quinta-feira, 29 dez 2016
O populismo de esquerda e o populismo de direita
mantêm retóricas divergentes: o de esquerda insufla o conflito entre ricos e
pobres; o de direita estimula o conflito entre nacionais e estrangeiros (e não
só os imigrantes, mas principalmente os produtores de outros países).
Ambos, no entanto, possuem um inimigo em comum: a
globalização econômica.
Para o populismo de esquerda, a globalização gera
uma oligarquia internacional que acumula "mais-valia" à custa da exploração do
Terceiro Mundo. Para o populismo de direita, a globalização empobrece a cultura
e a economia nacional ao abri-la à interação com o resto do planeta.
No domingo passado, Alberto Garzón, um dos expoentes
mundiais da esquerda populista e principal membro da liga formada por partidos
de extrema-esquerda espanhóis, a Unidos Podemos,
publicou no portal Eldiario.es um artigo
intitulado "A
extrema-direita é filha da globalização".
Seu artigo traz uma confissão bastante interessante
e inusitada: ele afirma que o processo de globalização econômica vivenciado
durante as três últimas décadas beneficiou
a maior parte da população do Terceiro Mundo. E beneficiou também os
"super-ricos". Já a classe média do primeiro mundo viu sua renda se estancar. E
é esse estancamento da renda das classes médias dos países ricos que está
alimentando seu rancor à globalização, empurrando essa fatia do eleitorado para
a "extrema-direita" nacionalista e protecionista.
Para ilustrar essa tese, Garzón recorre ao
mundialmente recém-famoso "gráfico
do elefante", elaborado pelo economista sérvio Branko Milanovic. Este
gráfico, em forma de elefante, mostra o crescimento da renda per capita durante
os últimos 30 anos de todos os percentis de renda. Como se pode observar, todas
aquelas pessoas que estão entre os percentis 5 e 65 da distribuição global da
renda (ou seja, as pessoas mais pobres do planeta) viram sua renda per capita aumentar entre 60% e 80%. Já as pessoas
a partir do 95º percentil da distribuição global da renda (ou seja, os
"super-ricos", segundo a esquerda) viram sua renda per capita aumentar de 20% a
60%. Por outro lado, a renda per capita dos cidadãos entre os percentis 75 e 90
(as classes médias do Primeiro Mundo) viram sua renda se estancar radicalmente.

Gráfico
1: crescimento da renda per capital real entre todos os percentis da
distribuição global da renda entre 1988 e 2008 (em dólares com poder de compra
de 2005)
Segundo Garzón, o erro da "esquerda anticapitalista"
perante a globalização econômica das últimas décadas foi o de não saber
capitalizar o descontentamento dos perdedores da globalização — as classes
médias do Ocidente rico — contra o sistema capitalista. Tal espaço eleitoral,
diz ele, acabou sendo ocupado pela extrema-direita.
Mas esse diagnóstico é profundamente errado. O líder
da Izquierda Unida está comprando a
propaganda falsa capitaneada pela direita populista (ou "extrema-direita", como
a esquerda gosta de dizer) porque tal propaganda lhe é também bastante útil:
ambas as correntes ideológicas têm o objetivo de desacreditar os benefícios
econômicos da liberdade econômica em escala global, pois isso lhes é
eleitoralmente interessante.
Como será demonstrado abaixo, o gráfico do elefante
de Milanovic não permite subscrever à tese de que os perdedores da globalização
foram as classes médias dos países ocidentais ricos. Ao contrário: o gráfico,
quando corretamente analisado, mostra que essas classes médias foram
notavelmente beneficiadas pela globalização econômica.
Os
ganhadores: o Terceiro Mundo e as classes médias ocidentais
Ao
analisarmos o gráfico de Milanovic, fica claro que os maiores ganhadores da
globalização durante as últimas décadas foram os cidadãos mais pobres do
planeta, ou seja, aqueles que estão entre os percentis 5 e 65.
Estamos falando de pessoas que, em 1988, usufruíam
uma renda per capita de algo entre 200 e 1.300 dólares anuais, e que, vinte anos depois, viram essa renda aumentar para
algo entre 250 e 2.100 dólares (com valores já corrigidos pela inflação). Tal
aumento real pode até não parecer nada espetacular, mas o fato é que, em termos
relativos, isso representou a maior redução da pobreza absoluta na história da
humanidade. Tenha em mente que, quando se vive com um nível de renda tão baixo,
qualquer aumento pode representar a diferença entre comer e não comer, entre
usufruir ou não água potável, e entre ter ou não acesso a itens essenciais.
