Economia
A nossa “depreflação” e o ajuste fiscal que não virá: a necessidade de um novo Plano Real
A nossa “depreflação” e o ajuste fiscal que não virá: a necessidade de um novo Plano Real
No Brasil, a discussão do momento é sobre se o Banco Central deveria ou não elevar os juros para arrefecer a inflação de preços -- que atualmente está em 10,74% no acumulado de 12 meses, e sem nenhum sinal de arrefecimento.
Quem é contra
Aqueles que são contrários à elevação dos juros afirmam que tal medida seria totalmente desnecessária, pois a economia brasileira já está em profunda recessão, com desemprego em alta, investimentos em contração há nove trimestres, indústria sofrendo a pior retração de sua série histórica, vendas no varejo em acentuada queda, e pedidos de falência e de recuperação judicial apresentando um crescimento apavorante.
Nesse cenário, sempre segundo estas pessoas, um aumento dos juros iria apenas piorar o que já está péssimo.
E o fato de a economia já estar apresentando todos os indicadores típicos de uma depressão -- o que, por si só, já implicaria uma necessidade de redução de juros -- já seria o suficiente para fazer com que futuros aumentos de preços sejam mais contidos, o que tornaria desnecessário novos aumentos de juros.
Ainda neste campo, há pessoas que se posicionam contra o aumento dos juros porque, segundo elas, a economia brasileira estaria vivenciando o fenômeno da "dominância fiscal".
Dominância fiscal
O curioso do debate sobre "dominância fiscal" é que há dois conceitos distintos sobre o que é dominância fiscal.
O primeiro conceito é o mais simples e direto: dominância fiscal ocorre quando o governo tem déficits orçamentários tão grandes, que isso por si só gera inflação de preços. Dado que os déficits orçamentários do governo são financiados pela emissão de títulos do Tesouro, os quais são majoritariamente comprados pelos bancos por meio da criação de dinheiro, tais déficits seriam uma medida inerentemente inflacionária, contra a qual o Banco Central nada poderia fazer. Não há aumento de juros que neutralize essa expansão monetária.
Já o segundo conceito é mais elaborado: "dominância fiscal" ocorre quando o orçamento do governo está com um déficit tão grande, e a dívida pública já alcançou valores tão exorbitantes, que elevações dos juros não apenas não combatem a carestia, como, pior ainda, geram aumento de preços.
O raciocínio é o seguinte: a subida dos juros encarece aquela fatia da dívida que é diretamente atrelada à SELIC (para os mais iniciados, trata-se das LFTs, que são os títulos públicos remunerados diariamente pelo valor da SELIC). Segundo cálculos de consultorias, um aumento de 1 ponto percentual na SELIC geraria, tudo o mais constante, um aumento de R$ 15 a 20 bilhões nas despesas do governo com esses juros.
Até aí, nada de mais. Sempre foi assim.
No entanto, como o orçamento do governo já está completamente destroçado, tendo apresentado um déficit primário recorde de R$ 111 bilhões em 2015 -- o que significa que, em teoria, o governo não conseguiu nem sequer poupar para pagar esses juros das LFTs --, e dado que a dívida bruta está crescendo a um ritmo estonteante -- pulou de 57% do PIB em 2014 para 66% em 2015 --, novos aumentos de juros tenderiam a fazer com que os investidores se tornassem ainda mais céticos quanto à capacidade do governo de seguir honrando a dívida. O receio de uma moratória se tornaria mais premente.
Ato contínuo, investidores estrangeiros retirariam seus recursos daqui e os investidores nacionais mais ricos converteriam sua poupança em moeda estrangeira e aplicariam em mercados financeiros estrangeiros. Isso geraria uma desvalorização cambial, que por sua vez geraria ainda mais aumento de preços.
Ou seja, dominância fiscal é aquilo que ocorre quando o orçamento do governo se torna tão esfrangalhado, que aumentos dos juros não apenas não combatem a inflação, como ainda a agravam. Dominância fiscal é aquilo que ocorre quando uma política fiscal frouxa anula completamente qualquer política monetária mais restritiva.
