O texto
abaixo está presente no livro Guia
Politicamente Incorreto da Economia Brasileira, recém-lançado pela
Editora LeYa.
Que o
Brasil é um dos países com maior desigualdade social todo mundo já sabe.
Passamos a juventude ouvindo isso do professor de geografia ou durante a propaganda
eleitoral na TV. O que se discute um pouco menos é por que o país é assim. Qual
a origem de tanta concentração de renda no Brasil?
A
resposta a essa pergunta costuma vir em tom moralizante. Culpamos a nós mesmos —
a nossa história, a nossa sociedade — por irmos tão mal no ranking da
igualdade. "A opressão das elites patriarcais", "a manutenção de terríveis
arcaísmos", "os baixos salários pagos pelas grandes empresas" são explicações
que atribuem a algum inimigo imaginário — geralmente os ricos — a culpa pela
má situação dos pobres.
Na
verdade, as origens da desigualdade de renda no Brasil estão muito longe das "crueldades"
do capitalismo ou das maldades de uma classe social. Nem todos os motores de
concentração de renda no Brasil são evitáveis — dois deles (os dois primeiros,
abaixo) são até mesmo motivo de orgulho para os brasileiros.
1. O Brasil é desigual porque é
livre
Se você
perguntar a um sociólogo ou economista da Unicamp quais são as causas da
desigualdade no Brasil, ele vai despejar automaticamente frases sobre a "a ação
do livre mercado" e "a exclusão causada pelo capital". Essa visão, na
verdade . . . está correta.
É claro
que o capitalismo e o mercado causam desigualdade. O que os economistas chamam
de mercado nada mais é do que a reunião de pessoas interessadas em trocar bens
entre si. E as pessoas têm interesses, preferências e necessidades diferentes.
Essa diversidade de preferências faz a renda se concentrar.
Isso fica
claro num exercício de imaginação. Suponha que, de repente, todo o dinheiro do
Brasil seja dividido igualmente entre todos os brasileiros. De um dia para o
outro, nos tornamos um país mais igualitário que a Noruega; o coeficiente de
Gini cai a zero.[1]
O banqueiro Joseph Safra e o cobrador de ônibus acordam com o mesmo patrimônio.
Agora
imagine que, no dia seguinte a essa revolução igualitária, surge na internet um
canal de humor chamado Porta dos Fundos.
Os humoristas do Porta dos Fundos
escrevem roteiros geniais; os vídeos que eles lançam logo geram comentários e
milhões de visualizações. Ao clicar tantas vezes em links do Porta dos Fundos, os brasileiros dão
mais dinheiro a esse grupo de humoristas que a outros, criando a desigualdade
no mercado de humor pela internet. O Porta
dos Fundos ficaria com a maior parte da verba destinada a canais de comédia
do YouTube, sem falar nos anunciantes que, por vontade própria, decidirão usar
sua parte da renda dividida igualmente entre os brasileiros para contratá-los
como garotos-propaganda.
A
situação inicial, em que todos os brasileiros tinham a mesma renda, terá
desaparecido.
Os
humoristas do Porta dos Fundos não
oprimiram ninguém ao aumentar a desigualdade no país. Pelo contrário, eles
tornaram a vida mais divertida e foram remunerados justamente por seu talento.
Deveriam os brasileiros, para preservar a igualdade nacional, serem proibidos
de assistir a tantos vídeos do Porta dos
Fundos e obrigados a assistir a alguns de A Praça é Nossa? Não, os
brasileiros são livres para assistir ao que quiserem, e essa liberdade
concentra a renda.
Do mesmo
modo, o mais comunista dos fãs de Música Popular Brasileira está disposto a
pagar um bom punhado de reais para assistir a um show do Chico Buarque. Mas não
iria ao show "Leandro Narloch canta os grandes sucessos de Kelly Key" nem que
lhe pagassem dez reais para isso. Ao escolher pagar a uns artistas mais que a
outros, o mais comunista dos apreciadores de MPB está aumentando a desigualdade
no mercado da música. Deveríamos proibi-lo de tomar essa decisão?
