segunda-feira, 28 out 2019
Nota do Editor
O artigo abaixo foi originalmente publicado em setembro de 2018.
Com as recentes notícias sobre o ressurgimento do kirchnerismo, a recessão argentina, e a impressionante contração de sua produção industrial (queda de 14,7% em dezembro de 2018 em relação a dezembro de 2017 e queda total anual de 5% em todo o ano de 2018; seguida por uma nova queda de 14% em março de 2019 em relação ao mesmo mês de 2018), vale a pena rever o que foi dito, agora com dados mais atualizados.
Acima de tudo, vale absorver as lições para evitar que as trapalhadas e contemporizações sejam repetidas no Brasil.
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Em dezembro de 2015, último mês do governo de
Cristina Kirchner, a Argentina apresentava um déficit orçamentário de 5,1%
do PIB.
Dado que o governo argentino havia decretado moratória no
início da década de 2000, e reincidido em 2014, o
governo não conseguia se financiar facilmente via empréstimos no mercado
financeiro. Pior: os mercados internacionais estavam fechados para o governo do
país, tanto por conta desse histórico de moratórios quanto pelo descrédito
gerado pelos governos Kirchner.
Sem poder emitir títulos para se financiar, o então
governo Kirchner tinha duas alternativas para cobrir esse rombo orçamentário:
aumentar impostos ou imprimir dinheiro.
Aumentar impostos era inviável, pois estes já
estavam em níveis alarmantes. Segundo o relatório
de competitividade global do Fórum Econômico Mundial, a carga
tributária da Argentina já era simplesmente a mais alta das 138 economias
analisadas. Pior: desde 2002, a carga tributária do país — federal, províncias
e municípios — já havia aumentado mais de 10 pontos percentuais em relação ao
PIB.
A trajetória dos gastos públicos foi ainda mais
espantosa: eles aumentaram 20 pontos percentuais em relação ao PIB, com os
gastos consolidados do país chegando a 47,9% do PIB, uma cifra
claramente desproporcional.
Logo, sem poder se endividar e sem ter como aumentar
impostos, o governo Kirchner fez aquilo que os países latino-americanos
tradicionalmente fazem: colocou seu Banco Central para imprimir dinheiro e,
assim, monetizar a dívida. O Banco Central imprimia e repassava ao Tesouro. E
então o governo gastava.
Assim, de 2003 ao final de 2015, a base monetária da
Argentina — uma variável totalmente sob controle do Banco Central argentino —
aumentou
1.730% (ou seja, foi multiplicada por 18). Como consequência, a quantidade
de dinheiro (pesos) na economia argentina (M1) disparou
2.415% (ou seja, foi multiplicada por 25).
E o que sucede quando não existe uma grande demanda
por um ativo (neste caso, o peso argentino), mas este tem sua oferta
substantivamente aumentada? Correto, esse ativo perde valor. Internamente, a
perda de valor do peso estava se materializando em uma alta de preços galopante
(de
30% em 2015).
Externamente, tamanha inflação da oferta monetária
deveria ter se expressado na forma de uma forte depreciação cambial.
Entretanto, o governo Kirchner havia instaurado, desde 2011, o chamado 'cepo cambial': o
governo restringia a compra de dólares pelos cidadãos argentinos. O objetivo do
cepo era exatamente o de aprisionar os argentinos ao peso inflacionado,
impedindo-os de escapar (para o dólar) de uma moeda que o governo estava
inflacionando para financiar seus déficits.
Ou, dito de outra maneira, em vez de financiar o
excesso de gastos governamentais emitindo títulos da dívida nos mercados
globais, os Kirchner optaram por parasitar toda a população aplicando o "revolucionário"
imposto da inflação.
Esta era a bomba que, segundo o prometido, Maurício
Macri iria desarmar ao assumir a presidência: reestruturar as finanças públicas
para não mais financiar o déficit orçamentário por meio da impressão de pesos,
e abolir o cepo cambial.
O controle dos gastos em conjunto com o fim da
inflação monetária colocaria um freio na carestia e permitiria que o cepo
cambial pudesse ser abolido sem grandes traumas. Adicionalmente, o fim do cepo
supostamente atrairia investimentos estrangeiros e reativaria o crescimento
econômico.
Ajustes,
mas sem dor
Entretanto, o novo presidente argentino também prometeu
evitar qualquer tipo de ajuste duro. Em vez de medidas rápidas e decisivas,
houve a promessa
de gradualismo.
Em vez de aprovar um forte corte nos paquidérmicos
gastos herdados dos Kirchner, Macri anunciou,
tão logo assumiu a presidência, aumentos para os aposentados e para os
professores. E para não comprar briga com sindicatos e com o funcionalismo
público, não fez nenhuma indicação de que privatizaria estatais. A Aerolíneas
Argentinas, por exemplo, que foi estatizada pelos Kirchners e que dá um
prejuízo ao Tesouro argentino de 2
milhões de dólares por dia, segue intacta. Igualmente, a
estatal petrolífera YPF registra
prejuízos trimestrais milionários, e nada de o governo se desfazer dela. Já
o número de funcionários públicos continuou em níveis soviéticos (há 4
milhões de funcionários públicos na Argentina, sendo que aproximadamente
280 mil são fantasmas). Para completar, as dificuldades
para empreender seguem as mesmas (o país está na 116ª posição no
ranking de facilidade empreendedorial).
