Imagine que você esteja gravemente doente. Já existe
um determinado medicamento que garante maior bem-estar ao longo de seu
tratamento, e milhares de pessoas ao redor do mundo, com a mesma doença que
você, já o utilizam.
No entanto, você não pode ter acesso a esse
medicamento para se cuidar melhor.
Tudo porque esse medicamento ainda não foi aprovado
pela agência reguladora competente e, por isso, não está disponível no mercado
brasileiro. Mais: provavelmente, quando for liberado, você já não estará aqui
para fazer uso dele, diante da lentidão para sua aprovação.
Essa situação absurda é vivida por milhares de
brasileiros. Por causa da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), o
processo de validação e incorporação de novos medicamentos no Brasil é muito
lento. Há casos em que a espera para que inovações e avanços sejam permitidos
legalmente — e, aí sim, introduzidos em benefício dos pacientes — leva mais
de uma década.
Para exemplificar, o medicamento Lenalidomida,
utilizado para tratamento quimioterápico para leucemia e outros tipos de
câncer, é permitido
em dezenas de países com base em trabalhos publicados ainda na década
passada e que comprovaram sua efetividade. Contudo, a Anvisa indeferiu o
registro da droga alegando entender não haver estudos suficientes sobre sua
eficácia.
Entre as funções da autarquia está garantir a
segurança e a eficácia dos medicamentos disponíveis para os brasileiros; entretanto,
sua execução nessa tarefa é bem questionável.
Infelizmente, as restrições impostas equivocadamente
pela Anvisa vão muito além da Lenalidomida: ela barra o registro de vários
outros medicamentos já aprovados
nos Estados Unidos e na Europa e que poderiam salvar vidas de pacientes que
sofrem de diversas doenças. Apenas entre 2012 e 2014, a agência brasileira negou
o registro de quatro medicamentos que auxiliariam no tratamento a cânceres.
Atualmente, há pelo menos dez remédios contra câncer
já aprovados pelo FDA (a Anvisa americana) e por agências europeias que não
podem entrar no Brasil porque a Anvisa tarda em aprová-los. Essa burocracia,
como era de se esperar, criou um mercado negro de remédios no Brasil. Não é
incomum ver operações
em que a Receita Federal combate o "terrível" crime de se trazer
remédios importados a doentes brasileiros...
Mais: em 2010, a Anvisa deixou de aceitar
certificações internacionais, como a do FDA (a Anvisa americana), para aprovar
a importação de equipamentos médicos. Só que os burocratas da agência
demoram em média quatro anos para certificar equipamentos. Por causa dessa
demora, um hospital interessado em trocar um aparelho de ressonância é impedido
de importar máquinas de última geração. Só pode comprar a que foi lançada há
quatro anos, que já tem a certificação da Anvisa.
Afetando
as pesquisas
Tudo isso afeta diretamente as pesquisas privadas. Além
de seu alto custo, a morosidade e a burocracia imposta pela agência reguladora são
um dos principais entraves para a inovação na pesquisa médica e farmacêutica no
Brasil.
A causa do primeiro fator se dá pelos custos da
legislação trabalhista, bem como pelo sistema
tributário, que dificultam e eventualmente inviabilizam
a pesquisa privada. Já no que toca à burocracia, a
lentidão para aprovar novos medicamentos inibe investimentos por parte das
indústrias farmacêuticas, que deixam de fazer aportes financeiros em ensaios
clínicos no Brasil.
Aprovar um ensaio clínico no país demora,
em média, 270 dias. Entretanto, não é raro demorar mais de
480 dias. Em comparação, nos Estados Unidos, Canadá e Coreia do Sul e outros
países da América Latina a espera é de 30 a 90 dias.
Uma das justificativas para tamanha morosidade é o
fato de a Anvisa ser a agência sanitária com um dos maiores escopos
regulatórios do mundo: 2.200 funcionários analisam mais
de um milhão de processos por ano.
Uma solução para isso seria a flexibilização da
aprovação dos medicamentos. Nos Estados Unidos, a legislação permite que drogas
em estudos de fase II (a fase que avalia eficácia da medicação) tenham registro
preliminar. A justificativa é simples: eventual demora na aprovação de
medicamentos pode custar a vida de pacientes.
Entrementes, essa lógica não norteia as regulamentações
da Anvisa.
Uma proposição simples seria a aprovação automática
de medicamentos aprovados pela Food and Drugs Agency (FDA)
e European Medicines Agency (EMA), que são as agências
reguladoras dos Estados Unidos e da União Europeia. Elas possuem
regulamentações bastante criteriosas e, ainda assim, são
mais céleres na liberação de licenças.
A autarquia brasileira continuaria avaliando e
aprovando novos medicamentos, contudo os remédios poderiam ser disponibilizados
de imediato durante o processo de validação. Assim, a Anvisa examinaria as
drogas e colocaria avisos sobre elas, evidenciando as que fossem mais
arriscadas, a depender das classificações obtidas nas avaliações prévias.
Certamente, empresas e pacientes mais cautelosos esperariam pela aprovação da
agência reguladora, ao passo que outros analisariam o custo de oportunidade
delas e, diante de suas condições clínicas e orientações de seus médicos,
poderiam decidir e optar — ou não — por iniciar o tratamento com medicamentos
de vanguarda.