Deveria o
governo obrigar o rapaz a pagar por um show do Chico Buarque o mesmo que
pagaria a mim tentando cantar "Baba, baby, baba"? Eu até gostaria, mas isso
seria injusto. As pessoas são livres para tomar decisões que aumentam a desigualdade
— mesmo as decisões mais absurdas e disparatadas, como pagar caro para
assistir a um show do Chico Buarque.
Nesses
exemplos acima, eu peguei emprestado o "argumento Wilt Chamberlain" que o
filósofo Robert Nozick formulou no livro Anarquia, Estado e
Utopia, de 1974. O caso é o similar: imagine que todo o dinheiro do
país é dividido igualmente entre os cidadãos, e imagine que o jogador de
basquete Wilt Chamberlain assina um contrato para jogar numa partida cobrando
mais que os outros jogadores. Como Wilt Chamberlain é um gênio do basquete,
muitas pessoas exerceriam seu livre direito de escolha e aceitariam pagar mais
para assisti-lo ao vivo. A situação inicial, de igualdade total entre os
cidadãos, não seria estável numa sociedade livre, pois, como Nozick arrematou, liberty
upsets patterns. A liberdade perturba padrões.
A
livre-iniciativa torna o Brasil e todos os países do mundo desiguais, mas ela
não é suficiente para explicar por que somos campeões mundiais nessa
modalidade. A concentração de renda tem causas além das forças do mercado.
2. O Brasil é desigual porque é diverso
A história
do livro A
Jangada de Pedra gira em torno de um episódio descomunal: o território
de Portugal e Espanha se separa do resto da Europa e passa a vagar pelo oceano
Atlântico. "A Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por
igual (...) abriram-se os Pireneus de cima a baixo como se um machado invisível
tivesse descido das alturas", conta José Saramago.
É
interessante imaginar uma continuação desse estranho fenômeno. Digamos que a
Península Ibérica, pairando sobre o Atlântico, comece a atrair o território de
outros países. A Dinamarca é o primeiro. A ponte que liga Copenhague à Suécia
de repente se rompe; o território dinamarquês se desprende também do norte da
Alemanha, atravessa o mar do Norte e encontra portugueses e espanhóis no Atlântico.
Na costa oriental da África, Quênia e Tanzânia têm o mesmo destino. Os dois
países se desprendem da África, contornam o cabo da Boa Esperança, sobem o
Atlântico e se fundem aos três outros separatistas. Teríamos assim um novo
país, que agruparia no mesmo território mais de 150 milhões de habitantes da
Dinamarca, Espanha, Portugal, Quênia e Tanzânia.
Se os
dinamarqueses, sempre atentos à concentração de renda, começassem a medi-la
nesse novo país, constatariam estar vivendo numa sociedade muito mais desigual.
Não apenas teriam, entre seus conterrâneos, quenianos e tanzanianos, alguns dos
cidadãos mais pobres do mundo, como também 400 mil novos milionários espanhóis
e portugueses, bem mais endinheirados que o dinamarquês médio. A taxa de
desigualdade iria às alturas, ainda que fosse meio injusto lamentar esse efeito
estatístico, pois sociedades obviamente diferentes haviam sido agrupadas de supetão
no mesmo território. No meio desse novo país, um grupo só dos dinamarqueses
continuaria tão igualitário quanto antes. E as cidades que concentrassem todos
os tipos de moradores seriam as mais desiguais.
Um
fenômeno como esse — não o movimento acelerado de placas tectônicas, mas a
mistura de povos diversos num grande país — explica boa parte da desigualdade
de renda do Brasil. Uma causa importante da desigualdade brasileira é uma das
qualidades que nos dá orgulho: a mistura
de povos e culturas.
O fato de
tribos indígenas e imigrantes suíços donos do Burger King conviverem dentro das
mesmas linhas imaginárias empurra a estatística para cima.
Se eu
estiver certo, preciso provar que há uma Dinamarca incrustada no território
brasileiro. Pois ela existe, fica no Rio Grande do Sul. Das quinze cidades mais
igualitárias do Brasil, doze são gaúchas de origem alemã.