Nesse cenário, a única forma de combater a carestia seria fazendo um profundo ajuste fiscal -- o que significa, na prática brasileira, simplesmente elevar impostos e recriar a CPMF.
Isso, aliás, mostra que um dos principais interessados na difusão dessa teoria da dominância fiscal é o próprio governo. "Ei, estamos em dominância fiscal! Não podemos elevar juros e, por isso, temos de ressuscitar a CPMF. Ou você está conosco ou você está contra o país!"
Quem é a favor
Dado que não há mais como atacar a economia pelo lado da demanda -- como dito, as vendas no varejo estão em queda, o desemprego é crescente, e os investimentos se contraem há nove trimestres --, e dado que aumentar a oferta não é algo politicamente palatável (pois envolve zerar tarifas de importação, algo que desagrada o lobby da indústria nacional), os favoráveis ao aumento de juros recorrem principalmente à questão das expectativas.
O raciocínio é o seguinte: como o cidadão comum já passou os últimos 5 anos convivendo com uma inflação de preços constantemente acima da meta, ele simplesmente passa a acreditar que a inflação de preços continuará alta no futuro. Ao sentir de maneira cada vez mais evidente a contínua corrosão do seu poder de compra, o indivíduo naturalmente passa a imaginar que a inflação de preços continuará alta e não irá ceder rapidamente.
Trata-se de uma reação automática. Por que ele iria pensar o contrário?
Essa deterioração das expectativas inflacionárias faz com que os formadores de preço -- dentistas, encanadores, advogados, mecânicos, indústrias e comércio -- incorporem essa expectativa de que a inflação continuará alta e, consequentemente, reajustem seus preços baseando-se nessas expectativas. Trata-se de um processo defensivo por meio do qual as pessoas tentam preservar sua renda real.
Sendo assim, o Banco Central deveria elevar os juros nem que fosse para apenas "enviar um recado", deixando claro a todos que está vigilante e que não há motivos para novas remarcações de preços.
Trata-se de uma medida muito mais psicológica do que técnica: uma subida dos juros seria a única maneira de o Banco Central -- utilizando um jargão econômico favorito da imprensa -- "ancorar" as expectativas inflacionárias futuras e refrear eventuais tentações de reajuste de preços.
Ou seja, segundo os defensores dessa tese, mesmo em um ambiente de recessão, subir os juros é necessário pelo simples fato de a inflação de preços estar alta e, ainda mais grave, de as expectativas inflacionárias para o futuro também estarem altas.
A realidade
Há qualidades e defeitos graves em ambas essas posições.
No entanto, e antes de tudo, comecemos pelo básico: a carestia está intensa no Brasil não por causa de dominância fiscal ou de juros ainda em valor insuficiente. A carestia está intensa pelo simples fato de que a moeda, o real, está se enfraquecendo e perdendo poder de compra continuamente.
Sim, isso parece uma óbvia tautologia, mas, por incrível que pareça, poucos economistas se dão conta dessa obviedade. E ela está no centro de tudo. Sem que ela seja compreendida, debates sobre "dominância fiscal" e "aumento de juros" se tornam completamente inócuos e despropositados.
Por isso, vale a pena repetir a obviedade: os preços estão subindo continuamente no Brasil, sem nenhum sinal de arrefecimento, e mesmo em um cenário de profunda recessão -- no qual não há nem sequer pressão de demanda, pois as vendas no varejo estão em forte contração --, única e simplesmente porque a moeda está se enfraquecendo.
Uma moeda fraca afeta todos os preços da economia, e por um motivo lógico: se a moeda está se enfraquecendo, então, por definição, passa a ser necessário ter uma maior quantidade de moeda para adquirir o mesmo bem. Essa é a definição precípua de moeda fraca: é necessária uma maior quantidade de moeda para se adquirir o mesmo bem que antes podia ser adquirido com uma menor quantidade de moeda.
Daí os preços mais altos.
Não tem escapatória: moeda fraca, carestia alta. Sem exceção.