Este
acelerado progresso no nível de vida de mais de 4 bilhões de pessoas já
deveria, por si só, servir de argumento
para a defesa da globalização econômica. Mais ainda: tais dados empíricos,
por si sós, já deveriam fazer com que a esquerda, que sempre se disse muito
preocupada com a situação dos mais pobres, abraçasse a globalização econômica.
Afinal, se os movimentos de esquerda estão
essencialmente preocupados com a situação dos mais pobres, e, como
reconhece o próprio líder da Izquierda Unida, a globalização contribuiu
para melhorar substantivamente o nível de vida dos mais pobres, então a
esquerda deveria ver com bons olhos o processo de globalização econômica.
Com efeito, os últimos 30 anos foram o único período
da história, desde o começo do século XIX, em que ocorreu uma redução das desigualdades globais.

Gráfico
2: evolução do índice de Gini em escala mundial
No entanto, a honestidade intelectual não é
exatamente algo muito presente nos debates e embates ideológicos. Para a
extrema-esquerda — da qual Garzón é um dos porta-vozes —, a globalização
econômica tem de ser combatida por aquele motivo de sempre: os super-ricos
formam uma pequena oligarquia que se aproveitou da globalização para se
enriquecer de maneira muito mais intensa do que as classes médias.
Mas há dois detalhes que são ignorados: primeiro, de
acordo com o próprio gráfico de Milanovic, as pessoas que estão no top 5% da
distribuição global da renda enriqueceram quase tanto quanto os cidadãos mais
pobres do planeta.
Segundo, o top 5% da população adulta mundial em
2008 representava 250 milhões de pessoas (hoje seriam 275 milhões). Isso é
muita gente para tão pouca oligarquia. Com efeito, a renda per capita média dos
percentis 95 a 99 era, em 2008, de 26.850 dólares. [À época, algo em torno de R$ 49 mil]. Isso significa que, para a
extrema-esquerda, todos aqueles cidadãos que tiveram uma renda anual igual ou
maior que 26 mil dólares [49 mil reais]
integram a plutocracia global que lucrou com a globalização. Sendo assim, e
contrariamente ao que diz Garzón, quase todos os cidadãos do Ocidente rico
pertencem a essa categoria.
Os
verdadeiros perdedores: os filhotes do socialismo real e o Japão
Portanto, se a imensa maioria dos cidadãos do
Ocidente rico está entre os "ganhadores da globalização" dentro do próprio
gráfico de Milanovic, quem afinal foram os perdedores? Isto é, quem integra os
percentis de 80 a 90, e que viu sua renda se estancar ou mesmo diminuir ao
longo do processo globalizador das últimas décadas?
Não foram as classes médias do Ocidente rico, mas
sim o grosso da população dos países ex-socialistas e também a fatia mais pobre
da população do Japão.
O think tank Resolution
Foundation se dedicou a desagregar
os dados utilizados por Milanovic para elaborar seu famoso gráfico do elefante
e o resultado foi, para dizer o mínimo, bastante chamativo. Se excluirmos o
Japão e as economias satélites da URSS, a renda per capita do Ocidente cresceu
entre 45% e 70% durante as últimas décadas para todas as faixas de renda. O
gráfico abaixo agrupa as rendas mundiais por vintis (e não por percentis), o
que significa que ele divide a renda em 20 faixas.

Gráfico
3: no eixo horizontal, as 20 faixas de renda (quanto mais à direita, mais rico
é o vintil); no eixo vertical, o crescimento da renda de cada vintil no período
1988-2008; a linha azul mostra o comportamento das 20 faixas de renda nos
países avançados excluindo Japão e os satélites bálticos da URSS; a linha
laranja mostra o comportamento para o resto do mundo excluindo a China; e a
linha vermelha mostra o comportamento do Japão e dos satélites bálticos
soviéticos.
O gráfico deixa claro que:
1) absolutamente todas as faixas de renda das
economias avançadas (linha azul) e das economias em desenvolvimento (linha laranja)
enriqueceram com a globalização.
2) no caso das economias em desenvolvimento, os
pobres e a classe média ganharam ainda mais que os ricos (como reconhece a
própria extrema-esquerda européia e a direita populista do países
desenvolvidos);
3) a população mais pobre do Japão e dos satélites
bálticos soviéticos foi a única perdedora.
