segunda-feira, 16 out 2017
De
2009 a 2015 (ano dos dados mais recentes), o déficit habitacional no Brasil aumentou
5,9%.
Coincidentemente,
foi exatamente a partir de 2009 que a intervenção do governo no mercado
imobiliário se intensificou visando exatamente a reduzir o déficit habitacional.
Não
apenas a expansão do crédito imobiliário pelos bancos estatais aumentou
acentuadamente a partir de 2009 (como será mostrado abaixo), como também foi em
2009 que o governo federal lançou o Programa
Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), que tinha o objetivo explícito de reduzir
o déficit habitacional por meio de financiamentos imobiliários voltados
para as pessoas de mais baixa renda, estimulando esses indivíduos a tomar
empréstimos para adquirir a casa própria.
O
que houve?
As causas históricas do déficit
habitacional
Com
a inflação monetária e a consequente carestia se tornando galopantes ainda no fim
da década de 1950, a contabilidade das empresas e dos bancos tornou-se
extremamente distorcida (fenômeno detalhado neste
artigo). Por causa do rápido aumento dos preços, as receitas se tornavam
nominalmente maiores em um curto período de tempo e, consequentemente,
prejuízos operacionais se transformavam em lucros ilusórios, os quais eram
pesadamente tributados. Simultaneamente, o próprio custo de reposição de ativos
aumentava acentuadamente. Isso foi aniquilando o capital de empresas e
bancos. (Todo esse processo foi detalhado por Mario Henrique Simonsen em
seu livro 30
anos de indexação).
Como
consequência, os bancos reduziram a oferta de crédito, principalmente para a
aquisição de moradias, chegando ao ponto de, em 1963, a concessão de um
financiamento para a compra de um pequeno apartamento pela Caixa Econômica
Federal depender da expressa autorização do presidente da República.
Neste
cenário, em agosto de 1964, foi criado o Sistema
Financeiro de Habitação (SFH), para tentar remediar os efeitos desastrosos
da inflação no setor imobiliário. Obviamente, de nada adiantou, pois as causas
da distorção do mercado imobiliário — a inflação galopante — continuaram
intactas.
Assim,
com o crédito ainda escasso, os edifícios residenciais passaram a ser
construídos por meio do autofinanciamento dos condôminos, fenômeno que se
manteve até meados da década de 1990. Nesse arranjo, os prazos de término das
obras eram continuamente esticados, o que encarecia seus custos.
Para
completar, o incentivo ao investimento em imóveis residenciais para aluguel foi
destruído pelas sucessivas leis do inquilinato, que prorrogavam por prazo
indeterminado os contratos de locação residencial, determinando o congelamento
ou o semicongelamento dos alugueis.
O
resultado foi a atrofia da indústria da construção civil e a proliferação das
favelas, como manifestação ostensiva da crise habitacional gerada pelo estado.
Isso
durou até o início da década de 1990. Em 1997, foi criado o Sistema Financeiro
Imobiliário (SFI), que representou um avanço
em relação ao SFH, pois adotava critérios mais de mercado. Mas era muito pouco
e muito tarde.
Já
no início dos anos 2000, o direito social à moradia foi constitucionalizado,
passando a constar no art. 6º da Constituição Federal, em que constam os
direitos sociais. Em meados de 2004, os bancos estatais começam a intensificar
os empréstimos voltados à aquisição de imóveis. Em 2009, essa expansão se
acelera. Simultaneamente, o PMCMV é instituído legalmente por meio da Lei
11.977/2009, ancorado nessa garantia constitucional.
A expansão do crédito e as
distorções
Em
meio à crise financeira
americana, que temporariamente afetou os mercados de crédito ao redor do
mundo, a expansão do crédito geral no Brasil, que era mais expressiva nos
bancos privados, foi
reduzida.
Assim,
a partir de 2008, no intuito de enfrentar a crise internacional e manter a
economia aquecida, o governo brasileiro intensificou suas ações com políticas
anticíclicas: aumentou a oferta de crédito pelos bancos estatais,
na modalidade "crédito direcionado".
Crédito
direcionado representa os empréstimos que os bancos estatais são obrigados
a fazer a juros abaixo da Selic. Em termos práticos, o Tesouro repassa
dinheiro dos nossos impostos para os bancos, e estes então emprestam esse
dinheiro cobrando juros menores que a taxa Selic.
E
um dos setores mais privilegiados por essa expansão do crédito direcionado foi
exatamente o setor imobiliário. As pessoas tomavam empréstimos para comprar
imóveis e pagavam juros que chegavam a ser menos da metade da Selic.
Isso só era possível porque o Tesouro, por meio de dinheiro de impostos, bancava a diferença.
O
gráfico abaixo mostra a evolução dos empréstimos para a aquisição de imóveis.
Dado que o Banco Central tem a péssima mania de descontinuar uma série
histórica e criar outra nova, há duas linhas no gráfico, representando
exatamente a mesma variável:

Gráfico
1: evolução do crédito para o setor habitacional.
(Fonte: Banco Central)
Agora,
compare isso à evolução do crédito total, para todos os setores, ofertado pelos
bancos estatais (novamente, o Banco Central faz de tudo para atrapalhar,
descontinuando uma série e criando outra em seu lugar, com dados revisados):

