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Filosofia

Quão livre é o "Livre Mercado"?

30/01/2008

Quão livre é o "Livre Mercado"?

Veja se você consegue perceber qualquer coisa de errado com a asserção abaixo, que parece ter sempre uma versão publicada em livros, revistas ou jornais em intervalos regulares de poucas semanas. Desde que passei a ler comentários sobre assuntos econômicos nos jornais, isso é uma constante:

A idéia dominante que guia a política econômica nos Estados Unidos e em grande parte do globo tem sido a de que o mercado é infalivelmente sábio. . . Mas, ultimamente, uma preocupação surpreendente entrou na conversa. O mundo se defronta com problemas de assombrosa complexidade e conseqüência, desde uma escassez de crédito em conseqüência de uma crise hipotecária, até a ameaça de aquecimento global. Regulamentação... repentinamente está sendo demandada por fontes inesperadas.

Um parágrafo como esse, publicado na seção de opiniões do The New York Times York Times, em 30 de dezembro de 2007 - em um artigo chamado "O Livre Mercado: Afinal, Um Falso Ídolo?" - faz qualquer um versado em histórica econômica ficar maluco de frustração. Quase todas as palavras são enganosas de várias maneiras. Mas, ainda assim, várias versões desse mesmo raciocínio parecem servir de base para vastas quantidades de opiniões sobre o assunto.

O argumento se desenvolve assim:

Até esse momento temos vivido em um mundo de puro capitalismo laissez-faire, com o governo e os intelectuais que fazem as políticas totalmente convencidos de que o mercado deve comandar as coisas, independente de tudo. Eventos recentes, no entanto, salientaram as limitações desse sistema cruelmente ganancioso e competitivo, e revelaram que ideologias simplistas não funcionam em um mundo complexo. Portanto, o governo, respondendo aos anseios públicos de que algo deve ser feito, decidiu cautelosamente atacar a cobiça, forçar a nós todos a amadurecer e ver a necessidade de uma economia mista.

Todas as três alegações estão erradas. Já estamos no centésimo ano de uma economia pesadamente regulamentada; e mesmo 50 anos antes dela se tornar assim, o governo já estava fortemente envolvido na regulamentação do comércio.

O aparato de planejamento criado para a Primeira Guerra Mundial definiu salários e preços, deu o monopólio da política monetária ao Federal Reserve, assumiu a propriedade completa sobre todos os nossos rendimentos através do imposto de renda, presumiu saber como os negócios integrados horizontal e verticalmente deveriam ser, e proibiu a criação de dinastias inter-gerações através do imposto sobre heranças.

Esse aparato de planejamento não desapareceu, porém ficou temporariamente adormecido, esperando por Franklin D. Roosevelt, que transformou essa maquinaria em um planejamento total durante os anos 1930, cujo mérito maior foi o de atrasar a recuperação do crash de 1929 até após a Segunda Guerra.

Quão draconiana é a intervenção é uma questão que varia de década para década, mas a realidade da tendência de longo prazo é inegável: mais impostos, mais regulamentações, mais burocracias, mais arregimentações, mais propriedade estatal, e cada vez menos autonomia para a tomada de decisões privadas. O orçamento federal é de aproximadamente $3 trilhões por ano, que é três vezes maior do que o orçamento médio do segundo mandato de Reagan. Desde que Bush foi eleito, explodiram as intervenções federais em todas as áreas de nossas vidas, desde a nacionalização da segurança das companhias aéreas até a pesada regulamentação do setor de saúde, passando pela centralização do controle da educação.

Com um "livre mercado" assim, quem precisa de socialismo?

Portanto, a primeira suposição de que vivemos em um mundo onde impera o livre mercado simplesmente não é verdadeira. Na verdade, trata-se de uma completa fantasia. Como é que jornalistas podem continuamente se safar com afirmações de que a fantasia é verdadeira? Como podem escritores informados continuar a nos impingir a idéia de que vivemos em um mundo laissez-faire que só pode ser melhorado se houver mais remendos governamentais?

A razão para isso é que a maioria das nossas experiências diárias na vida não é com o Ministério do Trabalho, do Interior, da Educação ou da Justiça. Mas, sim, com o McDonald's, Pizza Hut, Home Depot[1] e Kroger[2]. Passamos nossas vidas lidando basicamente com o setor comercial, porque mais visível e acessível, enquanto que as depredações do estado são em grande parte mais abstratas, e seus efeitos destrutivos quase não são vistos. Não vemos as invenções deixadas na prateleira, os produtos que não foram importados por causa das cotas e tarifas, as pessoas desempregadas por causa da legislação trabalhista e das leis do salário mínimo, etc.