Consequentemente, o estancamento da renda visto nos
percentis de 80 a 90 no gráfico do elefante se deve, acima de tudo, ao fato de
que a renda de metade do grupo formado pelas populações de Japão e
ex-repúblicas socialistas bálticas entra em queda a partir de 1988, e isso
empurra para toda a média para baixo.
Milanovic apresentou os dados agregados. A
desagregação destes dados mostra novas realidades.
A questão, logo, passa ser: qual foi a culpa da
globalização na débâcle das ex-repúblicas bálticas socialistas e do Japão?
Absolutamente nenhuma. O PIB dos antigos países socialistas caiu porque as estatísticas econômicas
destes países eram desavergonhadamente manipuladas e superestimadas, o que
sobredimensinou sua queda quando esses países se abriram e passaram a divulgar
dados mais realistas. Já o PIB do Japão se estancou em decorrência do estouro
de uma gigantesca bolha de crédito financiada essencialmente por capitais internos e pela péssima
política econômica implantada subsequentemente pelo governo japonês. (Veja
todos os detalhes sobre o que aconteceu no Japão neste artigo).
Ou seja, a causa do estancamento de uma faixa da distribuição
global da renda durante o período 1988-2008 se deveu exatamente ao torpe e
exacerbado intervencionismo estatal, que é justamente a bandeira da
extrema-esquerda. Se essa fatia da população representa os "perdedores da globalização"
não é porque a globalização os empobreceu, mas sim porque a inépcia de seus
políticos e o desastre de suas intervenções econômicas impediram que essas
pessoas tirassem todo o proveito possível da globalização.
Conclusão:
a esquerda populista fornece o combustível ideológico para a direita populista
Em definitivo, os principais beneficiários da globalização
durante as três últimas décadas foram as camadas mais pobres da população mundial.
Nas economias em desenvolvimento, todas as classes sociais enriqueceram. Nas
economias ricas, a renda da classe média não apenas não se estancou, como também
cresceu mais de 45% (quando descontada a influência estatística distorciva dos
países bálticos ex-socialistas e do Japão).
Ainda assim, há quem possa dizer que os gráficos acima
não dizem muito, pois vão apenas até o ano de 2008, exatamente antes da crise econômica. Porém,
se
atualizarmos o gráfico até 2011 (momento em que o pior da crise já havia
sido superado), o que observamos é que os resultados são ainda mais
espetaculares para os mais pobres. Mais ainda: os percentis 80 a 90 ficam ainda
melhores do que no gráfico anterior.

Gráfico
4: crescimento da renda per capital real entre todos os percentis da
distribuição global da renda entre 1988 e 2011 (em dólares com poder de compra
de 2011)
Em ambos os gráficos, o resultado evidente é que os
ganhadores da globalização foram os mais pobres do planeta, cuja renda mais do
que duplicou durante as últimas décadas. Por sua vez, os cidadãos do Ocidente
rico não foram prejudicados em termos gerais, ainda que uma minoria deles —
ligada àquelas indústrias mais defasadas e que foram afetadas pela nova
concorrência global — de fato possa ter sido.
O ressurgimento do populismo de esquerda e de
direita observado durante os últimos anos está muito mais vinculado ao
empobrecimento derivado da crise econômica de 2008 (causada pela expansão artificial
do crédito comandada pelos Bancos Centrais), à imigração muçulmana e a uma reação
à cultura do politicamente correto do que ao processo de globalização econômica
das últimas décadas. (Qual era a força desses movimentos populistas em 2007,
quando o gráfico do elefante de Milanovic já havia computado todos os efeitos
da globalização?).
Por fim, vale apontar uma incoerência da esquerda
populista dos países ricos: segundo ela, o processo globalizador, não obstante
tenha tirado mais de 4 bilhões de pessoas da pobreza, é algo negativo e deve
ser interrompido apenas porque prejudica os ganhos de alguns industriais da classe
média dos países ricos.
Felizmente, e como acabamos de demonstrar, nem mesmo
este raciocínio procede, uma vez que a renda da classe média dos países ricos
ocidentais não apenas não se estancou durante os últimos 30 anos de globalização,
como ainda cresceu mais de 40% (gráfico 3).
Era de se esperar que a esquerda defendesse com
vigor um processo que, como ela própria reconhece,
retirou 4 bilhões de pessoas da pobreza.
Infelizmente, o mundo está ficando cada vez mais
dividido entre o socialismo nacionalista e o nacionalismo mercantilista. A direita
populista não é filha da globalização: em parte, ela é filha das mentiras que a
esquerda populista inventou sobre a globalização.