Gráfico
2: evolução do crédito dos bancos estatais para todos os setores da economia
(Fonte: Banco Central)
Tendo
em vista os gráficos, é possível destacar os seguintes impactos financeiros:
1)
O saldo da carteira de crédito do financiamento imobiliário passou de R$ 48,9
bilhões, em janeiro de 2008, para R$ 500 bilhões ao final de 2015 (gráfico 1).
Um aumento explosivo de 920%.
2)
O saldo da carteira de crédito dos recursos direcionados cresceu de R$ 300
bilhões, no início de 2008, para R$ 1,6 trilhão ao final de 2015 (gráfico 2,
linha azul). Aumento de 433%.
Em
janeiro de 2008, o financiamento imobiliário representava 16% da carteira do
crédito direcionado. Já ao final de 2015, representava 31,25%.
Isso
significou um aumento de 95% na fatia que o crédito imobiliário passou a ocupar
na carteira do crédito direcionado.
Mais
crédito direcionado para a aquisição de um bem gera um efeito inevitável:
aumento acelerado dos preços deste bem.
A evolução dos preços dos imóveis
Há
dois índices oficiais utilizados para mensurar a evolução dos preços dos imóveis.
O
Índice de Valor de Garantias Reais (IVG-R) estima os valores de imóveis
residenciais utilizando os valores de avaliação dos imóveis dados em garantia a
financiamentos imobiliários residenciais para pessoas físicas nas modalidades
de alienação fiduciária e hipoteca residencial. Eis a evolução:

Gráfico
3: índice de evolução dos valores dos imóveis residenciais
Observe
que, de 2008 a meados de 2015, o valor dos imóveis aumentou 175%.
Já
a Mediana dos Valores de Garantia de Imóveis Residenciais Financiados (MVG-R) faz
o mesmo cálculo do IVG-R, mas utiliza valores nominais em vez de um índice. Eis a
evolução:

Gráfico
4: mediana dos valores dos imóveis residenciais
Ou
seja: qualquer que seja o mensurador, o preço dos imóveis aumentou aproximadamente
170% de 2008 a 2015. Tal aumento foi muito maior do que o aumento da renda das
pessoas ocorrido à época.
As consequências nefastas do Minha
Casa, Minha Vida
Para
contrabalançar o encarecimento dos preços dos imóveis, o que dificultava o
acesso dos mais pobres à casa própria, o governo recorreu ao Minha Casa, Minha
Vida. Foi o caso clássico de uma intervenção feita para corrigir os efeitos não-premeditados
de outra intervenção.
Só
que, como era de se esperar, o PMCMV apenas agravou a situação. Um
recente e abrangente estudo concluiu que esse programa do governo — o
qual, vale lembrar, é um financiamento para a compra de imóveis — foi o fator
preponderante para esse aumento generalizado dos preços dos imóveis.
A
lógica é direta: os financiamentos imobiliários baratos e subsidiados pelo
estado — via crédito direcionado — aumentaram a demanda geral por imóveis e,
consequentemente, seus preços. Com os imóveis mais caros, os pobres foram
empurrados para o Minha Casa, Minha Vida, um programa criado exatamente para
tentar remediar os efeitos inflacionários nos imóveis causados pela expansão do
crédito direcionado.
Por
meio do MCMV, os pobres se endividaram a taxas de juros ainda mais baratas que
as convencionais para comprar imóveis. Só que, ao incentivar adicionalmente essa
demanda dos mais pobres por imóveis, os preços gerais dos imóveis subiram ainda
mais.
Assim,
o governo criou um programa (Minha Casa Minha Vida) para remediar os efeitos
causados por outro programa (crédito direcionado barato para a compra de
imóveis, utilizado majoritariamente pelos mais ricos, que possuem melhor
histórico de crédito).
No
final, tudo ficou mais caro. E a consequência é que os pobres ficaram ou sem
capacidade de adquirir uma casa (indo para as favelas) ou extremamente
endividados. Para agravar, vieram a depressão econômica e a
acentuada queda na renda das pessoas, e o déficit habitacional, que deveria
ter melhorado, piorou.
Por
fim, e
ainda segundo o estado, outra consequência não-premeditada criada pelo
programa social foi que, com o aumento do valor dos imóveis, as famílias de
menor renda se afastaram das sedes urbanas. Isso, por sua vez, demandará
maiores investimentos na estrutura de mobilidade urbana. Ademais, por causa desse
encarecimento dos imóveis, os pobres terão de acumular mais dinheiro caso
queiram, no futuro, adquirir a casa própria — exatamente o oposto do objetivo
do programa.
Conclusão
Os
benefícios da intervenção estatal no mercado imobiliário, tanto por meio do
crédito direcionado quanto pelo PMCMV, foram menores que os custos sociais
observados. O objetivo de reduzir o déficit habitacional não só não foi
cumprido, como foi agravado.
É
verdade que os primeiros a aderir ao programa ganharam. Eles se endividaram a
taxas baixas e conseguiram comprar imóveis quando estes ainda estavam baratos. Porém,
isso se deu à custa dos últimos entrantes, que arcaram com os preços mais altos
e com dívidas que se tornaram impagáveis.
É
comum as políticas públicas no Brasil serem implantadas baseadas em intuições
de quem ocupa o cargo governamental, e não em estudos que avaliem corretamente
o alcance e a efetividade de suas ações — e, com poucas exceções, essa foi a
regra na última década. Por isso, é urgente romper com o paradigma de
"achismos" ao formatar políticas públicas.
No
entanto, considerando que o Programa Minha Casa, Minha Vida serviu para
capitalizar politicamente quem comandava a União — o
que não deve ser alterado no governo Temer —, não é de se descartar a
hipótese de que o real objetivo desse programa social, o de auferir
popularidade a determinados políticos, tenha sido cumprido.