E como saber que o real está se enfraquecendo?
O mecanismo mais comum é analisar a evolução da taxa de câmbio em relação a moedas como dólar, euro, franco suíço e libra esterlina. Este é um método satisfatório, mas pode se enganoso: afinal, você está comparando uma moeda estatal e manipulada por burocratas com outra moeda igualmente estatal e igualmente manipulada por burocratas.
Vários outros mensuradores subjetivos e objetivos já foram criados, mas, aparentemente, nenhum conseguiu superar o preço do ouro. Ao longo da história humana, o ouro sempre foi a mercadoria naturalmente escolhida para servir como meio de troca e unidade de conta. Sua tradicional estabilidade como unidade de conta fez dele uma escolha natural para definir aquilo que hoje conhecemos como dinheiro.
Utilizado como dinheiro durante milhares de anos, o ouro alcançou uma função puramente monetária exatamente porque sua função na economia produtiva era minúscula. O ouro era utilizado pontualmente em algumas indústrias específicas, e só. Como resultado desta "falta de função" na economia, praticamente cada quilograma de ouro que já foi extraído da terra continua conosco, o que significa que o preço real do ouro é difícil de ser alterado: a quantidade de ouro existente no mundo é imensamente maior do que eventuais novas jazidas que venham a ser descobertas e mineiradas.
Sendo assim, por causa dessa oferta praticamente rígida, quando o preço do ouro mensurado em uma determinada moeda se altera drasticamente, não é o valor do ouro que está mudando, mas sim o valor da moeda utilizada para precificar o ouro. O ouro é o indicador mais objetivo do valor de uma moeda: quando o preço do ouro aumenta consideravelmente, isso significa que a unidade de conta está se enfraquecendo.
Tendo isso em mente, vejamos como está se comportando o real em relação ao ouro. O gráfico abaixo mostra o preço, em reais, de um grama de ouro desde 1º de julho de 1994 (ignore aquelas linhas verticais; é defeito do algoritmo do Banco Central):
Gráfico 1: preço, em reais, de um grama de ouro.
Não há indicador mais evidente.
De meados de 2014 até hoje, o ouro encareceu 66% em termos de reais (foi de R$ 90 para R$ 150). Ou, inversamente, pode-se dizer que o real se desvalorizou 40% em relação ao ouro.
(A matemática é simples: em meados de 2014, R$ 90 compravam um grama de ouro. Isso significa que R$ 1 comprava 1/90 grama de ouro.
Atualmente, são necessários R$ 150 para comprar esse mesmo grama de ouro, o que significa que R$ 1 compra 1/150 grama de ouro.
Fazendo-se a conta do valor final (1/150) menos o valor inicial (1/90), e dividindo o resultado pelo valor inicial (1/90), tem-se o percentual de 40%, que foi a perda do poder de compra da moeda.)
Portanto, temos um indicador objetivo de que o real se enfraqueceu 40% nos últimos 18 meses. Não é de se estranhar, portanto, que a carestia esteja em voluptuosa ascensão, mesmo com recessão profunda, desemprego crescente, e queda nas vendas no varejo e nos investimentos.
Alguns adendos:
1) Quando nasceu, eram necessários R$ 10,50 para comprar 1 grama de ouro. Hoje, são necessários R$ 150. Isso significa que o real já se desvalorizou 93% desde sua criação.
2) Houve dois períodos em que o real foi relativamente estável perante o ouro: de julho de 1994 a dezembro de 1998, e de janeiro de 2004 a agosto de 2008.
3) Foi durante estes dois períodos que a inflação de preços acumulada em 12 meses mais caiu: de 5.000% em junho de 1994 para 1,65% em dezembro de 1998, e de 17% em maio de 2003 para 3% em abril de 2007.
Esses dois períodos foram justamente aqueles em que o percentual de pobreza extrema mais caiu: 30% de 1993 a 1998, e 50% de 2003 a 2008.
