Economia
O Congresso está prestes a criar uma reserva de mercado no crucial setor de transportes terrestres
A proibição a aplicativos pune viajantes de ônibus com serviços ruins e tarifas mais altas
O Congresso está prestes a criar uma reserva de mercado no crucial setor de transportes terrestres
A proibição a aplicativos pune viajantes de ônibus com serviços ruins e tarifas mais altas
A inovação e o empreendedorismo no setor de transporte rodoviário no Brasil estão sob forte ameaça.
Foi colocada em pauta na Câmara Federal, em caráter de urgência, a votação do projeto de lei que fortalece o retrocesso, limita investimentos e diminui a concorrência no transporte rodoviário no Brasil.
Trata-se do PL (projeto de lei) 3.819/2020, que altera substantivamente as regras de transporte interestadual de passageiros.
Os principais itens do Projeto de Lei
Como todos já devem saber a esta altura, a Buser é conhecida como a Uber dos ônibus. Trata-se de uma empresa que já atua em vários estados do Brasil, fazendo a venda de passagens por aplicativo para vários municípios e em horários fixos.
Os preços chegam a ser metade dos preços cobrados pelas empresas já estabelecidas no ramo.
A Flixbus é outra empresa semelhante, fundada em 2011 na Alemanha, e que chegou ao Brasil neste mês de dezembro (os trechos SP-RJ e SP-BH teriam passagens vendidas a R$ 19,90).
Ambas não atuam com ônibus próprios. Elas fazem parcerias com grupos que operam linhas regulares de ônibus rodoviários, e utilizam estes ônibus para suas viagens.
Era óbvio que tamanha concorrência gerada pelo livre mercado incomodaria as empresas que atuam neste mercado amplamente regulado pelo estado. As empresas tradicionais, que contam com fortes laços na política, agiram para proibir esta concorrência.
É aí que o PL 3.819/2020 entra em cena.
Eis os seus principais pontos:
a) O PL estabelece a comprovação de frota própria para atender a 60% das linhas pretendidas.
Ou seja, uma empresa pode ter apenas 40% de seus veículos terceirizados. Na prática, Flixbus e Buser — que não operam com veículos próprios — estão extintas no Brasil.
b) Impõe capital social mínimo de R$ 2 milhões
O que significa que pequenas empresas estão proibidas de surgir.
Apenas com estas duas restrições acima, empresas já afetadas pela pandemia podem deixar de existir.
c) O PL suspende todas as autorizações concedidas a partir de 30/10/2019.
Isto implica o encerramento de 15 mil linhas. Segundo o deputado Vinicius Poit (NOVO-SP), 27 milhões de brasileiros em 480 municípios ficarão sem nenhuma conexão rodoviária federal.
d) O PL veda a intermediação (aplicativos) na venda de passagens
Na prática, vendas online estão proibidas. Além do claro retrocesso em termos de praticidade, isto dificultaria o acesso do consumidor à diversidade de empresas e à comparação de preços.
Empresas como a ClickBus estariam extintas.
Os autores, os interessados e a resistência
De autoria do senador Marcos Rogério (DEM-RO), o PL já recebeu apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e também do senador Acyr Gurgacz (PDT-RO), ambos proprietários de empresas de ônibus.
Só a família de Pacheco é dona de duas empresas do ramo.
Mas Pacheco não é o único senador com flagrante conflito de interesses nessa tramitação. Chiquinho Feitosa (DEM-CE) é diretor-presidente de um grupo de empresas de transportes de passageiros com linhas intermunicipais e interestaduais em dez estados, mais o Distrito Federal.
Assim, é claramente possível perceber o interesse por trás da pauta.
O projeto tramitou no Senado, chegou à Câmara, ficou parado por alguns meses, e ressurgiu na última semana legislativa, com jeito de pauta marota de virada de ano. Pode ser votado a qualquer momento, sem o devido debate, no apagar das luzes do ano legislativo.
O presidente da Câmara Federal, Arthur Lira (PP-AL), até está tentando ajudar os colegas, mas é importante ele ficar atento ao caminho percorrido. A mobilização em torno do tema é grande, incluindo outros grandes nomes da capital federal e também empresários e usuários dos novos formatos de transportes rodoviários. Obviamente, o PL conta com forte apoio do lobby das empresas de ônibus.
O governo já encaminhou formalmente sua posição contrária ao projeto, que tem previsão de ir a plenário hoje, quarta-feira, 15/12. O PT protocolou o "kit obstrução", para tentar impedir a votação. PSB, Rede e PC do B também se manifestaram contrariamente, além de parlamentares do Novo.
Ataque à livre iniciativa
O mercado de viagens entre municípios é atendido por:
a) empresas consolidadas, como as dos senadores Pacheco e Feitosa;
b) microempresários donos de poucos veículos (ou apenas um); e
c) fretadores de turismo, que oferecem serviços para grupos fechados, alugando ônibus de terceiros.
Com o Projeto de Lei, as empresas consolidadas aumentam seu poder e sua fatia de mercado, ao passo que os microempresários donos de poucos veículos e os fretadores de turismo, que alugam ônibus de terceiros, são expulsos.