AS
CIDADES MAIS IGUALITÁRIAS DO BRASIL
1. São
José do Hortêncio (RS) 0,28
2. Botuverá
(SC) 0,28
3. Alto
Feliz (RS) 0,29
4. São
Vendelino (RS) 0,29
5. Vale
Real (RS) 0,29
6. Santa
Maria do Herval (RS) 0,30
7. Tupandi
(RS) 0,31
8. Campestre
da Serra (RS) 0,31
9. Nova
Pádua (RS) 0,32
10. Córrego
Fundo (MG) 0,32
11. Santa
Rosa de Lima (SC) 0,32
12. Picada
Café (RS) 0,32
13. Presidente
Lucena (RS) 0,32
14. Vila
Flores (RS) 0,32
15. Morro
Reuter (RS) 0,32
A cidade
com a renda mais distribuída do país, São José do Hortêncio, tem um índice de
Gini de 0,28, abaixo dos 0,29 da Dinamarca. Não houve nessas cidades nenhuma
política pública de redução de desigualdade, nenhum imposto sobre fortunas ou
coisa parecida. O que explica a igualdade por lá é simplesmente a semelhança
entre os cidadãos. A semelhança entre os moradores explica a
igualdade escandinava. Assim como os dinamarqueses, quase todos ali têm a
mesma origem cultural, o mesmo nível de educação. E muitos têm origem luterana,
como os dinamarqueses, o que historicamente contribuiu para a igualdade.
"Comunidades
protestantes trabalharam para difundir educação que garantiria que todos
pudessem ler a Bíblia, o que tanto aumentou o nível de educação quanto diminuiu
sua variação", diz o economista Edward Glaeser.
Portanto,
se você procura igualdade, pense em locais onde a população é homogênea:
cidades habitadas somente por sertanejos pobres ou somente por descendentes de
alemães. Pessoas com a mesma origem e cultura. Caatiba, na Bahia, é tão
igualitária quanto Portugal ou o Japão (Gini 0,39), pois Caatiba reúne só um
tipo de moradores – famílias pobres de pequenos criadores de gado.
Em
contrapartida, para achar os locais com maior desigualdade de renda, é preciso
mirar nas cidades em que grupos bem diferentes moram juntos. É o caso das
capitais, que atraem tanto o João Paulo Diniz, herdeiro da rede de
supermercados Pão de Açúcar, quanto o ex-boia-fria que sonha em ganhar mil
reais por mês como jardineiro do João Paulo Diniz.
Mesmo
Florianópolis e Curitiba, as duas capitais mais igualitárias do Brasil, estão
acima da média nacional de desigualdade.
No
entanto, por causa da classe média expressiva, as capitais não são as campeãs
nesse quesito. As cidades mais desiguais são aquelas que reúnem um pedaço da
Dinamarca, outro do Quênia e só. É o caso de São Gabriel da Cachoeira, no
Amazonas, a cidade brasileira mais desigual. Com um índice de Gini de 0,80, ela
supera de longe Seychelles, o país com renda mais concentrada no mundo (0,65).
O motivo?
Em São Gabriel da Cachoeira há apenas dois tipos de moradores: mais de 400
tribos indígenas, que formam 74% da população e não têm renda formal, e
militares, médicos e outros agentes federais muito bem pagos. De fronteira com
a Venezuela e a Colômbia, São Gabriel da Cachoeira é sede de batalhões e órgãos
federais de vigilância. A cidade prova, como nenhuma outra, o impacto da
diversidade cultural sobre a desigualdade econômica.
"Em
países particularmente igualitários, como os da Escandinávia, a população é
geralmente bem-educada e a distribuição de qualificação bem compacta", afirma o
economista Edward Glaeser. "Já países particularmente desiguais e em
desenvolvimento, como o Brasil, são enormemente heterogêneos nos níveis de
qualificação entre elites urbanas bem-educadas e trabalhadores do campo pouco
educados."
Talvez a
miscigenação atue ainda de outra maneira. Provavelmente por vantagens
evolutivas da lealdade de grupo, as pessoas tendem a contribuir mais com quem
se parece com elas ou pertence à mesma identidade coletiva. Palmeirenses ficam
mais contrariados com o dinheiro público gasto no Itaquerão que os corintianos.
O
economista Erzo
Luttmer mostrou, em 2001, que, nos Estados Unidos, o valor dos programas de
redistribuição de renda é menor nos estados onde a população é mais diversa.