Por tudo isso, a atual discussão sobre juros e dominância fiscal já começa do ponto de partida errado, pois ignora a real causa da inflação de preços e já sai receitando soluções que nada têm a ver com o problema. A inflação de preços é uma consequência direta do enfraquecimento da moeda, e, sendo assim, é imperativo estancar esse enfraquecimento.
Mas isso não pode ser alcançado por manipulação dos juros.
Aumentar juros?
Em primeiro lugar, e começando pelo mais fácil, uma simples olhada no gráfico 1 já nos permite chegar à fácil conclusão de que não será um mero aumento de 0,25 ponto percentual na SELIC o que irá reverter aquele descalabro. Tampouco um aumento de 0,50 ponto percentual irá devolver força à moeda. A encrenca é muito mais profunda.
Sendo assim, estavam corretos -- ainda que por linhas tortas -- aqueles que defendiam que o Banco Central não deveria elevar a SELIC de 14,25% para 14,50% em janeiro. Isso seria completamente inócuo.
Por outro lado, estes mesmos estão errados em imaginar que a recessão fará o serviço de debelar a carestia. Quem acredita que a recessão irá debelar a carestia está, na prática, dizendo que uma economia debilitada irá automaticamente gerar uma moeda forte e estável. Isso é totalmente sem sentido. Carestias não são debeladas por recessões, mas sim pelo fortalecimento da moeda -- fortalecimento esse que possui várias causas que não a recessão (como, por exemplo, um aumento da demanda global por essa moeda).
Enquanto a moeda continuar fraca, a carestia continuará em ascensão, independentemente da robustez da economia. Assim como você não pode gerar prosperidade por meio da desvalorização da moeda, você não pode gerar uma moeda forte por meio de uma recessão.
Também vale ressaltar que a empiria está comprovando a teoria mais uma vez: como tantas vezes já se falou neste Instituto, o gradualismo não funciona. Aumentos tímidos e graduais na taxa básica de juros, de meio ponto percentual por vez, como vem fazendo o Banco Central desde o longínquo abril de 2013, são totalmente ineficazes no combate à carestia. Simplesmente não há registro histórico de uma inflação de preços relativamente alta que tenha sido debelada com aumentos tímidos e graduais na taxa básica de juros. Nem sequer as expectativas conseguem ser alteradas.
Aumentos graduais nos juros não fortalecem a moeda. Veja no gráfico 1 que, de meados de 2013 até hoje, ao mesmo tempo em que a taxa básica de juros praticamente dobrou (de 7,25% para 14,25%, mas de maneira bem lenta e gradual), o real se enfraqueceu. Por isso a carestia aumentou em simultâneo ao aumento das taxas de juros (o que surpreendeu vários economistas).
Por outro lado, também não há garantia nenhuma de que juros altos irão resolver a situação. Se juros altos, por si sós, debelassem a carestia e fortalecessem a moeda, então o cruzado novo teria sido a moeda mais forte do mundo: à época, a SELIC chegou a módicos 780.000%.
O que normalmente ocorre quando há um aumento de juros é a inviabilização de vários investimentos produtivos, o que gera redução na oferta de bens (um fenômeno que gera carestia) e aumento do desemprego. Consequentemente, a economia fica debilitada, isso faz com que a moeda se enfraqueça ainda mais, e a carestia piora.
[No Brasil, em específico, as duas únicas vezes em que uma elevação dos juros aparentemente reduziu a inflação de preços (de meados de 2003 a início de 2004, e de meados de 2005 ao final de 2006) coincidiram com um período de fraqueza global do dólar, que foi o fator dominante na redução da carestia.
Já quando o dólar estava forte (1999 a 2002) ou se fortalecendo (de meados de 2012 em diante), nenhum aumento de juros deu resultado.]
O fato é que os economistas de hoje são louca, insana e patologicamente fascinados por manipulações na taxa básica de juros efetuadas por uma agência de planejamento central. Eles não apenas acreditam que um comitê central formado por 8 burocratas pode interferir eficazmente no preço mais importante da economia, como, ainda pior, acreditam que esse planejamento centralizado pode dar certo.