Por causa disso, somos tentados a acreditar no inacreditável, a saber: que o governo atua como se fosse apenas um vigia noturno. E é somente acreditando nessa fantasia que se torna possível acreditar na segunda suposição, que diz que os problemas da nossa sociedade se devem à economia de mercado, e não ao governo que intervém na economia de mercado.

Considere a crise imobiliária. A máquina de imprimir dinheiro, chamada Federal Reserve, produz crédito veloz e mecanicamente para subsidiar o setor bancário, os negociadores de títulos, e os políticos gastadores que preferem pegar emprestado a taxar. É esse templo alquímico que distorce a realidade. E a realidade é que o crédito deve ser racionado de maneira harmônica à realidade econômica.

O Federal Reserve embarcou em uma jornada de crédito desvairado no fim dos anos 1990. Ele despejou algo em torno de $4 trilhões em dinheiro novo via mercados de crédito, tornando a expansão do setor creditício tanto inevitável como insustentável. Ao mesmo tempo, as agências federais que controlam e avalizam o grosso das hipotecas incharam-se além do imaginável. A popularidade das hipotecas subprime é a ponta de uma enorme porém encoberta montanha de dívidas - tudo em nome de se chegar ao "sonho americano" da casa própria através de uma maciça intervenção governamental.

Diga o que quiser deste sistema, mas ele não representa o livre mercado em ação. E, na verdade, a própria existência de um banco central é contrária ao ideal capitalista, no qual o dinheiro seria apenas um bem como qualquer outro: produzido e fornecido pelo mercado, seguindo-se leis morais contra o roubo e a fraude. Porque o governo autorizar um falsificador-em-chefe[3] constitui um ataque direto ao sistema de moeda forte que é o pilar de uma economia de mercado.

... e os planejadores governamentais serão como deuses

hayekcollection.jpgVamos para a terceira suposição, que diz que a intervenção do governo pode solucionar todos os problemas sociais e econômicos, sendo que o aquecimento global está no topo da cadeia. Digamos que permanecemos agnósticos quanto ao fato de haver ou não aquecimento global e de qual seria realmente sua causa (não há resposta estabelecida para nenhuma das duas questões, apesar do que você tem ouvido). A própria idéia de colocar o governo na função de mudar o clima dos próximos 100 anos é mais um delírio advindo da terra da fantasia.

A questão da complexidade é um ponto contra a intervenção governamental, não a favor. A maior contribuição de F.A. Hayek para a teoria social foi mostrar que a ordem social - que se estende para a totalidade do mundo - é extremamente complicada para ser manuseada por agências, e, ao contrário, depende é do conhecimento descentralizado e das decisões de bilhões de participantes do mercado. Em outras palavras, ele deu nova credibilidade ao insight dos liberais clássicos de que a ordem social é auto-gerenciável e só pode ser distorcida por tentativas de construir um planejamento centralizado. Ironicamente, o planejamento leva ao caos social.

Você não precisa ser um cientista social para entender isso. Qualquer um que tenha experiência com as burocracias do setor público sabe que elas não podem fazer nada tão bem quanto o mercado, e por mais imperfeito que os mercados sejam eles são imensamente mais eficientes e humanos do que o setor público, no longo prazo. Isso é porque o livre mercado confia na idéia da liberdade em geral, ao passo que outros sistemas imaginam que os homens que estão no comando são tão oniscientes quanto deuses.

Em um aspecto o The New York Times está certo: sempre há uma demanda por intervenções econômicas. O governo nunca vai achar ruim de ter mais poder, e ele sempre está preparado para ocultar os problemas que ele próprio cria. Uma economia que não é intimidada pelas elites que estão no poder é o ideal que devemos perseguir, mesmo que ele tenha um nome que seja sumamente impopular: capitalismo.

 


[1] Companhia de varejo que vende produtos para o lar - que não sejam móveis - e para a construção civil. [N. do T.]

[2] Rede #1 de supermercados nos EUA. [N. do T.]

[3] Para os austríacos, a idéia de haver um banco central imprimindo dinheiro do nada - sem qualquer lastro e com a conseqüente desvalorização da moeda - é o equivalente exato ao trabalho que faz um falsificador. [N. do T.]

Sobre o autor

Jeffrey Tucker

É Diretor-Editorial do American Institute for Economic Research. Ele tambÉm gerencia a Vellum Capital, é Pesquisador Sênior do Austrian Economic Center in Viena, Áustria.

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