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A reforma agrária na África do Sul: o socialismo com outro nome

Como prometido pelo governo, começaram os confiscos de terra

27/08/2018

A reforma agrária na África do Sul: o socialismo com outro nome

Como prometido pelo governo, começaram os confiscos de terra

Ainda no início deste ano, o governo da África do Sul prometeu implantar um programa de reforma agrária baseado no confisco direto de terras, um projeto originalmente criado por Nelson Mandela.

E já está cumprindo a promessa.

O jornal britânico Express relata que o governo sul-africano começou efetivamente a confiscar terras agrícolas no país após "fracassar" nas negociações com os proprietários.

No dia 31 de julho, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, que havia acabado de ser eleito em fevereiro, confirmou que seu partido Congresso Nacional Africano (CNA) aprovaria uma emenda à constituição do país para permitir o confisco de terras em posse de proprietários brancos sem qualquer restituição. A emenda visa a permitir a distribuição de terra para os agricultores negros do país que estão muito descontentes com a demora da reforma agrária.

O senhor Ramaphosa alegou que a nova emenda era destinada a "delinear mais claramente as condições sob as quais a expropriação de terras sem compensação poderia ser efetuada".

Semana passada, o presidente do partido CNA, Gwede Mantashe, gerou pânico na comunidade agrária ao dizer que qualquer fazendeiro proprietário de mais de 25.000 acres de terra teria sua propriedade confiscada sem indenização.

O governo da África do Sul já começou a confiscar terras de agricultores brancos. O alvo mais recente foram dois proprietários de terras de animais selvagens na província de Limpopo, ao norte do país. O confisco ocorreu após as negociações com os proprietários -- Akkerland Boerdery -- chegaram a um impasse causado por uma enorme diferença no valor estimado para a indenização.

Tecnicamente, o programa de confisco parece mirar proprietários de terras com base no tamanho de suas posses, e não, estritamente falando, com base em sua raça. Na prática, no entanto, o que vem ocorrendo é que os proprietários de terra que estão sofrendo confiscos são majoritariamente "brancos".

Vários políticos da África do Sul, tanto do governo quanto da oposição, já explicitaram que o objetivo da emenda apresentada é exatamente este: fazer com que os agricultores brancos, descendentes de famílias holandesas donas de terras há mais de 400 anos, tenham suas propriedades confiscadas sem receber nenhum tipo de compensação.

Portanto, tal política sempre teve um explícito componente racial.

Donald Trump foi ao Twitter dizer que havia ordenado ao Departamento de Estado americano analisar a questão dos confiscos de terras em posse de "agricultores brancos".

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Por causa desta expressão, Trump foi duramente criticado pelo partido que está no poder na África do Sul por invocar a questão racial. Só que o componente racial da controvérsia é evidente.

Afinal, além de os próprios políticos sul-africanos admitirem isso em entrevistas, o canal estatal francês France24 afirmou diretamente, e sem rodeios, que a política "busca corrigir o legado de décadas de domínio de uma minoria branca, a qual despojou os negros de suas terras".

Socialismo é socialismo

É fácil, no entanto, alardear e enfatizar o componente racial.

Embora a animosidade racial e o desejo de reparação por crimes passados que "despojaram os negros de suas terras" pareçam ser o que motiva o atual regime, o fato é que confiscos de terra também são, do ponto de vista do governo, uma boa política.

Traduzindo: os confiscos podem estar sendo motivados simplesmente por um cínico desejo de premiar a base política do governo com "coisas grátis". Trata-se da velha política de distribuição de benesses para fins eleitorais. Ademais, proprietários de terra -- os prejudicados -- representam apenas uma ínfima porcentagem dos eleitores da África do Sul.

E é exatamente por isso que é importante não se concentrar apenas no aspecto racial da reforma agrária e, em vez disso, ver a medida pelo que ela realmente é: apenas mais uma política comum e rotineira voltada a expropriar a propriedade privada de um grupo para repassar a outro grupo.

Neste quesito, os confiscos de terra sul-africanos não se diferem fundamentalmente em nada de todos os outros episódios nos quais o estado confiscou terras, indústrias, lojas, residências e empresas em qualquer outra região do mundo.

No século passado, regimes de inspiração marxista confiscaram terras e propriedades agrárias baseando-se na ideia de que os proprietários eram excessivamente "burgueses" ou inimigos da "revolução". Isso também é o que vem ocorrendo na Venezuela nos últimos anos, em que empresas, terras, comércios e indústrias estão sendo confiscados dos "traidores da classe".

Ainda mais importante: tanto a motivação alegada pelo governo quanto a verdadeira motivação não importam quando analisamos os efeitos de qualquer tipo de confisco de terra e expropriação da propriedade privada.

Independentemente da motivação, o confisco estatal da propriedade gera consequências negativas sobre a economia, as quais podem ser desastrosas.

