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Filosofia

O Enem e a liberdade individual

18/10/2009

O Enem e a liberdade individual

O vazamento das questões da prova do Enem foi uma maravilha. Chamou nossa atenção para o perigo que ele representa. Agora sabemos como o governo tenta engessar o conhecimento, a diversidade e a criatividade humanas. Com o Enem nenhuma escola pode ser inovadora.

Até 1850 não havia sapatos diferentes para os pés esquerdo e direito. Ajustar os sapatos ao formato dos pés era tarefa destes. Por isso as pessoas tinham tantos calos e deformações. O Enem quer que todos os pés calcem sapatos iguais.

O Ministério da Educação (MEC) regulamenta tudo o que pode. Instituiu inspeções para os ensinos médio, superior e de pós-graduação. Delega a grupos de professores a tarefa de dizer se os brasileiros estão aptos para a vida ou não. Ignoram peculiaridades. Por exemplo, nem todos querem ou precisam saber Matemática, Geografia ou História em proporções iguais.

O exame ignora que os professores vivem com os olhos no retrovisor. Ensinam o que aprenderam e, com grande frequência, o que eles sabem deixou de ser verdade porque a ciência anda muito mais rápido do que eles atualizam seus conhecimentos.

O  Enem cria injustiças sociais quando determina que toda a educação será igual, independentemente dos gostos e preferências das pessoas; condena um número enorme de alunos que têm gostos, competências, desejos e ambições diferentes à morte intelectual, porque eles são incapazes de passar num exame estandardizado que mede a mesmice.

Há alguns anos o manual dos avaliadores de faculdades era fino. Hoje é três vezes mais grosso: exigências cada vez maiores e mais detalhadas, na tentativa de tornar todos iguais. A retórica de que temos de ter uma educação excelentemente igual em todo o País é falsa.

Primeiro: viola um princípio básico de economia. Ainda que desejos sejam ilimitados, sua satisfação é limitada, porque não há recursos para tudo. Segundo: nem todas as pessoas querem ou precisam das mesmas coisas. Uns vestem preto e outros, azul-piscina. Pela mesma razão, a sociedade não é composta de farmacêuticos, barbeiros, adestradores de rãs, jogadores de futebol, profissionais de paintball ou cantores líricos.

O MEC ainda não conseguiu tornar o Enem universal e obrigatório para todos os estudantes e necessário para a entrada em todas as faculdade e universidades do País. Felizmente!

O objetivo é torná-lo obrigatório para todos. Como ambicionam todas as burocracias, sobretudo as que têm poder de estabelecer monopólios. O objetivo é fazer todos ficarem iguais, como Brasília ou Tashkent, capital do Usbequistão. Nada a estranhar. A segunda coisa pela qual Oscar Niemeyer é mais famoso é por ser comunista. Seu objetivo principal era a igualdade por meio dos tijolos, a qualquer custo.

Em seu livro O Sagrado Moderno, Avatar Moraes mostra que a arte só veio a existir com o capitalismo. Antes, o que existia era artesanato. Só virou arte depois que o capitalismo criou a possibilidade de aqueles objetos de artesanato (quadros, esculturas, tapetes) serem comprados ou vendidos. Atribuiu-lhes um valor monetário e as pessoas passaram a poder preferir um Picasso a um Modigliani ou um Rafael a um Ticiano. Sem a diversidade de gostos que o capitalismo propicia não existiria a arte como a entendemos hoje.

Tentando tornar o Enem e o Enade obrigatórios para todos, o Ministério não melhora o nível da educação. Está no encalço de uma meta inatingível e viola a liberdade de escolha. Todos hierarquizamos. Achamos umas pessoas mais simpáticas do que outras e uma marca de TV preferível a outra. Tudo bem se estamos num sistema de livre escolha.

Quando o MEC pretende tornar o Enem obrigatório, dizendo quem serve e quem não serve, está perigosamente atentando contra a liberdade. Que seria de Pelé se não tivesse passado no Enem? Ou de Luciano Pavarotti se não conseguisse aprovação em Matemática?

John Stuart Mill defende a importância da excentricidade porque ela é a fonte de toda inovação. O que seria do progresso da humanidade se algum órgão governamental proibisse a eletricidade de corrente alternada e o mundo inteiro tivesse de usar eletricidade de corrente contínua, como queria Thomas Edison? Um excêntrico e desconhecido búlgaro chamado Nikola Tesla inventou a corrente que sai da tomada de eletricidade: a alternada. Tornou nossa vida muito melhor com sua excentricidade.

Enquanto temos liberdade de escolha, tudo bem, quando falamos de monopólios as coisas se complicam. Dizem que Cuba tem um dos melhores níveis de educação do mundo. A pergunta que fica é: para quê? Para universitários trabalharem em fábricas de queijo ou enrolando charutos?

O milionário Bill Gates foi à Universidade de Harvard receber um diploma merecido por ter inventado o DOS e o Windows, que tocam seus computadores. Cumpriu a promessa que o jovem William Gales III fez ao pai, profundamente aborrecido porque seu excêntrico filho abandonara Harvard para criar uma empresinha chamada Microsoft.

Não importa se você gosta dele ou o detesta, mas o que teria sido de Luiz Inácio Lula da Silva se ele não tivesse sido aprovado no Enem? Ainda bem que não havia Enem e ele pôde entrar para a Escola do Senai, virar torneiro mecânico e depois presidente.

Durante o regime militar muitas sandices foram feitas por presidentes-generais, todos sabendo melhor as mesmas coisas, já que todos estavam entre os primeiros alunos das turmas das mesmas escolas militares em que estudaram exatamente as mesmas coisas.

Morro de medo de pessoas bem-intencionadas, sobretudo quando em grandes grupos e, pior ainda, quando são governo e têm o poder legal de impor seus desejos autoritários a todos nós.

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# Nota do IMB:

Como diz Nara Leão, em sua música Little Boxes,

As pessoas nessas casas
Vão todas pra universidade
Onde entram em caixinhas
Quadradinhas
iguaizinhas

Saem doutores, advogados
Banqueiros de bons negócios
Todos eles feitos de tic tac
Todos, todos iguaizinhos

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Leia também: A obrigatoriedade do diploma - ou, por que a liberdade assusta tanto?

 

Sobre o autor

Alexandre Barros

Cientista político (Ph.D. pela University of Chicago), é diretor-gerente da Early Warning: Análise de Oportunidade e Risco Político

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