"Se indivíduos preferem contribuir para sua própria raça, etnia ou grupo
religioso, eles optam por menos redistribuição quando membros de seu grupo
constituem uma parte menor dos beneficiários", diz Luttmer. "Com o aumento da
diversidade, a porção de beneficiários que pertencem a um grupo diminui em
média. Então o apoio médio para redistribuição cai se a diversidade
aumenta."
Isso leva
a uma conclusão impressionante. Não foi o estado de bem-estar social que
possibilitou a igualdade da Dinamarca, mas o contrário: a semelhança entre os
cidadãos escandinavos possibilitou o estado de bem-estar social.
Quem quer
um Brasil com um índice escandinavo de igualdade precisa torcer para que algum
fenômeno a la Saramago divida o país em diversos territórios. Uma alternativa é
deixar de ligar tanto para a estatística de desigualdade — e desfrutar a
diversidade e a miscigenação que definem o Brasil.
3. O Brasil é desigual porque as
famílias pobres tinham muito mais filhos que as ricas
Um motor
importante (e pouco lembrado) da desigualdade e da miséria no Brasil é a
demografia.
O fato
de, por um longo período, mulheres pobres terem tido mais filhos que mulheres
ricas elevou a estatística da desigualdade. Nos anos 1970, a diferença era
enorme: cada mulher pouco escolarizada tinha, em média, 4,5 filhos a mais que
as escolarizadas. Em 2005, o motor tem uma potência menor (diferença de 1,6),
mas continua ligado.
"Os
pobres não apenas têm menores salários que os ricos, mas também dividem esse
salário entre mais indivíduos, resultando em maior desigualdade de renda per
capita", dizem os economistas Ricardo Hausmann e Miguel Székely em um estudo sobre
fecundidade e desigualdade na América Latina.
Trata-se
de simples aritmética. A renda per capita, como diz o nome, é calculada pelo
número de cabeças. Um casal que ganha 1.400 reais e tem três filhos resulta
numa renda per capita de 280 reais. Se o mesmo casal tivesse cinco filhos, a
renda per capita cairia para 200 reais.
Isso, é
claro, se o casal continuar ganhando 1.400 reais. Infelizmente, há muitas
chances de a renda diminuir com o aumento da família. Filhos exigem tempo —
tempo que os pais poderiam gastar trabalhando. Mais filhos significam menos
chances (sobretudo entre as mães) para trabalhar e ganhar dinheiro. Esse efeito
é maior em mulheres com salário baixo, que têm menor custo de oportunidade (ou
seja, perdem pouco se decidirem largar o trabalho para ficar em casa cuidando
das crianças).
Além
disso, mais filhos significam mais gastos — e menos dinheiro para investir na
educação de cada um. "O número de filhos que um casal decide ter possui forte
relação com o nível de educação que os pais conseguirão fornecer aos filhos",
dizem Hausmann e Szekely. Cada criança começará a vida com uma parte menor da
renda dos pais e com menor escolaridade. Um estudo de 2014 mostra que até 40%
da queda da desigualdade de renda são explicados pela queda na desigualdade de
escolaridade.
Fica
ainda pior. Crianças com pouca escolaridade, quando crescerem, vão concorrer no
mercado por vagas de pouca qualificação, aumentando a oferta de trabalhadores
não qualificados. Uma vez que salários, assim como qualquer preço, são
definidos pela oferta e procura, o salário de pessoas não qualificadas vai
cair, aumentando a diferença de renda entre pouco e muito qualificadas. O maior
número de filhos ainda resulta em uma poupança menor — e um país com menos
economias tem menos capacidade de investimento.
Por outro
lado, se você tem menos filhos, pode investir mais na educação de cada um deles,
quem sabe pagar um intercâmbio para a Inglaterra quando o rapaz chegar à
adolescência. Se menos jovens bem qualificados aparecem no mercado, cai a
oferta de empregados para vagas mais qualificadas; devido à oferta e à procura,
o salário nessas áreas sobe. Em 1973, o economista Carlos Langoni mostrou que,
se a economia cresce muito rápido, a baixa educação dos cidadãos se torna um
motor potente de desigualdade. Com muitas empresas à procura de funcionários,
os poucos candidatos qualificados viram uma mercadoria tão escassa quanto casa
de praia durante a temporada. O salário deles sobe muito mais que o dos menos
educados, aumentando a desigualdade.
