Economia
Três breves histórias hiperinflacionárias do Brasil
Este é o risco de se deixar políticos livres para imprimir moeda
Três breves histórias hiperinflacionárias do Brasil
Este é o risco de se deixar políticos livres para imprimir moeda
"A burrice no Brasil tem um passado brilhante e um futuro promissor" – Roberto Campos
Em junho de 1961, o economista institucionalista Douglass North fez uma visita ao Brasil por três semanas.
Enviado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, buscava avaliar e discutir a qualidade do ensino da ciência econômica no país.
Apesar disso, o real motivo era encontrar possíveis think tanks que propagassem a democracia liberal pela América Latina, evitando, assim, que surpresas soviéticas brotassem no quintal norte-americano.
Naquele momento de nossa história como nação, estávamos gestando uma das maiores desvalorizações monetárias já observadas no universo conhecido.
O gráfico abaixo mostra a evolução da base monetária e do M1 desde janeiro de 1946 (início da série histórica) até junho de 1961.
Gráfico 1: base monetária (linha vermelha) e M1 (linha azul), de janeiro de 1946 a junho de 1961
O governo JK havia acabado cinco meses atrás, Jânio Quadros era o presidente e João Goulart, o vice. Estávamos a três anos de um golpe militar que moldaria gerações e marcaria para sempre a economia e as instituições de nosso país.
Em meio ao caos geopolítico mundial, Douglass North passeava pela cidade do Recife e se encaminhava para um encontro com Celso Furtado, então presidente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).
Antes de encontrar Furtado, porém, escreveu em seu diário um diagnóstico preciso do que parece ser a grande doença econômica brasileira: "Dirigindo pela cidade, vejo uma linda praia rodeada de adensamentos residenciais e comerciais bem pobres, com massas de desempregados e subempregados".
O encontro ocorreu e os dois economistas concordaram em tantos pontos que Douglass North acreditou que Furtado estava apenas sendo cínico ou educado. North voltaria aos Estados Unidos e recomendaria investimentos no IBRE/FGV. Já Furtado permaneceria no Brasil e, para sua frustração, observaria que é impossível reduzir desigualdade social sem antes consertar a moeda circulante na economia.
O breve encontro ilustra perfeitamente o tema deste artigo. Aqui vamos contar três histórias, sobre as quais você realmente deveria perguntar aos seus pais durante a quarentena, a respeito de como nosso vício em inflação nos transformou no eterno "país do futuro".
Claro que é muito difícil selecionar apenas três histórias inflacionistas. O Brasil é um prato cheio de caos social e políticas econômicas desastrosas. Via de regra, seguimos a América Latina e estamos fadados a incorrer em populismos econômicos que, ao primeiro sinal iminente de falha, buscam remédios milagrosos e curas esotéricas.
Mas a verdade é uma só, e muito bem sintetizada por Pedro Malan, ex-ministro da fazenda: No Brasil, o futuro é duvidoso e o passado é incerto.
Milagre Econômico
"O Milagre da Produtividade: Deus é brasileiro, é carioca, é funcionário do Estado e é agente fiscal!" – afirmava ao Jornal do Brasil um "fiscal" que havia acabado de ganhar um bônus de produtividade por seu trabalho.
Nada resume melhor o que foi o Milagre Econômico de Delfim Netto do que um "fiscal" — sem qualquer especificação sobre o que fiscalizava — receber um aumento em meio a um dos maiores erros de política econômica na história do Brasil.
A história do Milagre começa com o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG). Ele foi implementado no começo da ditadura, trazendo medidas de cunho ortodoxo que reduziram inflação, o déficit fiscal e a emissão de moeda, além de corrigir algumas distorções tributárias.
O gráfico a seguir mostra a desaceleração na taxa de crescimento da oferta monetária e da base monetária a partir do final de 1965 até o corte de três zeros de março de 1967 (quando o gráfico perde a validade).
Gráfico 2: evolução da base monetária e do M1 até março de 1967, quando são cortados três zeros da moeda
Agora, o mesmo gráfico, só que mostrando a taxa de crescimento acumulado em 12 meses de ambas as variáveis. A base monetária, que chegou a crescer 100% em 12 meses, passou a crescer "apenas" 20%.
Gráfico 3: taxa de crescimento acumulada em 12 meses da base monetária e da oferta monetária
E a inflação de preços começou a ceder. O gráfico a seguir mostra a evolução do IGP-DI (único índice nacional disponível desde aquela época). Como se trata de uma média móvel de 12 meses, o valor na coluna da esquerda se refere a valores mensais. Para saber o valor acumulado a cada 12 meses, basta elevar o valor da coluna da esquerda ao expoente 12. Assim, o valor de 5,75 significa uma inflação de preços de 95% em 12 meses (1,0575ˆ12).