As causas do enfraquecimento
Vários fatores podem causar o enfraquecimento de uma moeda.
A (falta de) confiança no governo é um fator crucial.
A (falta de) confiança no Banco Central é outro fator crucial. Se o Banco Central continuamente desrespeita a meta de inflação (4,50%) que foi estabelecida, então ele está passando o recado de que conter a carestia não é realmente sua prioridade. Consequentemente, a confiança na moeda é abalada.
Aliás, o simples fato de o Banco Central estabelecer uma meta de inflação relativamente alta (4,50%) já é um agravante: afinal, se a meta é 4,50%, eu irei anualmente reajustar meus preços em, no mínimo, 4,50%. Por que reajustaria em menos sabendo que o próprio Banco Central deseja que todos executem essa carestia mínima? Se eu reajustar em menos, posso ficar sem poder aquisitivo para comprar aqueles bens e serviços que reajustaram igual à ou acima da meta de inflação. Ao estipular uma meta de inflação, o próprio BC já estimula que essa seja a inflação mínima.
A expansão do crédito -- principalmente dos bancos estatais, que tem apresentado um crescimento exponencial -- é outro fator fundamental.
A simples perda de confiança na moeda -- tanto dos brasileiros quanto dos investidores estrangeiros, que então deixam de demandá-la e passam a se desfazer dela -- também é um fator crítico.
Os déficits do governo -- e aqui vou concordar com os seguidores do primeiro conceito de dominância fiscal -- são também decisivos. Aliás, eu o consideraria o fator mais crítico de todos.
O gráfico abaixo, que mostra a evolução do déficit nominal do governo federal (tudo o que o governo gasta, inclusive com o serviço da dívida, além do que arrecada) tanto em valores correntes quanto em porcentagem do PIB, ilustra perfeitamente o descalabro:
Gráfico 2: linha vermelha, eixo da esquerda: evolução do déficit nominal do governo federal; linha azul, eixo da direita: evolução do déficit nominal do governo federal em porcentagem do PIB
Vale repetir que os déficits orçamentários do governo são financiados pela emissão de títulos do Tesouro, os quais são majoritariamente comprados pelos bancos por meio da criação de dinheiro. Déficits são, portanto, uma medida inerentemente inflacionária.
Para se ter uma ideia do que significa um déficit de mais de 9% do PIB, basta dizer que o déficit orçamentário do "pródigo" governo Obama não passa de 2,5% do PIB. E o do governo do Reino Unido é de "apenas" 5,7% do PIB. Até mesmo os "devassos" japoneses se contentam com menos: 7,7% do PIB.
Quem é pior do que a gente? A Venezuela, com 11,5% do PIB. Estamos quase lá.
No entanto, há uma boa notícia: para que o real se estabilize e a carestia seja efetivamente debelada, não é necessário solucionar imediatamente esses problemas.
O que pode ser feito
Há três soluções eficazes. Só que, dessas três, apenas uma seria politicamente aceitável.
A solução mais eficaz de todas, aquela que é "tiro e queda", que debelou quase que imediatamente hiperinflações em todos os países em que foi adotada (e sempre com juros na casa de apenas um dígito), é a instituição de um Currency Board (leia todos os detalhes aqui).
Mas essa alternativa não tem nenhuma chance política de ser implantada.
A segunda solução, também sucesso nos (poucos) países em que foi implantada, é a liberação de moedas estrangeiras para circular no Brasil. Tal arranjo foi adotado com grande sucesso no Peru, que liberou o dólar como moeda corrente. Ao contrário do que muitos temiam, a moeda nacional peruana se fortaleceu com a medida, e os juros nacionais caíram acentuadamente. Além de a concorrência estimular tanto o Banco Central quanto o governo a serem mais prudentes e responsáveis, o próprio aumento da oferta de moeda estrangeira tende a apreciar a moeda nacional.
Já o Zimbábue foi mais além e liberou o uso de nove moedas estrangeiras. Os resultados foram incríveis.
