Aproveitei o sábado e saí para um programa pouco
usual, pelo menos para mim. Precisava comprar um par de tênis, além de estar
devendo à minha mulher uma ida ao cinema. Estava na hora, portanto, de
enfrentar as agruras de um shopping.
Para quem é avesso a tumultos, um shopping lotado,
sábado à tarde, pode ser um martírio dos grandes. Por isso, aquele fim de
semana parecia o momento ideal, já que a cidade estaria vazia e deveria haver
muito menos gente que o normal.
A primeira parada foi no cinema. Um enorme complexo,
com quase vinte salas, modernas e confortabilíssimas, som e imagem perfeitos. O
ingresso foi caro, já que estamos entre aqueles que financiam a benemerência
dos políticos com idosos e estudantes, além da contumaz malandragem dos
falsários. Esse, aliás, é um dos motivos que me afastaram dos cinemas,
afinal, como todo mundo, não gosto de fazer o papel de otário.
Porém, como muito bem lembrou minha mulher, eu não
estava ali para aporrinhações, mas para me divertir.
Depois do filme, uma parada para um chopinho gelado.
O bar ficava bem em frente à saída do cinema, em um ponto estratégico, cujo
aluguel deve custar uma fortuna. O sujeito sai do cinema, com sede, e é quase
impossível resistir à visão daquele letreiro luminoso.
O serviço, porém, era muito ruim. O garçom demorou
uma eternidade para nos atender e o chope não era bom. Desse jeito, pensei,
esses caras não irão durar muito tempo neste local. Saímos dali correndo, já
que um pouco mais adiante havia outro bar.
Desta vez, não houve erro e degustamos alguns deliciosos
chopes gelados, cremosos, com espuma no ponto certo, sem falar no atendimento
cordial e eficiente.
Eis uma das grandes vantagens do regime de
concorrência. Caso não goste de um produto ou serviço, o consumidor é livre
para buscar outro fornecedor. A fuga dos clientes — e a consequente perda de
receitas — é, aliás, a maior punição que empresários ineficientes podem
receber, muito mais efetiva e dolorosa do que qualquer multa prevista nos
famigerados códigos de defesa do consumidor.
A terceira parada foi na sapataria. Confesso que,
atualmente, as opções são tantas que torna-se difícil a escolha. Havia centenas
de pares ali expostos, nas cores e modelos os mais variados possíveis. Os
preços, novamente, eram salgados, porém, se lembrarmos que perto de 50% do
preço são tributos, não dá para crucificar o comerciante.
Escolhi, inicialmente, três modelos para
experimentar. Não gostei de nenhum deles e pedi ao atendente para ver outros
dois. Ele sorriu e correu para apanhá-los. Enquanto esperava, comentei com
minha mulher sobre o fato de o funcionário haver permanecido cordial e
solícito, ainda que eu fosse um cliente muito chato e indeciso. Já ia começar
mais um daqueles discursos sobre a soberania do consumidor no capitalismo, ou
de como os interesses individuais daquele vendedor estão atrelados à minha
satisfação, quando (para sorte dela) o rapaz retornou.
Enquanto esperava na fila do caixa, minha veia de
administrador raciocinava sobre o destino do dinheiro que eu deixaria ali. Uma
parcela seria destinada a pagar os salários do atendente, do balconista, dos
funcionários administrativos. Outra parte serviria para o aluguel das
instalações, para os impostos, taxas, emolumentos e comissões. Um bom pedaço
proporcionaria a reposição do estoque, que envolve custos de transporte, armazenagem,
mais impostos etc. A última porção, provavelmente a menor de todas, seria
contabilizada como lucro e, mesmo assim, apenas depois de pagos todos os demais
custos e despesas inerentes ao negócio.
Eis um lado da moeda que muita gente ignora ou sequer
pensa a respeito. A maioria entra numa loja dessas, examina as mercadorias
expostas, não raro aluga o tempo dos funcionários e, no fim, vai embora sem
comprar nada. Faz parte do negócio. Cabe a nós, e somente a nós, consumidores,
decidir, voluntária e espontaneamente, se iremos trocar nosso dinheiro por
algum produto ou não. Ninguém pode nos forçar a nada. Se eu, por exemplo,
depois de ter experimentado todos aqueles pares de tênis, resolvesse finalmente
que nenhum deles me agradou, não haveria qualquer penalidade por isso.