Gráfico 4: evolução mensal do IGP-DI (média móvel acumulada em 12 meses).
No entanto, políticas Econômicas acertadas no Brasil parecem apenas desculpas para incorrer em devaneios inflacionistas pouco tempo depois.
E foi exatamente isso o que aconteceu quando o 1º Choque do Petróleo atingiu o Brasil em 1973. Emílio Garrastazu Médici, então ditador do Brasil, viu-se obrigado a escolher entre duas soluções para a crise externa: i) Continuar as reformas ortodoxas e tentar corrigir a trajetória inflacionária da moeda; ou ii) Gastar, se endividar e criar infraestrutura por meio da inflação.
E foi construindo a TransAmazônica, Itaipú e a Ponte Rio-Niterói que o governo militar optou por destruir a terceira moeda brasileira e inaugurar os Planos Nacionais de Desenvolvimento I e II, os famosos PNDs. Foi nessa época que o regime decidiu massificar a corrupção ao criar 231 novas empresas públicas, desmembrando a Vale do Rio Doce e a Petrobrás em imensos conglomerados com diversas subsidiárias.
Apesar da cortina de fumaça da ditadura, alguns casos de corrupção, como os superfaturamentos da Odebrecht em Angra I e II, ganharam a mídia internacional e chegaram a ser denunciados pela revista alemã Der Spiegel. A construtora, que começou o regime como uma pequena empreiteira local, apresentaria o segundo maior faturamento do país em 1979, ao diversificar seus nefastos conluios com o Estado ao setor petroquímico.
Em 1985, a Ditadura Militar acabou. Eis o legado monetário e inflacionário.
Gráfico 5: taxa de crescimento acumulada em 12 meses da base monetária e da oferta monetária, de março de 1967 ao início de 1985.
Observe que, até 1973, o valor médio de crescimento da base monetária foi de 30% ao ano. A partir de 1975, a taxa explode e começa a verdadeira hiperinflação monetária.
Ao final de 1984, a base monetária está se expandindo a uma taxa de quase 200% ao ano, o que significa que ela está sendo triplicada a cada 12 meses.
E eis a taxa de crescimento do IGP-DI (média móvel acumulada de 12 meses). No início de 1985, a taxa de crescimento em 12 meses estava em 231% (1,1050ˆ12).
Gráfico 6: evolução mensal do IGP-DI (média móvel acumulada em 12 meses).
Incorrendo em clichês, as consequências econômicas lúgubres do regime são observadas até hoje. E a primeira delas caiu no colo de um maranhense extremamente culto.
Os Fiscais do Sarney e a Hiperinflação Inercial
José Sarney se formou em Direito em 1953 e adentrou a cena de emergentes poetas maranhenses no auge do Realismo Mágico latino-americano. Como no Brasil a maioria das pessoas não gosta de poesia, Sarney acabou se tornando Deputado Federal pela UDN em 1958.
Durante a Ditadura, escondeu-se na ARENA e, por meio de uma estranha diverticulite, assumiu a presidência de um país completamente dilacerado em 1985.
Sarney assumia o Brasil no 5º ano consecutivo de inflação anual acima de 200%. Na verdade, o Brasil enfrentaria quinze anos seguidos de inflação acumulada bem maior do que 100%.
Pense dois segundos sobre o que isso significa: se você guardasse em seu colchão o seu 13º, ele perderia mais da metade de seu poder de compra até o Natal seguinte. E isso apenas se analisarmos em média, porque, em alguns momentos, a inflação alcançava inacreditáveis 42% mensais.
E foi tentando consertar a moeda que José incubiu João Sayad de promover uma saída heterodoxa para o problema inflacionário. Assim nascia o Plano Cruzado, três zeros a menos aqui, congelamento amplo de preços por doze meses acolá, algumas pitadas de reajuste salarial automático sempre que a inflação atingisse ou ultrapasse 20%, e pronto! A receita para o desastre já estava no forno e seria servida a qualquer momento.
O plano não deu certo, mas não foi por falta de tentativa. Já que ressuscitando no melhor espírito ufanista de que "Deus é Agente Fiscal", Sarney decidiu convocar o que ficou batizado popularmente de: "Fiscais do Sarney". Recriando à moda brasileira o dilema regulatório: "Who Watches the Watchmen", todo e qualquer cidadão que observasse um supermercado aumentando o preço de seus produtos, e furando o congelamento, poderia denunciar ao governo a prática e restaurar um ininteligível equilíbrio econômico.
