Notícia global do momento, o "escândalo" dos
Panama Papers
consiste de um conjunto de 11,5 milhões de documentos confidenciais que foram
vazados da base de dados da empresa Mossack Fonseca, uma sociedade de advogados
sediada no Panamá. Esses documentos
vazados fornecem informações detalhadas sobre mais de 214.000 empresas criadas
em
refúgios fiscais
offshore, incluindo as
identidades dos acionistas e administradores.
Na prática, os "Papeis do Panamá" expõem várias
personalidades que se utilizaram da benevolente legislação fiscal do Panamá
para ou escapar da Receita Federal de seus respectivos países ou para ocultar
patrimônio obtido por meio da corrupção.
O problema é que, quando se fala de refúgios
fiscais, há sempre mocinhos e bandidos, e é bom não misturar todos no mesmo
balaio.
Não
é "paraíso fiscal", mas sim "refúgio fiscal"
Thomas
Piketty, autor do famoso livro O Capital no Século XXI,
enxerga os refúgios fiscais como
"países que roubam as bases tributárias de seus vizinhos".
Segundo um colaborador próximo de Piketty, Gabriel
Zucman, a riqueza escondida nos refúgios fiscais chegam a 7,6 trilhões de
dólares, o que dá 10% do PIB mundial (e 15 vezes o PIB da Argentina).
O argumento de Zucman contra os refúgios fiscais faz
coro ao que dizem todos os defensores do estado e de seus programas de
redistribuição de renda: os refúgios fiscais constituem um problema maiúsculo,
uma vez que todo esse dinheiro não está sendo utilizado na forma de impostos em
seus países natais, impostos esses que os governo poderiam utilizar para fazer
todas as obras e programas de redistribuição que estes analistas consideram
desejáveis.
Os malvados ricos, ao recorrerem aos refúgios fiscais
para proteger seu patrimônio da sanha dos burocratas do estado, não estão
contribuindo como deveriam para sustentar as crescentes despesas exigidas dos
estados de bem-estar social.
Para essa turma, o dinheiro das pessoas pertence na
verdade ao estado e este deve tributar o máximo possível. O governo, de acordo com esta visão de mundo,
é o ente que está na melhor posição de administrar os recursos das
pessoas. Sendo assim, eles lamentam que haja
pessoas que consigam manter seus proventos longe das garras do estado, fazendo
com que o governo não seja capaz de confiscar o tanto que gostaria do dinheiro
dos cidadãos.
Não obstante, há alguns detalhes sobre os refúgios
fiscais que devem ser mencionados.
O primeiro que deve ser dito é que a denominação
"paraíso fiscal" surge de uma má tradução.
Em inglês, o termo tax haven
não significa "paraíso fiscal" (teria de ser tax heaven para ter esse significado), mas sim "refúgio
fiscal". Essa tradução explica com maior
realismo o que ele verdadeiramente é: um refúgio fiscal, ou seja, um país para
onde várias pessoas mandam seus proventos a fim de escapar da voracidade fiscal
de seus governos.
O atrativo de levar seu dinheiro a um refúgio fiscal
surge do fato de estes locais, em geral, dispensarem um tratamento muito
favorável aos estrangeiros que abrem contas bancárias ou constituem sociedades
nessas jurisdições. Em alguns casos,
estabelecer a sede de uma empresa em um refúgio fiscal pode representar a
diferença entre pagar 35% de impostos sobre a renda ou zero por cento.
E o benefício não é usufruído apenas por essa
empresa; ele perpassa toda a economia. Todos nós somos beneficiários dos refúgios
fiscais. Como?
Quem vive em países desenvolvidos sabe que os
impostos sobre a renda e sobre a propriedade são hoje provavelmente muito
menores do que eram há 30 anos (inclusive nos países
nórdicos). Isso se deve, em parte,
ao surgimento e subsequente popularização dos refúgios fiscais. Em 1980, as maiores alíquotas do imposto de
renda de pessoa física nos países membros da OCDE eram, em média, de 67%. Para pessoa jurídica, as alíquotas chegavam a
quase 50%.
A partir das administrações Reagan e Thatcher, os
governos começar a diminuir suas alíquotas e a reformar seus regimes
fiscais. Atualmente, a alíquotas máximas
para pessoas físicas estão ao redor de 40% e para pessoas jurídicas, em torno
de 27%. Mesmo nos países em
desenvolvimento, as alíquotas máximas dos impostos diretos sobre pessoas físicas
seguem relativamente congeladas desde a década de 1980.
Em grande medida, foi a globalização — e não a
ideologia — o que conduziu esta virtuosa "descida morro abaixo". Os governos foram forçados a reduzir seus
impostos porque temem que os empregos e os investimentos fujam de seus
respectivos países.
Ao fornecer um refúgio seguro para as pessoas que
querem escapar de alíquotas confiscatórias, os refúgios fiscais desempenharam
um papel imprescindível. Os políticos e
legisladores concluíram que é melhor receber alguma receita com alíquotas
menores a impor altas alíquotas e perder receitas.
É comum ver a acusação de que os refúgios fiscais servem
de abrigo e proteção não apenas às vítimas do estado fiscalmente voraz, mas
também a terroristas, narcotraficantes e políticos corruptos (mais sobre isso
abaixo). Essa acusação procede. No entanto, desnecessário dizer que os
responsáveis por punir essas pessoas são os estados do seu país de origem —
que, aliás, falharam miseravelmente nessa atribuição —, e não um arranjo
voltado para proteger a privacidade e a propriedade das pessoas. Culpar os refúgios fiscais pela existência de
criminosos é o equivalente a culpar a faca pelo esfaqueamento.