Um pensamento puxa o outro e comecei a imaginar
quanto os donos daquela loja teriam investido em instalações, estoques,
treinamento etc. sem que tivessem qualquer garantia de que eu, um dia, entraria
ali, disposto a trocar o meu dinheiro por um dos produtos da vitrine. Ou, indo
um pouco mais à frente, que outros milhares de consumidores fossem adentrar,
mensalmente, aquele estabelecimento para comprar suas mercadorias, na
quantidade e velocidade necessárias para que o negócio se tornasse lucrativo.
Concluí que foram necessários algumas centenas de
milhares de reais — investidos, repito, sem qualquer garantia de retorno.
E então, pensei, o que faz a loja com os eventuais
lucros, depois de pagar todas as despesas? Provavelmente, reinveste a maior
parte deles no próprio negócio. Porém, por que deveriam os donos daquela
empresa repor aquele par de tênis que eu acabara de comprar ou investir na
ampliação do negócio? Competição. Se quiserem permanecer no negócio, têm que
ofertar sempre o que houver de mais moderno no mercado, a um preço sempre mais
barato, sob o risco de serem engolidos pela concorrência. Tudo isso sem
qualquer garantia de que amanhã as vendas não irão cair ou que os clientes não irão
descobrir um concorrente melhor e mais em conta.
Pensando bem, não é nada fácil a vida dos
capitalistas. E, no entanto, essas pessoas são, frequentemente, as mais caluniadas
do pedaço. Ninguém pensa em quantos empreendedores "quebram a cara" todo santo
dia, pelos mais variados motivos, e que somente uma minoria consegue vencer os
percalços e se estabelecer. Ou que os grandes e odiados magnatas são pessoas
cuja renda provém, na maioria das vezes, do empenho para satisfazer o
consumidor e dos riscos inerentes à sua atividade.
Quase ninguém pára e pensa que a poupança de
gerações pode virar pó, da noite para o dia, bastando para isso um breve
cochilo ou a interferência nociva da mão pesada dos governos. A maioria só
costuma olhar, com grande inveja, para a riqueza de uns poucos "privilegiados".
Paguei pelo tênis que comprara e despedi-me do
solícito vendedor com um "muito obrigado". A resposta dele não foi outra:
"muito obrigado, senhor". Já notaram como essa costuma ser a despedida padrão,
sempre que acabamos de comprar alguma coisa? E, pensando bem, o duplo
"obrigado" faz todo sentido. Encerrava-se ali uma transação que foi benéfica
para todos os envolvidos. Eu disse "obrigado" porque acabara de adquirir algo
que valia, para mim, mais do que o dinheiro que dei em troca. Já o vendedor
agradeceu por si — dado que certamente acabara de embolsar uma comissão — e
pelos donos da loja, que fizeram uma troca também lucrativa. No fim, todos saíram
ganhando.
Esta é a essência das trocas comerciais e o cerne da
magia que ocorre milhões, bilhões, trilhões de vezes todos os dias ao redor do
mundo. Ela ocorre em toda e qualquer transação econômica voluntária que é
empreendida em virtude da escolha humana. Ambos os lados — compradores e
vendedores — se beneficiam.
(É claro que um indivíduo pode mudar de ideia mais
tarde e se arrepender da transação. O futuro é incerto e os seres humanos são
volúveis. Porém, ao menos no momento da troca,
minha crença era a de que eu havia melhorado minha situação, caso contrário eu
sequer teria empreendido a transação.)
Assim, cada lado é um benfeitor do outro lado. Este
sistema de benfeitoria mútua, incessante e universal, leva à melhoria de todos
ao redor. Ele aumenta a sensação de bem-estar individual, que é o mesmo que
dizer que ele eleva o bem-estar social quando todo o mundo está envolvido na
atividade.