Ainda mais importante, confiscos de propriedade causam o grave problema da "incerteza gerada pelo regime" (um termo criado pelo economista Robert Higgs). Neste cenário, as incertezas quanto ao status jurídico e político da propriedade podem levar a significativos declínios no investimento e na produção. Em outras palavras, se os donos de propriedade não estão seguros e não sabem se sua propriedade será respeitada ou confiscada, eles não irão investir na propriedade e nem mesmo fazer manutenções de rotina. Para que investir em algo que pode ser confiscado amanhã?

Consequentemente, a incerteza gerada pelo regime leva à suspensão dos investimentos e à destruição do capital imobilizado graças a uma falta de investimentos e gastos em manutenção.

Isso já está acontecendo na África do Sul. De acordo com o jornal Express:

Um número recorde de fazendeiros sul-africanos brancos já colocou suas terras à venda em meio a temores de que o governo está considerando confiscar propriedades maiores que 25.000 acres.

Os proprietários estão, essencialmente, planejando seu êxodo da economia sul-africana, uma atitude perfeitamente compreensível. No entanto, há um problema: será muito difícil eles encontrarem compradores. Afinal, qual investidor -- um com reais meios para comprar e manter as propriedades -- irá comprar essas terras sob as atuais circunstâncias? No mínimo, alguém só irá comprar se for a um preço drasticamente reduzido.

E dado que ainda é bastante incerto quão abrangentes ou quão hostis serão os confiscos, a maioria dos potenciais compradores irá esperar para ver como as coisas irão se desenrolar antes de investir qualquer dólar no setor agrário da África do Sul.

E isso, como enfatizou Robert Higgs em seu trabalho sobre o assunto, é um dos aspectos centrais da incerteza gerada pelo regime: ela estimula investidores e proprietários a segurar e retardar investimentos, até que a incerteza diminua. Neste ínterim, os salários caem, os proprietários deixam de fazer manutenção nas máquinas e ferramentas, o capital se torna decrépito, e toda a economia entra em declínio. Escreve Higgs:

O investimento privado é a mais importante força-motriz do progresso econômico. Empreendedores precisam de novas estruturas, de novos equipamentos e de toda a uma cadeia de produção bem azeitada para produzir novos produtos, para produzir produtos já existentes a custos baixos, e para aplicar novas tecnologias em maquinários, estruturas, instalações e em outros aspectos da atual estrutura de capital existente.

Quando a taxa de investimento privado declina, a taxa de crescimento da renda real per capita desacelera. E quando o investimento privado cai rápida e substantivamente, uma recessão ou depressão pode ocorrer.

Um efeito mais amplo neste caso pode também ser o de que muitos dos residentes mais experientes, capacitados e ricos em capital irão abandonar a África do Sul, levando consigo todo o seu know-how (conhecimento, técnica, experiência).

 O governo sul-africano provavelmente irá -- como o estado sempre faz -- tentar dificultar e impedir que esses emigrantes levem seu capital com eles. Tal obstrução será relativamente fácil para o caso daqueles proprietários cuja riqueza está imobilizada na terra. Já os investidores estrangeiros, por outro lado, não terão este problema. Será relativamente fácil para os investidores estrangeiros tirar sua riqueza da África do Sul em decorrência das expropriações. Esse investimento pode nunca mais retornar.

Portanto, ao passo que os confiscos podem trazer alguns ganhos políticos para o partido que está no poder -- sendo, portanto, positivos no aspecto político --, o fato indelével é que tal medida é economicamente insensata, sendo, portanto, negativa no aspecto econômico. No final, é apenas o mesmo tipo de medida que foi implantada na Venezuela ao longo dos últimos anos. Os efeitos -- proporcionais ao tamanho do confisco que será efetuado -- serão os mesmos.

E, talvez, essa questão da "proporcionalidade" seja exatamente a aposta do regime. Mesmo que o governo sul-africano entenda todas as implicações econômicas da expropriação, o regime também sabe que a agricultura representa uma fatia relativamente pequena da economia da África do Sul. Menos de 3% do PIB do país é representado pela agricultura.

O regime pode, portanto, estar fiado na esperança de que é possível escapar relativamente ileso: ele sabe que pode estar destruindo o investimento neste setor, mas aposta que a destruição econômica resultante será bastante limitada.

E, ademais, se a economia sul-africana sofrer -- como já está sofrendo em decorrência de uma variedade de outros fatores --, o regime sempre pode recorrer ao velho truque de culpar algum outro grupo pelo problema, como os capitalistas estrangeiros, os imperialistas ou os "nativos reacionários e entreguistas".

Economicamente falando, no entanto, há a certeza de que, caso as expropriações continuem, as terras (tanto as confiscadas quanto as ainda mantidas) deixarão de ser usadas, os empregados destas terras ficarão sem trabalho, e a incerteza gerada pelo regime levará a um declínio geral nos investimentos tanto domésticos quanto estrangeiros.

No final, a real motivação para esta medida que visa ao confisco da propriedade privada é totalmente secundária. O que realmente interessa são suas consequências econômicas.


Sobre o autor

Ryan McMaken

Ryan é bacharel em economia e mestre em políticas públicas e relações internacionais pela Universidade do Colorado. É editor sênior do Mises Institute

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