segunda-feira, 10 jun 2019
Segundo as doutrinas do universalismo, do realismo
conceitual, do
holismo e do coletivismo, a sociedade é uma entidade
que vive sua própria vida, independente e separada das vidas dos diversos
indivíduos, agindo por sua própria conta e visando a seus próprios fins, que
são diferentes dos pretendidos pelos indivíduos.
Assim sendo, é evidente que pode surgir um
antagonismo entre os objetivos da sociedade e os objetivos individuais.
Logo, para salvaguardar o florescimento e futuro
desenvolvimento da sociedade, torna-se necessário controlar o egoísmo dos
indivíduos e obrigá-los a sacrificar seus desígnios egoístas em benefício da
sociedade.
Chegando a esta conclusão, todas as doutrinas coletivistas
têm forçosamente de abandonar os métodos tradicionais da ciência humana e do
raciocínio lógico e adotar uma profissão de fé teológica ou metafísica. Ato contínuo,
e recorrendo a líderes carismáticos, os adeptos desta doutrina têm de obrigar
os homens — que são perversos por natureza, isto é, dispostos a perseguir seus
próprios fins — a entrar no caminho certo que a história quer que eles
trilhem.
Esta filosofia é a mesma que, desde tempos
imemoriais, caracteriza as crenças de tribos primitivas. Tem sido um elemento
de todos os ensinamentos religiosos. O indivíduo torna-se obrigado a respeitar os
decretos promulgados por um poder super-humano e obedecer às autoridades,
encarregadas por este poder de fazer cumprir a lei.
Sob as doutrinas do universalismo e do coletivismo,
o indivíduo, ao agir de acordo com o código ético, não o faz em benefício
direto de seus interesses particulares, mas, ao contrário, renuncia aos seus
próprios objetivos em benefício dos desígnios da comunidade.
Na visão do coletivismo, é inútil tentar convencer a
maioria pela persuasão e conduzi-la, amigavelmente, ao caminho certo. Os que
receberam a "iluminação" — sempre guiados pelo carisma de seu líder — têm o
dever de pregar o evangelho aos dóceis e de recorrer à violência contra os intratáveis.
O líder carismático é praticamente um vigário da Divindade, o representante dos
genuínos interesses da sociedade, um instrumento da história. É infalível e tem
sempre razão. Suas ordens são a norma suprema.
Por isso, o coletivismo é necessariamente um sistema
de governo teocrático. A característica comum de todas as suas variantes é a
postulação de uma entidade com características sobre-humanas à qual os
indivíduos devem obediência. O que as diferencia uma das outras é apenas a
denominação que dão a esta entidade e o conteúdo das leis que proclamam em seu
nome. O poder ditatorial de uma minoria não encontra outra forma de legitimação
a não ser apelando para um suposto mandato recebido de uma autoridade suprema e
sobre-humana.
Pouco importa se o autocrata baseia sua autoridade
no direito sagrado dos reis ou na missão histórica da vanguarda do
proletariado; nem se o ser supremo se denomina Geist (Hegel)
ou Humanité (Auguste Comte). Os termos "sociedade" e "estado",
como empregados pelos adeptos contemporâneos do socialismo, do coletivismo, do planejamento
e do controle social das atividades dos indivíduos, têm o significado de uma
divindade.
Os sacerdotes dessa nova religião atribuem a seu
ídolo todas aquelas virtudes que os teólogos atribuem a Deus: onipotência,
onisciência, bondade infinita etc.
Se admitirmos que exista, acima e além das ações
individuais, uma entidade imperecível que visa a seus próprios fins, diferentes
dos homens mortais, teremos já estruturado o conceito de um ser sobre-humano.
Não podemos, então, fugir da questão sobre quais fins têm precedência, sempre
que houver um conflito: se os do estado ou sociedade, ou os do indivíduo.
O indivíduo e o coletivo
A resposta a esta questão já está implícita no
próprio conceito de estado ou sociedade como entendido pelo coletivismo e pelo
universalismo. Ao se postular a existência de uma entidade que, por definição,
é mais elevada, mais nobre e melhor do que os indivíduos, não pode haver
qualquer dúvida de que os objetivos desse ser eminente devem prevalecer sobre
os dos míseros mortais.
Se o estado é uma entidade dotada de boa vontade,
boas intenções e de todas as outras qualidades que lhe são atribuídas pela
doutrina coletivista, então, pela lógica, é simplesmente absurdo confrontar as
aspirações triviais do pobre indivíduo com os majestosos desígnios do estado.