E
o estado se torna visível
Já era noite quando saímos do shopping em busca de
um bom lugar para jantar. Para nosso azar, no entanto, encontramos pela frente
um enorme engarrafamento, causado por um semáforo apagado. Perdemos ali quase
uma hora, graças à incompetência e ao descaso do serviço público, pois, além do
problema elétrico — provavelmente causado por falha de manutenção —, não
havia no local um único guarda de trânsito para colocar alguma ordem naquele
tumulto.
"É notável como os serviços públicos, os únicos que
pagamos não por opção, mas pela mais absoluta coação, são exatamente aqueles
que mais deixam a desejar" — esbravejei, já de mau humor, depois de conseguir
ultrapassar o tal semáforo queimado. "Dá só uma olhada nesse asfalto, todo
esburacado. Assim não há suspensão que aguente! Em compensação, olhe quantos
radares para multar o excesso de velocidade. Quando é para multar, os caras não
economizam. Ainda bem que não dependo do estado para conseguir meus sapatos,
pois fatalmente estaria andando descalço...".
Minha mulher, que conhece há bastante tempo o marido
irascível que tem, especialmente quando é vítima da inépcia dos governos,
esperou que eu acabasse aquele longo discurso anárquico para propor que, em vez
de jantarmos fora, pedíssemos algo para comer em casa, com o que concordei de
imediato.
E
o mercado volta para salvar
Pedimos, então, comida japonesa pelo "delivery"
habitual. Meia hora depois, embora já estivesse chovendo naquele momento, um
motoqueiro batia à nossa porta, trazendo consigo nossos sushis e sashimis, que,
além de deliciosos, trouxeram o meu bom humor de volta.
Enquanto pagava a conta ao solícito e eficiente
entregador, não por acaso lembrei da famosa sentença de Adam Smith:
Não é da benevolência do padeiro, do
açougueiro ou do cervejeiro que devemos esperar o nosso jantar, mas sim do
empenho deles em promover os seus próprios [e legítimos] interesses.
Sábias palavras.
Conclusão
O fato de várias pessoas não apreciarem como
deveriam as transações de mercado decorre da arraigada ideia de que o ato de
comprar e vender coisas não possui absolutamente nada de fantástico. Para elas,
tal ato não gera nada de positivo. Logo, a
sociedade poderia perfeitamente abolir tal prática e não piorar em nada sua
situação em decorrência disso.
É difícil tentar entender o que há na cabeça de
pessoas que pensam assim.
Se é verdade, como argumentei, que uma troca
econômica equivale a um ato benéfico bilateral, que é um exemplo de benfeitoria
mútua difundido por toda a sociedade, então se torna claro que a sociedade iria
soçobrar completamente caso não mais houvesse o máximo possível de
oportunidades para a ocorrência de transações econômicas.
Qualquer um que defenda o bem-estar da sociedade
deveria celebrar de maneira especial os centros comerciais, as bolsas de
valores, o comércio internacional, e todo e qualquer setor no qual o dinheiro
muda de mãos em troca de ativos ou bens. Tal ato significa apenas que as
pessoas estão descobrindo maneiras de ajudar umas às outras a sobreviver e a
prosperar.
Como escreveu o teólogo espanhol do século XVI Bartolomé de
Albornoz, conhecido principalmente por sua oposição à escravidão,
O
ato de comprar e vender é o nervo da vida humana que sustenta o universo. Em
decorrência deste ato, o mundo se torna unificado, as distâncias entre terras e
nações são enormemente encurtadas e pessoas de diferentes idiomas, leis,
culturas e modo de vida são aproximadas. Não fossem estes contratos, alguns
povos sofreriam escassez de bens que outros povos possuem em abundância, e não
poderiam também compartilhar os bens que possuem em excesso com aqueles países
que sofrem de sua escassez.
Se não formos capazes de ver a lógica por trás de
todo ato de troca e entender como ele atua para ajudar a todos, torna-se fácil
não valorizar o que o mercado e o comércio significam para a sociedade.
Raramente se dá ao mercado o crédito que ele merece
por ajudar a humanidade a melhorar sua situação econômica. Com efeito, o
mercado nada mais é do que a interação voluntária da humanidade com o intuito
de aprimorar o bem-estar público.