Mas tal arranjo também não tem nenhuma chance no Brasil. No mínimo, nossos rábidos nacionalistas -- tanto na política quanto na mídia -- ficariam feridos em seus brios, e sairiam gritando que a soberania nacional está sendo usurpada e que o país está sendo entregue a forças imperialistas.
Sendo assim, resta a terceira alternativa.
A economista Monica Baumgarten de Bolle, pesquisadora do Instituto Peterson de Economia Internacional, foi quem popularizou o conceito de dominância fiscal no Brasil.
Segundo ela, economias com desajustes fiscais agudos precisam de algo urgente que segure a inflação, e esse algo não é a manipulação dos juros, mas sim do câmbio. Monica defende que o Brasil deveria abandonar temporariamente o sistema de metas de inflação e o Banco Central deveria parar de fixar juros e deveria adotar um regime cambial idêntico ao que vigorou no período 1994-1998, que foi o regime de câmbio atrelado ao dólar (não confundir com regime de câmbio fixo, que é outro arranjo).
Ao defender esse arranjo, ela dá dois passos na direção correta -- mostra entender que câmbio é mais importante do que juros para controlar carestia, e também que com um câmbio desabando não há como evitar carestia --, mas em seguida cai no erro de defender um câmbio atrelado a uma moeda estatal. Tal arranjo é instável por natureza, pois atrelar uma moeda fiduciária a outra moeda fiduciária (como o dólar) é um convite ao ataque de especuladores, que podem facilmente -- por meio de operações cambiais -- enviar e retirar dólares do país com o intuito de criar perturbações na taxa de câmbio e, simultaneamente, por meio de operações com derivativos, ganhar na arbitragem.
(Falando
mais tecnicamente, especuladores fazem venda a
descoberto (short selling) de uma moeda apostando em sua
desvalorização. Simultaneamente, por
meio de diversas práticas, eles forçam a desvalorização da moeda. Se ela se
desvalorizar, eles colhem ótimos lucros.
Todos os ataques
especulativos que varreram os países em desenvolvimento na segunda metade
da década de 1990, de México e Brasil aos Tigres Asiáticos, passando pela
Rússia, aconteceram em decorrência disso).
Qual a solução então?
A solução é pegar essa ideia de Monica -- que, como ela corretamente disse, "não é original, tampouco heterodoxa" --, trocar o preço do dólar pelo preço do ouro, e fazer exatamente aquilo que foi feito na Alemanha de dezembro de 1923, quando, em apenas um mês, o país saiu da hiperinflação mais famosa da história e passou a ter uma moeda forte e estável.
O preço da moeda alemã, o rentenmark, passou a ser mantido constante em termos de ouro. Mas não havia ouro. Assim como o preço do ouro em reais foi mantido relativamente constante no período 1994-1998 e 2003-2006, o preço do ouro em rentenmarks foi mantido constante a partir de dezembro de 1923. Criou-se um padrão-ouro sem ouro.
O livro When Money Dies (Quando o Dinheiro Morre), do jornalista britânico Adam Ferguson, narra em detalhes todo esse processo.
A população alemã vinha definhando e literalmente morrendo de fome, pois nenhum agricultor queria abrir mão de seus produtos em troca de uma moeda que não valia nada. Toda a colheita de 1923 ficou estocada nos silos dos agricultores; enquanto isso, as prateleiras dos supermercados estavam vazias. Inanição e baderna -- inclusive uma tentativa de um cavalheiro chamado Adolf Hitler de tomar o poder em Munique em 9 de novembro de 1923 -- eram rotina.
E então, no dia 16 de novembro de 1923, o governo parou de imprimir marcos e os substituiu pelo rentenmark, que surgia com um valor definido em termos de ouro. No dia 20 de novembro, os marcos existentes foram convertidos em rentenmark ao preço de um trilhão de marcos por um rentenmark. A hiperinflação imediatamente acabou e a Alemanha estava no padrão-ouro. Mas sem ouro.
