Até o início dos anos 2000, era comum jornalistas,
escritores, professores e políticos "que combateram a ditadura" lamentarem a
alienação dos jovens em relação à política.
Aquela "geração de 1968, o ano que não terminou"
parecia muita preocupada com esse distanciamento dos jovens, o qual, segundo
ela, resultava no alheamento das discussões políticas e numa falta de
preocupação com os rumos do país.
Agora, esses mesmos "formadores de opinião" e as
novas gerações que eles ajudaram a formar reagem horrorizados ao verem se
concretizar este mesmo envolvimento pelo qual sempre clamaram. E estão horrorizados
porque os jovens e adultos de hoje já não seguem mais o mesmo caminho
ideológico.
Pior: não apenas não seguem como ainda se tornaram
os seus antagonistas, alvos a quem eles dedicam insultos dos mais variados, que
vão do fas até cistas.
Para criar uma narrativa que soasse verossímil e
palatável, a intelectualidade que não pensa e a intelligentsia que
rumina passaram a difundir a ideia de que "o país está dividido". Se o país
está dividido, isso significa, para eles, que metade do país está ao seu lado.
É o exemplo perfeito e acabado do Método Artificial de Inflação Estatística: se
você precisa demonstrar um apoio numérico que não tem, seja o arauto da divisão
social.
Afinal, o que é essa "divisão do país" se não o fato
de as pessoas terem acordado para a eficiente ofensiva cultural esquerdista,
para a sua vitoriosa batalha pelo poder político e para as consequências trágicas
da esquerda no poder?
Mesmo que você ainda não tenha se dado conta da
dimensão do domínio da esquerda na cultura e na política brasileira, para
atestar o que digo basta verificar que quase todos aqueles que reclamam que o
país está dividido são de esquerda, simpatizantes da causa ou inocentes úteis.
Aqueles que hoje lamentam o acirramento das
discussões sobre política assim o fazem porque estavam acostumados a falar apenas
para companheiros de ideologia e de luta. Não tinham até então quem lhes
questionasse ou fizesse frente. Assim, padronizaram o discurso, estabeleceram
as regras do debate permitido, formaram a cabeça de professores, e definiram o
que os alunos deveriam aprender nas salas de aula. Forjaram, em suma, todos os
alicerces mentais e programáticos para que nós, brasileiros, aceitássemos sem
resistências o seu projeto de sociedade.
Tudo isso está muito bem explicado no excelente e
recém-lançado livro A
Corrupção da Inteligência – Intelectuais e Poder no Brasil, do
antropólogo Flávio Gordon.
Os intelectuais revolucionários brasileiros, como
bem mostra Gordon, pretendem nos conduzir — nós os simplórios —
"a uma concepção de vida superior", pois não somos considerados pessoas de verdade,
mas sim "um problema social" ou "representantes de uma classe que é preciso
emancipar" (p. 96-97).
Como no poema de Bruno Tolentino, eles hesitam "em
aceitar o mundo como tal,/ no drama intelectivo da pintura/" e assumem "toda a
condição do mal/ cognitivo do ser: o universal,/ a Ideia, a abstração em que a
figura,/ servida na bandeja ao Ideal,/ é referencial, ou seja, é a pura/ e
simples figurante de um esquema" (O
Mundo como Ideia, Editora Globo, 2002, p. 392).
Quando, porém, os intelectuais e a intelligentsia começaram
a ser confrontados, de forma polida ou agressiva, passaram a identificar nessa
divisão do país um mal a ser revelado, combatido e destruído.
Aí é que está: quando viram ruir a sua grande
muralha, iniciaram a denúncia da agressividade das discussões e da divisão da
sociedade por causa da política. Mesmo que o discurso agressivo estivesse bem
fundamentado, era ilegítimo porque violento, uma violência verbal similar à que
eles próprios usaram, legitimaram ou de que foram beneficiários.
O problema, claro, jamais foi a agressividade, posto
que acostumados estavam com esse tipo de estratégia política. Diante da
progressiva perda de prestígio e de influência na sociedade, e perante a
própria falta de argumentos e de dados empíricos que sustentassem o seu
discurso ideológico carcomido, a intelectualidade e a intelligentsia passaram
também a usar a vitimização como instrumento defensivo para tumultuar o debate
sem ter razão.
O que intelectualidade e a intelligentsia queriam
era que tudo continuasse como dantes no quartel d'Abrantes, que todos nós nos
mantivéssemos apáticos, indiferentes e calados. Que continuássemos a ser a
prova da estupidez de muitos, como apontou o Marquês
de Maricá, dado que somente em pouquíssimos casos apatia e indiferença
demonstram profunda sapiência. Se livres, lépidos e fagueiros, os
revolucionários poderiam continuar militando, distorcendo e mentindo
impunemente. Essa boa vida, porém, acabou.
Apesar de todos os erros cometidos neste momento de
transição pelo qual passa o país, é preferível os excessos que têm sido
cometidos na arena político-ideológica, imoderação própria de um processo de
maturidade, do que a passividade e a inércia que foram a marca do passado
recente, quando a sociedade brasileira parecia o artista da fome daquele conto
de Kafka que "não ousava queixar-se" e desculpava-se pelo que faziam contra
ele.
O Brasil, meus caros, não está dividido. O Brasil
está mais plural do que nunca. Só que a esquerda jamais aceitará que a
pluralidade não seja meras gradações de um mesmo tom de vermelho.
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Artigo originalmente publicado em outubro de 2017