Nos últimos anos, os passageiros festejaram a chegada de aplicativos de fretamento compartilhado, como a Buser, que, por sua vez, direcionaram vitais negócios aos sofridos micro e pequenos empresários de transporte. Quem viajou recentemente atestou como é fácil e barato utilizar aplicativos que comparam preços de passagens.
Com o PL, tudo isso estará extinto.
Adicionalmente, além de ataques explícitos à livre iniciativa, o PL desavergonhadamente cria uma reserva de mercado para os grandes.
Por exemplo, ao ordenar a revogação de 15 mil linhas concedidas em 2019 e 2020 (que cobrem 6.000 novas rotas e atendem 128 novos municípios), a justificativa é que tais linhas foram concedidas sem licitação. Porém, desde a promulgação da Constituição de 1988, não houve licitação alguma de linhas. Todas foram autorizadas pelo respectivo poder concedente, sem licitação, ou dependem de medidas jurídicas. A revogação seletiva das linhas concedidas em 2019 e 2020 parece direcionada a castigar os aplicativos e novos entrantes.
Similarmente, a exigência mínima de 40% de frota própria foi incluída para restringir a operação apenas às grandes empresas capitalizadas.
Por fim, ao estabelecer a obrigatoriedade de "estudos de viabilidade", o PL cria uma imposição que o grande empresário tira de letra, mas que representa uma barreira burocrática desproporcional ao microempresário, carente de recursos, tempo e despachantes ou consultores especializados.
Dificuldades estabelecidas em lei —justificadas por (supostas) preocupações legítimas, mas cuidadosamente desenhadas para afastar competidores entrantes — são práticas protecionistas arraigadas e nocivas que não podem ser toleradas em uma sociedade livre.
Os reais prejudicados
Enquanto a sociedade acelera rumo ao desenvolvimento e inovação, alguns políticos e empresários insistem em retroceder.
Se aprovado, o PL pode afetar indiretamente mais de 100 milhões de usuários que perderão algum tipo de conexão em mais de mil cidades brasileiras. O texto tira do mercado pequenas empresas, que deixarão de atender cerca de 27,9 milhões de usuários em quase 480 municípios, até que alguma grande empresa de transporte assuma a rota, contrariando uma tendência de mercado.
Toda a inovação e oportunidades de mercados trazidos ao setor desde 2017 ficam ameaçados. A facilidade e a simplificação das vendas de passagens online, tanto para o fretamento colaborativo (divisão no valor do frete final) quanto no marketplace (disponibilização de passagens de todas as empresas, inclusive as que atuam em rodoviárias) serão abolidas.
Ademais, ao aumentar os custos, o PL ataca diretamente no bolso da população, diminuindo oportunidades aos consumidores, obrigando assim a permanência de um sistema velho e burocrático.
Por fim, ao tornar ilegais várias iniciativas já existentes, colocando em risco pequenas e médias empresas, a proposta pode desencadear em desemprego.
A população como um todo, que busca um serviço de mais qualidade e com menor preço, seria a maior prejudicada.
Ironicamente, além de todos os prejuízos aos usuários, o PL também promove a perda de receitas e tributos. O valor pode chegar a R$ 5,2 bilhões em consequência da ociosidade em mais de 29 milhões de assentos por ano. Os cofres públicos também sentirão as consequências. É estimada a perda de R$ 1,5 bilhão em impostos para municípios, estados e União.
Nosso rent-seeking
O PL 3.819 ousa atentar contra a economia compartilhada ("gig economy"), impulsionadora do crescimento no mundo, que melhora serviços e preços, e simultaneamente gera empregos e negócios para motoristas, freelancers, voluntários, artistas, trabalhadores sazonais, entre outros.
O projeto só tem benefício para as empresas que pararam no tempo, que não buscam novos negócios e querem manter o monopólio do setor.
Trata-se da perfeita ilustração do rent-seeking (ou "busca pela renda"): conquistar privilégios e benefícios não pelo mercado, mas pela influência política. Em uma economia baseada no rent-seeking, grupos de interesse capturam o estado e suas legislações com o objetivo de obter privilégios e bloquear a concorrência. Empresários concorrem entre si para ganhar favores de políticos, e não para oferecer a clientes produtos e serviços melhores ou mais baratos.
O grosso do lucro advém de privilégios garantidos junto ao governo e não da oferta de bens e serviços aos consumidores. A livre concorrência fica proibida de fazer sua mágica de derrubar preços e aumentar o poder de compra dos cidadãos.
Para concluir
A abertura do mercado não interessa apenas à Buser, à Flixbus ou a outras plataformas tecnológicas; interessa à sociedade como um todo, pois amplia o acesso da população, reduz o preço e chega a lugares que hoje não são atendidos pelas empresas arcaicas.
Os consumidores, por meio de suas opções voluntárias de compra, já se mostraram favoráveis aos novos modelos de transporte rodoviário. Trata-se de sinal verde para o #busãolivre. O foco agora é evitar retrocesso.
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