Não havia ouro nos cofres do Rentenbank (o então Banco Central alemão). Nenhuma cédula de rentenmark era conversível em ouro. Simplesmente o valor do rentenmark era mantido constante em termos de ouro. Como isso era feito? O Rentenbank simplesmente expandia e contraía a base monetária (vendendo e comprando ativos) de modo a manter o valor do rentenmark o mais estável possível em termos de ouro. O mecanismo era um simples ajuste da oferta de moeda.
Apenas duas pessoas trabalhavam no Rentenbank: o diretor (Hjalmar Schacht) e sua secretária. O que ele fazia? De acordo com o livro (página 123), ele fazia apenas três coisas durante o dia: fumava charutos, ficava ao telefone o dia inteiro se informando da cotação do ouro, e fazia as políticas monetárias correspondentes (vendia e comprava ativos, contraindo e expandindo a base monetária) para manter o valor do rentenmark estável em termos do ouro. À noite, após o expediente, ele pegava o último trem suburbano e ia para casa. Na classe econômica. Fora isso, não fazia nada.
Os
agricultores aceitaram o rentenmark, desovaram seus estoques, e a população
alemã repentinamente se viu repleta de opções alimentícia à sua volta. Bastou apenas devolver estabilidade à moeda e
toda a crise acabou e a economia voltou a crescer.
Moeda saudável gera economia forte. Moeda fraca gera economia doente. É impossível ter uma economia forte e saudável se a moeda está fraca e doente.
Ou seja, não é necessário praticamente nada para se adotar um sistema de padrão-ouro sem ouro para se debelar uma carestia e devolver estabilidade à moeda. O Rentenbank não tinha ouro nenhum. O rentenmark não era conversível em ouro. Nenhuma preparação foi necessária. Nenhuma grande equipe foi montada. Nenhum grande intervalo de tempo foi requerido. A única medida necessária foi deixar clara qual seria a política adotada: manter o valor do rentenmark estável em termos de ouro por meio de políticas monetárias tradicionais. E só.
Ironicamente, das três soluções possíveis para debelar a nossa carestia, aquela que envolve o ouro é a mais simples de ser implantada e a mais palatável politicamente. Acima de tudo, ela é a mais próxima de um genuíno livre mercado: a moeda é estável e tem um valor definido, ao passo que todas as taxas de juros da economia são livres e passam a ser determinada pela interação entre oferta de poupança e demanda para investimentos e consumo.
(Aproveitemos que o prestígio do Banco Central nunca esteve tão em baixa -- é criticado igualmente pela esquerda e pela direita --, demitamos toda a diretoria, extingamos todos os departamentos, e coloquemos ali apenas um único cidadão para fazer o mesmo serviço de Schacht. E uma faxineira).
Conclusão
A solução para uma inflação de preços não é causar uma recessão. Colocar burocratas para manipular juros também não trará nada de positivo. A solução é simplesmente estabilizar a moeda em relação ao ouro.
Como mostrou o gráfico 1, foi exatamente isso o que foi feito no Plano Real e também no período 2003-2006, ainda que essa não tenha sido a intenção dos seus autores.
Sim, equilibrar as contas do governo é importante e ajudaria enormemente na redução da carestia, mas não podemos simplesmente abrir mão de tudo e ficar esperando, de dedos cruzados, que o senhor Nelson Barbosa decida fazer isso. A situação é urgente.
Esperar que "a recessão reduza a inflação" é simplesmente esperar por mais inflação em um ambiente que periga se degenerar em depressão (vivenciaremos a pior recessão desde 1901). Estamos à beira de uma "depreflação".
Da mesma forma, esperar que haja ajuste fiscal em um cenário de paralisia política -- que vai se confirmando duradoura -- é masoquismo.
Até lá, muitos mais sofrerão com a perda do poder de compra da moeda e a consequente queda no padrão de vida.
Como bem colocou Monica:
Esse é o resultado trágico de jogar a toalha: o enorme retrocesso dos ganhos sociais e da travessia para a estabilidade macroeconômica tão duramente conquistada. Será mesmo que passar por isso novamente é melhor do que pensar em formas de evitar a escalada inflacionária enquanto o ajuste fiscal não vem?
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