Foi em 2010 que o então Ministro da Fazenda do
Brasil, Guido Mantega, cunhou a expressão "
guerra
cambial" para reclamar do dólar barato (à época,
1
dólar custava aproximadamente R$ 1,70) e, principalmente, do baixo preço do
renminbi chinês (à época,
1
RMB custava R$ 0,25).
Especificamente sobre a China, o senhor Mantega alegou
que um renminbi barato fornecia ao país uma injusta vantagem no comércio
internacional. Como
ele dissera ao Financial Times, "estamos
em meio a um guerra cambial internacional, uma desvalorização generalizada das
moedas. Isso ameaça o Brasil porque
acaba com a nossa competitividade".
Isso foi em 2010.
Hoje, em 2016, os brasileiros estão ostensivamente em silêncio, pois o jogo
se inverteu. Do final de 2010 até hoje,
o real já desvalorizou nada menos que 55%
em relação ao renminbi chinês e 54%
em relação ao dólar. E a guerra
cambial continua tão intensamente quando estava em 2010, quando Mantega cunhou
a frase.
Como se comportaram as exportações brasileiras? De maneira totalmente inversa ao que diz o "senso
comum" dos economistas convencionais: enquanto o real estava se apreciando
perante as outras moedas (período
2003-2011), as exportações aumentavam continuamente. Tão logo o real começou a se desvalorizar (a
partir do final de 2011), as exportações estagnaram. E quando o real começou a realmente desabar
(2015), as exportações despencaram.

Gráfico
1: exportações brasileiras. Fonte: Banco
Central (série temporal nº 2946)
No entanto, em defesa do senhor Mantega, vale
enfatizar que esse senso comum sobre as maravilhas de um câmbio desvalorizado
já era tratado como algo inquestionável desde muito antes de o ex-ministro
brasileiro surgir em cena — há séculos, economistas e líderes políticos vêm
enganando o povo a respeito das vantagens de desvalorizações cambiais.
São dois os objetivos declarados de uma desvalorização:
de um lado, um câmbio desvalorizado encarece os preços dos bens estrangeiros, o
que reduz suas importações e diminui a concorrência sobre a indústria nacional. De outro, um câmbio desvalorizado faz com que
os bens nacionais fiquem mais baratos para os estrangeiros, o que aumentaria as
exportações.
Adicionalmente, com as importações mais caras, a população
nacional, ao deixar de importar, passaria a consumir mais dos bens produzidos
nacionalmente, o que aumentaria duplamente as vendas das indústrias nacionais.
Para o público leigo, esse argumento realmente possui
algum apelo intuitivo. Afinal, uma desvalorização
é vista como sendo nada mais que uma redução dos preços dos bens produzidos
domesticamente para os estrangeiros, e reduções de preços sempre são vistas
como uma forma de aumentar a quantidade de bens vendidos — daí viria o aumento
das exportações.
O problema, no entanto, é que, no que diz respeito à
mecânica das desvalorizações cambiais, seus efeitos diretos não são tão simples
assim. Mais ainda: há efeitos colaterais
que são totalmente ignorados nesta análise.
O primeiro grande erro consiste em imaginar que os
efeitos de uma desvalorização cambial podem ser completamente isolados do resto
da economia, como se o câmbio em nada influenciasse todos os outros preços da
economia. Este modelo de "desvalorização
estimula exportação" ignora o fato de que, em um mundo globalizado, no qual boa
parte dos bens de consumo e dos insumos industriais é importada, uma desvalorização
gera um aumento geral de preços em todos
os bens da economia.
Se entendermos que um câmbio desvalorizado significa
moeda com menos poder de compra, e que moeda com menos poder de compra
significa preços em ascensão e renda menor para a população, e que renda
menor significa que a demanda por bens de consumo diminui, então, por definição,
isso irá afetar todo o setor industrial.
Adicionalmente, se entendermos que vários
exportadores são também grandes importadores,
e que, para fabricarem seus bens exportáveis eles têm de importar máquinas,
matérias-primas e peças de reposição, então torna-se claro que a desvalorização
cambial fará com que os custos de produção aumentem, o que retirará todas as
supostas vantagens geradas pela desvalorização.
Portanto, uma desvalorização afeta a demanda interna
pelos bens industriais e afeta também os custos de produção da indústria. Difícil imaginar uma combinação pior.
Por tudo isso, e contrariamente à conclusão dos
economistas convencionais e do público leigo, uma desvalorização frequentemente
resultará em uma redução das exportações, em uma estagnação (ou mesmo contração)
do setor industrial e, pior ainda, na deterioração do poder de compra da população
como um todo, reduzindo seu padrão de vida.
Quando os modelos econômicos se tornam mais gerais e
inclusivos, eles deixam claro como são errados e contraditórios os argumentos
em prol da desvalorização. Clamores por desvalorização
cambial, por mais populares que seja, não passam de uma burla.
Na mais branda das hipóteses, um país que
desvalorize seu câmbio será imediatamente "retaliado" pelos outros países, que também
desvalorizarão suas respectivas moedas, gerando desta forma uma espécie de desvalorização
competitiva. Sendo assim, aquele país
que der início a uma guerra cambial pode ser, e será, prontamente neutralizado. Xeque-Mate.
Vejamos agora alguns dados empíricos ainda mais
fortes. Vejamos o que acontece quando há
não apenas uma desvalorização nominal do câmbio, mas também uma desvalorização real do câmbio. Uma desvalorização real do câmbio ocorre
quando a desvalorização nominal supera a taxa de inflação. Ou seja, o câmbio desvaloriza, digamos, 40%,
mas a inflação de preços aumenta "apenas" 10%.
Segundo os modelos, este arranjo — justamente por fazer com que a moeda
nacional se torne mais barata para os estrangeiros sem um concomitante aumento
dos preços na mesma intensidade — deveria ser propício ao aumento das
exportações.
(Afinal, se taxa de inflação de preços fosse idêntica
à taxa de desvalorização cambial, então desde o início já não haveria vantagem
nenhuma para as exportações).
As evidências da Indonésia, no período 1995 — 2014,
são típicas. Quando a rúpia
se desvalorizou em termos reais contra o dólar americano (ou seja, a desvalorização
foi maior que a inflação de preços), as exportações
caíram. Por outro lado, quando a rúpia
se apreciou em termos reais (ou seja, a apreciação foi maior que a inflação de preços),
as exportações aumentaram. Isso é
exatamente o oposto da relação propagandeada pelos especialistas que defendem a
estratégia da desvalorização. Eles alegam
que a desvalorizações reais farão as exportações aumentar, e que uma apreciação
real da moeda irá acabar com elas.