A intenção, portanto, era não se indispor com ninguém
e adotar apenas ajustes graduais e suaves. Nada que pudesse ser considerado
muito drástico. E nem severo.
Em termos realmente efetivos, seu plano consistia em
começar a casa pelo telhado: reestabelecer a credibilidade internacional do
governo argentino e abolir o cepo cambial antes de corrigir o déficit.
Acreditava-se que isso já bastaria para aumentar a
confiança, trazer os tão necessitados investimentos estrangeiros, e fazer a
economia voltar a crescer, as receitas tributárias aumentarem e o déficit cair.
Este era o plano. Nada de mudanças estruturais.
Apenas uma mudança de postura.
De
início, até que funcionou...
Como esperado, tão logo Macri chegou ao poder, em
dezembro de 2015, ele cumpriu a promessa e aboliu
o cepo cambial. A taxa de câmbio saltou de 10 pesos por dólar para 15
pesos por dólar.
Poucos meses depois, em abril de 2016, ele pagou
os credores internacionais que ainda resistiam a aceitar a moratória
soberana decretada em 2001. Naquele mesmo mês, o governo argentino voltou
a ser aceito nos mercados internacionais e conseguiu voltar a emitir dívida
nestes mercados — 40 bilhões de dólares a uma taxa de juros de 6,75% (em
dólares) ao ano — após 15 anos de exclusão.
O charme de Macri parecia estar surtindo efeito e o
plano parecia estar dando muito certo. Só que havia dois problemas: um interno
e outro externo.
...
mas depois desandou
O problema interno é que Macri fracassou completamente
em seu intuito de corrigir o déficit: em 2017, o desequilíbrio das contas
públicas alcançou 6%
do PIB — acima do registrado no último ano de Kirchner — devido ao fato
de que os cortes de gastos simplesmente não ocorreram.
Consequentemente, o governo argentino manteve-se
firme na tradição: continuou imprimindo dinheiro para bancar seus gastos.
Como mostra o gráfico abaixo, a expansão da base
monetária sob o governo Macri foi de 130% desde janeiro de 2016 até hoje.

Gráfico
1: evolução da base monetária argentina
Como consequência, a quantidade de dinheiro em posse
de pessoas físicas e jurídicas continuou crescendo tão ou mais intensamente sob
o governo Macri em relação ao governo Kirchner. O M1 cresceu 70% no mesmo
período (passando a apresentar enorme volatilidade em 2018, consequência de flutuações erráticas na taxa de juros, como será mostrado mais abaixo).

Gráfico
2: evolução do M1 argentino
Já o problema externo é que as taxas de juros nos
EUA começaram a aumentar. De dezembro de 2015 até hoje, elas subiram de 0,25%
para 2,50%, voltando recentemente para 2,25%.
Consequentemente, os títulos da dívida argentina
deixaram de ser vistos pelos investidores estrangeiros (de acordo com a razão
rentabilidade-risco) como um ativo interessante no qual depositarem seu capital.
E então os investidores estrangeiros começaram a
sair do país, trocando os inflacionados pesos por dólar, a taxas
cada vez mais aceleradas. Em 2018, a fuga de capitais da Argentina foi recorde.
Além dessa saída dos investidores estrangeiros,
houve a corrida dos próprios argentinos à moeda americana, um velho hábito
nacional em fases de grande incerteza.
Como inevitável consequência dessa estrondosa inflação
monetária e da fuga para o dólar, o peso não mais parou de se desvalorizar em relação
ao dólar. Em dezembro de 2015, eram necessários 10 pesos para comprar 1 dólar. Na sexta-feira, 9 de agosto de 2019, eram necessários 45 pesos. Hoje, segunda-feira, 12 de agosto, um dia após as eleições primárias do país (que apontam o forte ressurgimento do kirchnerismo), o dólar está custando 58 pesos. Um esfacelamento total da moeda argentina.

Gráfico
3: evolução da taxa de câmbio da
Argentina
Observe que, apenas em 2018, o dólar encareceu
mais de 100%. Em outras palavras, o peso se desvalorizou mais de 50% em relação
ao dólar. No total, desde dezembro de 2015, o peso se desvalorizou impressionantes 83%.
Como consequência dessa desvalorização da moeda, a inflação
de preços alcançou estonteantes 55% em 12 meses.
Para tentar conter essa crescente desvalorização da
moeda — cuja raiz, sempre vale repetir, é a inflação monetária —, o Banco Central argentino atuou para elevar a taxa básica de juros. E em doses cavalares.

Gráfico
4: evolução da taxa básica de juros na Argentina
Observe que, após um período de relativa calmaria em
2017, com a taxa básica de juros argentina em "apenas" 24,75% (quando o câmbio também
estava relativamente estável), a aceleração da saída
de capitais em 2018 em conjunto com a forte desvalorização do peso pressionaram a taxa básica de juros para 60%, tendo chegado a incríveis 74%.