Essa solução simples daria segurança e permitiria
que nenhum paciente fosse impedido de adquirir um medicamento, se assim o
desejasse, evitando, por conseguinte, a esdrúxula situação explicitada alhures.
A
realidade é ainda pior
Diante desse cenário, fica a indagação: como
interpretar o fato de mais de 80 países considerarem um medicamento eficaz e o
Brasil não?
O professor da UFRJ e presidente da Associação
Brasileira de Hematologia, Homoterapia e Terapia Celular (ABHH) Angelo Maiolino
dá a dica: muitas vezes, a negativa da Anvisa para a entrada de medicamentos é
realizada sem
absolutamente nenhuma consistência científica.
A justificativa para a demora e muitas vezes não-aprovação
de medicamentos pela agência reguladora se dá, também, segundo o diretor
clínico da Oncoguia, Rafael Kaliks, pelos altos custos de alguns
medicamentos, os quais, ao serem utilizados na saúde pública, afetariam fortemente
o orçamento do governo. Diz
ele:
A
não aprovação de um medicamento nem sempre é feita devido a questões médicas. É
para evitar um desconforto de ter de aprovar um medicamento caro, a ser
utilizado apenas pela medicina suplementar e não pelo SUS. Assim se evita o
constrangimento de evidenciar um Brasil com duas medicinas.[...]
O
pensamento no SUS até tem lógica. Por que iria permitir a aprovação de um
medicamento caro para 1% de pacientes com um câncer específico enquanto não se
consegue resolver o problema da fila para cirurgia?
Ou seja, Kaliks diz acreditar que tanto a lentidão quanto
a não-aprovação da Anvisa tem origem no fato de que, se o medicamento for
aprovado, haverá um grande distúrbio no equilíbrio entre a medicina suplementar
(planos de saúde) e a pública. Isso além
do fato de que a liberação acarretaria custos muito altos para o orçamento da saúde.
Kaliks
conta como exemplo o caso de mulheres com câncer de mama, das quais 20% têm
metástase. Elas deveriam receber uma medicação chamada Herceptin, já aprovada
há mais de dez anos. Segundo o médico, porém, o SUS ainda não a incorporou,
enquanto na saúde suplementar (planos de saúde) já está havendo a combinação
deste medicamento, agora nem tão avançado, com outras drogas mais sofisticadas.
—
"Uma pessoa com câncer desse tipo tem sobrevida de 56 meses com tratamento na
saúde suplementar. No SUS a melhor hipótese de sobrevida é entre 20 e 22 meses.
São três anos de diferença na continuidade da vida de uma pessoa. É muita
diferença."
Ou seja, em vez de se ater apenas a analisar a
segurança e a eficácia de medicamentos, a Anvisa, ao atrasar ou não autorizar
registros de medicamento, é
utilizada como ferramenta de contenção de despesas pelo governo. Isso
é apenas uma das inevitáveis e nefastas consequências de se ter um sistema de saúde
socializado.
Mas por que então a Anvisa não simplesmente libera o
medicamento, ficando a critério do SUS utilizá-lo ou não? Ora, por motivos
óbvios. Com a negativa de registro pela agência reguladora, o governo
brasileiro evita o desconforto de aprovar um medicamento caro que seria
utilizado apenas pelo terço
dos brasileiros que possuem plano de saúde. Assim, ao
impedir quem poderia arcar com o tratamento de ter acesso a ele, o governo
evita o desconforto social de haver um paciente do SUS com tratamento diferente
de um paciente usuário de planos de saúde.
Uma outra razão é que, se aprovado o medicamento, o
sistema de saúde brasileiro — que é socializado e, por
isso, enfrenta grave
crise com o fenômeno da judicialização da saúde
— sofrerá pressões judiciais para custear esses novos procedimentos,
considerados dispendiosos.
Com isso, há a configuração daquilo que, nos EUA,
passou a ser chamado de death
panel: ao eventualmente não liberarem medicamentos, burocratas acabam
escolhendo indiretamente quem é digno de ter acesso a cuidados de saúde e quem
não é. Quem é digno de viver e quem é digno de morrer. Não é muito diferente
daquilo que ocorreu recentemente no Reino Unido com o bebê Charlie Gard.
Conclusão
No final, a socialização da medicina faz com que os
medicamentos disponíveis aos brasileiros não sejam aqueles aos quais os
brasileiros pensam que deveriam ter acesso, mas sim aqueles que especialistas
da Anvisa acham que devemos ter, sopesando, inclusive, a despesa que o governo
teria caso liberassem os medicamentos.
Apenas de câncer, na última década, 1,5
milhão de brasileiros morreram com a doença, ao passo que
se estima que mais
de meio milhão de brasileiros sejam
diagnosticados anualmente com algum tipo de câncer, com uma taxa de mortalidade
de 40%. Dezenas de outras doenças poderiam ser mais bem tratadas se os
medicamentos fossem liberados de forma mais célere.
Além disso, com a desburocratização para a
realização de testes clínicos, teríamos um impulso nas pesquisas, barateando a
busca por inovações farmacêuticas.
A despeito desse lamentável diagnóstico, os números
não parecem sensibilizar os burocratas e legisladores brasileiros a fim de
promoverem reformas institucionais que tornem mais célere a criação e liberação
de novos medicamentos no Brasil.
Diante disso, torça para que a situação descrita no
primeiro parágrafo não aconteça com você ou com um familiar.