O caráter quase teológico de todas as doutrinas
coletivistas torna-se evidente nos seus conflitos mútuos. Uma doutrina
coletivista não proclama a superioridade do ente coletivo in abstrato;
proclama sempre a proeminência de um determinado ídolo coletivista e, então, ou
nega liminarmente a existência de outros ídolos do mesmo gênero, ou os relega a
uma posição subordinada e auxiliar em relação ao seu próprio ídolo.
Os adoradores do estado proclamam a excelência de seu
próprio governo. Se dissidentes contestam o seu programa — quase sempre anunciando
a superioridade de algum outro ídolo coletivista —, a única resposta é repetir
muitas vezes: nós estamos certos porque uma voz interior nos diz que nós
estamos certos e vocês estão errados. Os conflitos entre coletivistas de seitas
ou credos antagônicos não podem ser resolvidos pela discussão racional; só
podem ser resolvidos pelo recurso à força das armas.
Todas as variantes de credos coletivistas estão
unidas em sua implacável hostilidade às instituições políticas fundamentais do
sistema liberal: tolerância para com as opiniões divergentes, liberdade de
pensamento, de expressão e de imprensa, igualdade de todos perante a lei. Essa
união dos credos coletivistas nas suas tentativas de destruir a liberdade deu
origem à suposição equivocada de que a controvérsia política atual seja entre
individualismo e coletivismo. Na verdade, é uma luta entre o individualismo de
um lado e uma variedade de seitas coletivistas do outro. E o ódio e hostilidade
mútuos entre essas seitas são ainda mais ferozes que sua aversão ao sistema
liberal.
O modus operandi e as consequências
A aplicação das ideias coletivistas só pode resultar
na desintegração social e na luta armada permanente. É claro que todas as
variedades de coletivismo prometem a paz eterna a partir do dia de sua vitória
final e da derrota completa de todas as outras ideologias e seus defensores.
Entretanto, para que estes planos sejam realizados, é necessária uma mudança
radical no gênero humano. Os homens devem ser divididos em duas classes: de um
lado, o político onipotente, messiânico, quase divino; do outro, as massas, que
devem abdicar da vontade e do raciocínio próprio para se tornarem meros peões
no tabuleiro deste pretenso ditador.
As massas devem ser desumanizadas para que se possa
fazer de um homem o seu senhor divinizado. Pensar e agir, as características
primordiais do indivíduo, tornar-se-iam o privilégio de um só homem. Não é
necessário mostrar que tais desígnios são irrealizáveis. Os impérios
milenaristas dos ditadores são fadados ao fracasso; nunca duram mais do que
alguns anos. Já assistimos à queda de muitas destas ordens "milenares".
As remanescentes não terão melhor sorte.
O atual ressurgimento das ideias coletivistas, causa
principal das agonias e desastres de nosso tempo, tem sido tão bem-sucedido,
que fez esquecer as ideias essenciais da filosofia social liberal. Para os
adeptos do coletivismo, em qualquer uma de suas várias roupagens, as maiorias
têm sempre razão simplesmente porque têm o poder de derrotar qualquer oposição;
governo majoritário equivale à ditadura do partido mais numeroso, e a maioria
no poder não sente necessidade de se refrear na utilização do seu poder nem na
condução dos negócios públicos.
Logo que uma facção consegue obter o apoio da
maioria dos cidadãos — e, desse modo, assume o controle da máquina
governamental —, considera-se com a faculdade de negar à minoria todos aqueles
direitos democráticos por meio dos quais conseguiu alcançar o poder.
Já os liberais não divinizam as maiorias nem as
consideram infalíveis; não sustentam que o simples fato de uma política ser
apoiada por muitos seja prova de seus méritos para o bem-comum. Não recomendam
a ditadura da maioria nem a opressão violenta das minorias dissidentes. O
liberalismo visa a estabelecer um arranjo político que assegure o funcionamento
pacífico da cooperação social e a intensificação progressiva das relações
sociais mútuas. Seu objetivo principal é evitar conflitos violentos, guerras e
revoluções que necessariamente desintegram a colaboração social e fazem os
homens retornarem ao barbarismo primitivo, quando todas as tribos e grupos
políticos viviam permanentemente em luta uns com os outros.
O liberalismo é simplesmente uma defesa do individualismo,
que, quando respeitado, geram a divisão do trabalho, a cooperação social e a
intensificação progressiva dos vínculos sociais.
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O artigo acima contém excertos do livro Ação Humana, de 1948.