Vale também notar que essas súbitas e acentuadas elevações
da taxa básica de juros geraram um ciclo vicioso: quanto mais a moeda se desvalorizava,
mais o BC atuava para elevar os juros para tentar conter a desvalorização. E quanto mais os juros subiam, mais as pessoas se assustavam com a gravidade da situação e mais
elas abandonavam o peso e fugiam para o dólar. E mais ainda o câmbio se
desvalorizava.
Trata-se do famoso exemplo das consequências
não-premeditadas: um súbito e acentuado aumento dos juros, com a intenção de
conter a desvalorização da moeda, acaba gerando o efeito exatamente oposto, pois
os investidores e os próprios cidadãos argentinos se assustam com a intensidade
das medidas e reforçam ainda mais a sua fuga. O raciocínio é: "Se os juros estão subindo desta maneira é porque a situação é muito pior do que
parece. É melhor eu sair do peso rápido!".
Com uma taxa de juros próxima de 70%, com uma moeda em
acelerado processo de desvalorização e com uma inflação de preços acima de 50%,
a produção industrial desabou quase 15 ao fim do ano.
Para resumir: dado que o déficit público nunca foi
corrigido, e dado que foi ficando cada vez mais caro financiá-lo com recursos
externos, os cidadãos argentinos e os investidores estrangeiros rapidamente
perceberam que a monetização dos déficits (impressão de dinheiro pelo Banco
Central) não iria acabar, e que, portanto, a inflação de preços não iria ceder.
Acrescente a isso o fato de que não mais há um cepo
cambial, e tem-se então um cenário de fuga generalizada para o dólar, o que
explica a brutal desvalorização do peso.
Para reverter esse cenário, o governo, além de subir
os juros, recorreu, ainda em maio, ao FMI para negociar um empréstimo
parcelado de US$ 50 bilhões (o que equivale à metade das atuais
reservas internacionais do país). Como isso não bastou para arrefecer a fuga do
peso para o dólar, o governo argentino voltou novamente o FMI em agosto e
pediu para antecipar
parcelas deste empréstimo. O objetivo era usar esses dólares para tentar
conter a desvalorização cambial.
Como mostra o gráfico 3, a medida, ao menos por ora, foi bem-sucedida, o que ajudou também na redução da taxa básica de juros, como mostra o gráfico 4.
O FMI, vale lembrar, é apenas uma burocracia global muito
bem nutrida com o dinheiro dos pagadores de impostos dos países-membros, e que
se dedica a malversar esses fundos emprestando-os a governos esbanjadores e insolventes,
aos quais nenhum investidor privado se arrisca a emprestar. A ideia de pedir empréstimo
ao FMI é ganhar tempo: ajudar a conter a desvalorização do peso sem ter de
fazer grandes ajustes e, então, torcer para que durante os anos seguintes haja
alguma estabilidade que permita à economia voltar a crescer, o que faria com que
os déficits caiam em decorrência das maiores receitas de impostos geradas pelo
crescimento econômico.
Além da ajuda do FMI, o governo argentino também apresentou
um pacote
de elevação de impostos (4 pesos extras sobre cada dólar de exportação primária
e 3 pesos adicionais sobre cada dólar das demais exportações) e de redução do número
de ministérios para tentar conter o déficit — e, com isso, em tese, não mais
ter de imprimir dinheiro para financiá-lo.
O
plano que nunca houve
Dito tudo isso, quem melhor resumiu as causas do
fracasso foi o economista argentino Roberto
Cachanosky:
Desde
o início do governo Macri, seus assessores lhe venderam a ideia de que não
haveria problemas em não se ter um plano econômico. O plano econômico era o
próprio Macri: isto é, bastava ele estar na Casa Rosada, com o kirchnerismo
fora do governo, que isso iria, magicamente, produzir uma chuva de
investimentos estrangeiros, os quais gerariam um mágico efeito de crescimento
econômico — apesar do monumental gasto público, da carga tributária
confiscatória e de toda a rígida e inflexível legislação trabalhista.
Todos
os sérios problemas estruturais que vinham se acumulando na economia argentina
desde décadas, e que foram levados a um extremo insólito pelo kirchnerismo,
magicamente seriam pulverizados pela simples presença de Macri. Esta era, no
fim, a verdadeira estratégia: a simples mudança de governo já bastaria para
fazer os investimentos dispararem, a economia crescer, as receitas tributárias
aumentarem e o déficit cair.
A
falta de um plano econômico consistente seria mais do que compensada pela
simples existência de Macri, a qual bastaria para mudar as expectativas e
alterar o rumo da economia sem a necessidade de grandes reformas estruturais.
De
concreto, o macrismo, no mínimo, subestimou a fenomenal crise herdada do
kirchnerismo. Um erro grosseiro tanto econômico quanto político.
Ao menos Macri teve a decência de, em seu último
discurso, reconhecer
que seu gradualismo foi uma medida errada e fracassada.
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