No mais, a função de perseguir e punir criminosos é
da polícia e do poder judiciário, e não dos arrecadadores de impostos.
Que muitos criminosos se escondem nestes países é um
fato que ninguém ignora, mas muitos dos milionários e bilionários que depositam
sua fortuna nestes paraísos estão apenas fugindo da ferocidade dos governantes,
que estão sempre a falar de justiça social, a alimentar a luta de classes, e a
extorquir as pessoas mais competentes, tudo para alimentar o leviatã, que está
a devastar o mundo.
A raiva gerada pelos refúgios fiscais deveria, com
efeito, ser redirecionada para outro lugar: as elevadas alíquotas que cobram os
governos, os quais nos confiscam não apenas nosso dinheiro, mas também nossa
liberdade, sobretudo empreendedorial. Os
refúgios fiscais, erroneamente chamados de "paraísos fiscais", nada mais são do
que uma reação a esse estado de coisas.
Aqueles
que mais defendem impostos são os que menos pagam
Há, no entanto, algo de extremamente interessante
nos "Panamá Papers", o qual deveria ser a principal lição a ser extraída da
notícia: a maioria das elites políticas — de todos os países do mundo — está
utilizando corruptamente as instituições estatais para lucrar à custa de seus
compatriotas, remetendo o esbulho para as offshores por meio de
testas-de-ferro.
Nos papeis que vazaram até o momento figuram:
Chefes de estado e de governo atuantes: o presidente
ucraniano, o rei da Arábia Saudita, o presidente argentino, o presidente dos
Emirados Árabes Unidos.
Chefes de estado e de governos passados: o
recém-renunciado presidente da Islândia, um ex-presidente do Sudão, e os
ex-primeiros ministros da Geórgia, do Iraque, da Jordânia, da Moldávia, do
Catar e da Ucrânia.
Ministros e políticos variados: o ministro das indústrias
da Argélia, o ministro do petróleo da Angola, o prefeito de Lanús na Argentina,
o presidente do Tribunal de Apelações de Botsuana, o presidente da Câmara dos
Deputados do Brasil, um ex-ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, o ministro
da Justiça do Camboja, um ministro da Indústria e Desenvolvimento da República
do Congo, o presidente do Banco Central do Equador, um ex-ministro da fazenda
francês, o ministro das finanças da Islândia, o ministro da Saúde de Malta, um
ex-ministro da economia da Palestina, o diretor do centro de inteligência do
Peru, um ex-prefeito de Varsóvia, o ministro do Interior de Arábia Saudita, um
ex-chefe das forças armadas da Venezuela, um ex-diretor da petrolífera pública
venezuelana PDVSA, um ex-embaixador dos EUA na Zâmbia, e deputados brasileiros,
congoleses, húngaros e ingleses.
Amigos ou parentes de políticos: um assessor político
dos Kirchner, o empreiteiro mais próximo do presidente mexicano Enrique Peña
Nieto, a família do presidente do Azerbaijão, o marido de um deputado canadense, um cunhado do presidente chinês,
uma filha do ex-primeiro ministro chinês, um filho do ex-ditador egípcio Hosni
Mubarak, um filho de um ex-presidente de Gana, a viúva de um ex-presidente de
Guiné, um filho do vice-presidente de Honduras, um neto do presidente do
Cazaquistão, um filho do primeiro-ministro da Malásia, o assistente pessoal do
rei de Marrocos (Maomé VI), vários netos do primeiro-ministro do Paquistão, o
amigo pessoal de Putin, um sobrinho do presidente da África do Sul, um filho de
um ex-presidente da Coréia do Sul, uma irmã do rei emérito da Espanha, o pai de
David Cameron, e o filho de Kofi Annan.
Evidentemente, nem todos os que figuram nessa lista
não-exaustiva necessariamente obtiveram sua fortuna de maneira ilícita
(roubando seus compatriotas). Porém, sua
proximidade e cumplicidade com o poder político deveria fazer soar todos os
alarmes.
Colocar em um mesmo saco todas aquelas pessoas que
utilizaram o poder político do estado para espoliar seus concidadãos — seja de
maneira direta, como o desvio do dinheiro de impostos, seja de maneiras mais
elaboradas, como contratos superfaturados com empreiteiras ou a "venda" de
concessões legais — e aquelas outras pessoas que, tendo obtido sua fortuna de
uma maneira totalmente lícita, trataram de protegê-la da voracidade tributária
dos governos é um grave erro que serve apenas para alterar o foco do debate:
ignora-se a espoliação generalizado a que nos submetem as atuais instituições
estatais e os políticos que as controlam, e concentra-se no muito menos
relevante problema da "evasão fiscal geral".
Como mostra a lista acima, a "evasão fiscal" é, na
maioria das vezes, efetuada por aqueles mesmos hipócritas que não hesitariam em
utilizar toda a força e violência do aparato repressor do estado para perseguir
os cidadãos que ousarem desafiar sua autoridade tributária.
Aqueles que mais defendem aumentos de impostos são
os que nunca arcam com eles. Defender
aumento de impostos quando se está isento de pagá-los é bem gostoso.
Em vez de preocuparem-se com como extrair ainda mais
recursos de quem os obteve legalmente, os fanáticos por impostos deveriam, isso
sim, trabalhar para evitar que os políticos continuem extraindo os nossos
recursos. A luta contra a evasão fiscal
é apenas uma cortina de fumaça: a verdadeira sangria, como mostram os Papeis do
Panamá, é aquela causada pelo vampirismo político.
Aguardemos o pronunciamento de Piketty.