Mas o sistema de preços é algo inerente à vida em sociedade e, não adiantava subverter seu funcionamento, porque as consequências de qualquer intervenção desta magnitude sempre serão implacáveis. O governo do poeta se encerraria em 1990. O Brasil estava sem reservas internacionais, havia declarado uma moratória em 1987, estava com uma inflação galopante, em um crescimento econômico insustentável e às vésperas de escolher um presidente pela primeira vez em trinta anos.
Eis a evolução do IGP-DI desde 1967 (média móvel mensal em 12 meses). Em março de 1990, a taxa acumulada em 12 meses foi de 6.910%.
Gráfico 7: evolução mensal do IGP-DI (média móvel acumulada em 12 meses). Observe a queda artificial durante ao Plano Cruzado, em 1986.
O confisco da poupança
Retomando a desvalorização da moeda como uma visão de estado, tem início o governo de Fernando Collor de Mello. Apesar de prometer em campanha uma agenda liberal de abertura econômica, privatizações de estatais e caça aos marajás, Fernando traumatizou uma geração de brasileiros ao determinar o confisco da poupança em seu Plano Collor I.
Tudo começou como sempre começava: completa mudança da equipe econômica, alteração do nome da moeda circulante e corte na quantidade de zeros. No dia 16 de Março de 1990, Zélia Cardoso de Mello, então Ministra da Fazenda, determinou que 80% de todos os depósitos do overnight que excedessem NCz$ 50.000,00 fossem congelados por dezoito meses. A medida era uma tentativa desesperada de conter a hiperinflação que corroía o poder de compra e o futuro dos brasileiros.
Não deu certo. E não deu pelo que talvez seja a história mais surreal de toda a economia brasileira: o Brasil não tinha um Banco Central, propriamente dito, em 1991. A Base Monetária poderia ser expandida, sem um controle centralizado, por qualquer banco estadual (narrado em mais detalhes aqui). Qualquer ente federativo poderia emitir a própria dívida, ao invés de recorrer ao Tesouro Nacional e solicitar recuperação fiscal.
Com a novela em andamento, e nenhum esforço político de um Presidente da República que caminhava para o seu próprio impeachment, o brasileiro observou inerte a inflação anual de 1993 alcançar 2.447,15%. (Confira aqui os gráficos da evolução da Base Monetária e da Oferta Monetária no período Collor).
Não existem analogias palpáveis para compreender o que é vivenciar uma inflação de mais de dois mil por cento ao ano. Não há patrimônio que aguente quando o Brasil decide ser o Brasil.
Gráfico 8: evolução mensal do IGP-DI (média móvel acumulada em 12 meses). Após forte queda com o congelamento do Plano Collor, tudo volta ao "normal".
O preço de nascer brasileiro
Em 1994, após o impeachment e o governo interino, veio a estabilização da moeda. O Real, ao seu modo, curou o Brasil da hiperinflação. No entanto, o problema institucional gerado por essa ferida é incurável no curto e no médio prazos.
A realidade é que a hiperinflação não corroeu apenas o patrimônio de sua família durante quinze anos. O problema inflacionário corroeu a sensibilidade do brasileiro em perceber de forma acurada fenômenos de encarecimento generalizado nos preços.
Possivelmente, o melhor exemplo disso é a crença popular que o Real estabilizou a inflação e que nós, brasileiros, não temos mais que lidar com esse problema. A melhor e mais estável moeda brasileira já sofreu 452,9% de inflação nos últimos 26 anos. O dólar, mesmo sendo uma moeda fiduciária, precisou de mais de 50 anos para produzir a mesma quantidade de inflação. Já o Bitcoin e o ouro, por exemplo, jamais conseguirão produzir essa quantidade inflação.
Na verdade, não existe forma melhor de visualizar a história monetária brasileira do que realizar a conversão monetária entre um cruzado, quando foi concebido em 1942, e um real, em seu valor atual (maio de 2020): R$ 1 = Cr$ 3.741.195.622.457.685,77 (três vírgula sete quatrilhões de cruzeiros).
São 374 quatrilhões por cento de inflação.
Esse é o verdadeiro preço de nascer brasileiro e se expor às nossas moedas e políticas econômicas no longo prazo.
Este artigo foi originalmente publicado no site blocktrends.com.br
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