa interagir com as pessoas ou
ter qualquer consideração por suas preferências e direitos; muito menos ele se
sente na necessidade de negociar termos satisfatórios com elas. Ele sempre pode agir unilateralmente, de modo
que, ao indivíduo, não reste outra alternativa senão aceitar o que quer que o
estado tenha determinado em relação a questões como o quanto de sua propriedade
será expropriada, o que seu filho aprenderá na escola ou para onde ele será
enviado para lutar e morrer.
Já no mercado existe o sistema de preços.
Os preços de mercado exercem uma importante função, além de tornarem possíveis
tanto o cálculo econômico quanto a ampliação da divisão do trabalho. Os preços de mercado implicam propriedade, a
qual por sua vez implica o direito de se desfazer do bem do qual se é
dono. Se o preço que ofereço não lhe
agrada, você não precisa executar seu serviço laboral para mim. Se o preço que ofereço não lhe agrada, você
não precisa entregar sua propriedade para mim.
Os preços de mercado nos relembram que a cooperação social tem de trazer
em si uma cooperação genuína, o que
significa que nenhum lado de uma transação tem o direito de trapacear ou roubar
o outro, uma vez que essa é a moralidade do criminoso. Ao contrário deste, os participantes do
mercado precisam chegar a acordos que sejam mutuamente satisfatórios para que
uma transação ocorra.
Os preços de mercado, em outras palavras, não são coisas artificiais e
malvadas que desestimulam a cooperação social.
Ao contrário: são eles, acima de tudo, que tornam possível a cooperação
social. Eles transmitem a regra de que
nós não podemos simplesmente sair andando por aí como selvagens egocêntricos,
tomando o que quisermos dos outros, como se nada e ninguém pudesse sobrepujar
nossas demandas e desejos. Temos de
estar sempre dispostos a oferecer algo em troca das coisas que queremos
adquirir, de modo que a pessoa que está nos oferecendo o bem que queremos possa
também melhorar suas condições — ao invés de ser por nós explorada, sem
qualquer consideração para com seu bem estar.
Com o estado, por outro lado, o preço é aquele que ele próprio determina. Ele vai ofertar serviços que você não quer, que
você nunca vai usar e que você pode até achar moralmente repugnante — e então
vai dizer que você tem de pagar por eles.
Em caso de desapropriação (domínio eminente), quando o estado confisca
sua propriedade para benefício próprio, ele irá lhe pagar alguma coisa, porém será o próprio estado quem vai decidir
exatamente quanto vai lhe pagar. Como
isso pode ser preferível a um mundo em que cada indivíduo tem a liberdade de
declarar os termos em que ele aceita dispor de sua propriedade e mão-de-obra? Como isso pode ser preferível a um mundo em
que nenhuma transação ocorre a menos que ambos os lados voluntariamente concordem
em fazê-la?
É o estado, portanto, e não o
mercado, que "considera tudo que [o] cerca como mercadoria... como objetos a
serem usados." Precisamente porque age
fora do mercado, o estado pode criar preços arbitrários para seus serviços,
fazer com que esses preços sejam diferentes para diferentes classes de pessoas
e, no fim, ameaçar usar de força física contra qualquer um que se recuse a
pagá-los. Quem mais na sociedade civil
pode se comportar assim?
Agora, nosso crítico pode retrucar dizendo que não deseja dispensar o
mercado como um todo, mas apenas quer ver o mercado tendo uma participação
menor na sociedade. Mais: ele quer
apenas estimular uma abordagem mais democrática e comunitária da propriedade e
de seu uso. Porém, nem uma votação
democrática e nem linguagens floreadas alteram minimamente a questão moral. Se uma maioria de eleitores vota a favor de
me expropriar ou de me mandar para lutar uma das guerras que o estado empreende
pelo mundo afora, a situação em nada difere em termos morais de uma situação em
que o estado tivesse feito essas coisas por conta própria.
Quanto ao mercado ter uma menor participação na sociedade, há a inevitável consequência:
quanto menor for a sua participação, maior será a participação da
arbitrariedade e da força, as quais aumentarão na mesma proporção em que o
mercado encolher. Se a livre interação
de proprietários não mais puder determinar os termos em que os indivíduos irão
interagir entre si, então a ameaça da força assumirá tal função. E aí nós veremos qual sistema realmente considera
todos como "objetos a serem usados".
Nada é mais fácil ou mais elegante do que condenar o suposto materialismo do
mercado. Mas esse tipo de retórica é o
inimigo do pensamento racional. A
escolha é clara: propriedade privada e preços de mercado ou a lei da
selva. E afetações de cinismo em relação
ao mercado ou ilusões românticas sobre como a vida seria mais legal sem ele não
podem obscurecer essa escolha fundamental.