Gráfico
2: exportações da Indonésia (eixo Y) em relação à taxa real de câmbio (quanto
mais à direita no eixo X, mais depreciado é o câmbio)
O caso da China, assim como o da Indonésia, vai contra
a sabedoria convencional. A China, de
1995 a 2014, é um exemplo de interesse e importância especiais porque o
renminbi está no centro da chamada guerra cambial. Como mostra o gráfico abaixo, o renminbi, em
termos reais, se apreciou
(ao contrário do que afirmam os críticos, que dizem que a China mantinha uma
moeda artificialmente desvalorizada) modestamente em relação ao dólar. Como consequência, as exportações chinesas explodiram.

Gráfico
3: exportações da China (eixo Y) em relação
à taxa real de câmbio (quanto mais à direita no eixo X, mais depreciado é o
câmbio)
Esses dados não apenas afetam profundamente as noções
a respeito das maravilhas de uma moeda desvalorizada, como também ilustram por
que a maioria dos políticos e até mesmo dos economistas é ignorante em relação a
fatos básicos. Tais pessoas poderiam ser
facilmente processadas por propaganda falsa.
Mas tudo fica ainda mais interessante: quando
analisamos, em vez de exportações, o comportamento do PIB, a conclusão é a
mesma: desvalorizações cambiais andam de mãos dadas com redução do PIB. (Óbvio: é impossível ter uma
economia forte com uma moeda fraca).
O economista David Ranson, H.C. Wainwright & Co, estudou a relação
entre desvalorizações cambiais e crescimento do PIB para dezenove países durante
o período 1980 — 2012. Os resultados são
claros: se você quer reduzir seu crescimento econômico, clame por uma desvalorização
cambial.

Gráfico
4: Crescimento médio da economia (eixo Y, colunas verdes) versus desvalorização
cambial (eixo X; quanto mais à direita, maior a desvalorização cambial).
Conclusão
Se desvalorizações cambiais — além de gerarem mais inflação
de preços e juros maiores — não geram mais exportações e comprovadamente
diminuem o PIB, por que elas continuam sendo receitadas como uma panacéia para
estimular uma economia?
Eu gostaria de saber.
O fato é que, além de toda a teoria, a empiria também
comprova que os argumentos em prol de desvalorizações cambiais são completamente
infundados e contraditórios. Não há fundamentos
nem na teoria econômica e nem na evidência empírica que suportem a tese de que desvalorizações
cambiais são benéficas para a economia.
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