Resumindo:
pobres, em geral, dividem a renda com mais indivíduos e educam menos os filhos,
contribuindo para oferta maior (e menores salários) de trabalhadores pouco
qualificados; ricos dividem a renda com menos filhos e conseguem dar uma melhor
educação a eles, contribuindo para não aumentar a oferta (e garantindo maiores
salários) de pessoas bem qualificadas.
O poder
dessa máquina de desigualdade já foi calculado. Em 2010, 45,2% dos brasileiros
eram donos de apenas 10% da renda do país, enquanto 5,9% dos brasileiros
ficavam com 40% da renda.
Como
seriam esses números se a fecundidade de 1980 tivesse permanecido estável até
2010? Teríamos mais pobres dividindo os mesmos 10% e menos ricos desfrutando os
40% da renda nacional. "Se a natalidade não tivesse caído, as proporções
comparáveis seriam de 62% e 4,1%, respectivamente", diz a pesquisadora Ana
Amélia Camarano, do Ipea.

O
demógrafo Jerônimo Muniz, da UFMG, tem estudos similares. Ele calculou o que
aconteceria com a desigualdade social no Brasil entre 1990 e 2000 se todas as
variáveis, com exceção da demografia, ficassem constantes. Em 1990, a diferença
de fecundidade entre mulheres pobres e ricas era bem menor que nas décadas
anteriores, mas ainda existia. "Se a demografia fosse o único componente do
cálculo, a proporção de pobres aumentaria 28% entre 1990 e 2000. Isso
corresponderia a 42% da população. Já a desigualdade seria até 40% maior", diz
Muniz.
Por causa
da estabilidade da moeda e o crescimento (ainda que pequeno) da economia, houve
um movimento modesto na direção contrária: a pobreza caiu 9% entre 1990 e 2000.
Estaria
eu culpando a vítima ao dizer que as mulheres de classe baixa são responsáveis
pela alta desigualdade do Brasil? Nunca me esqueço de uma vizinha da minha mãe
que pagava menos de um salário mínimo para a empregada e não se cansava de
dizer que os pobres eram pobres porque nada faziam além de ter filhos. Não:
culpa não é um conceito que funciona bem em economia. Os pobres provavelmente
ficaram presos numa armadilha: sem dinheiro e informação, tiveram muitos
filhos, o que os deixou com ainda menos dinheiro e informação.
Não é
correto culpar os pobres nem os ricos pela desigualdade. Basta entender que é a
demografia, e não tanto a opressão das grandes empresas e do capitalismo, que
explica boa parte da concentração de renda no Brasil.[2]
4. O Brasil é desigual porque o
estado esculhamba o país
Uma
opinião comum nas discussões sobre economia é que, se o governo deixar, as
grandes corporações vão avançar sobre os pequenos empresários e os ricos
concentrarão toda a renda do país.
Não, é o
contrário.
Grandes
empresas recorrem a
políticos para se tornarem monopólios. Empresários já estabelecidos em um
negócio pressionam o
governo para aumentar regras e exigências, dificultando a vida de possíveis
concorrentes. Leis urbanísticas protegem o patrimônio dos
ricos contra a desvalorização. E os brasileiros de classe A são quem mais
recebe dinheiro público.
Quem diz
isso é um cara de esquerda, o economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de 2001.
No livro O
Preço da Desigualdade, Stiglitz dedica todo um capítulo sobre ações do
governo que deixam os pobres mais pobres e os ricos mais ricos. Seu principal
alvo é o rent-seeking — a arte de conseguir benefícios e privilégios
não pelo mercado, mas pela política.
"O rent-seeking
tem várias formas: transferências ocultas ou abertas de subsídios do governo,
leis que tornam o mercado menos competitivo, leniência com as leis de proteção
da competição, e regras que permitem às corporações tirar vantagem dos outros
ou transferir custos para a sociedade".
Stiglitz
diz que a América Latina é rica em privilégio a grandes empresas — e ele está
certíssimo. Dos casos recentes da política brasileira, o exemplo mais
bem-acabado é o da Braskem, a maior petroquímica brasileira. A Braskem é a
única fabricante nacional de diversas resinas plásticas usadas na fabricação de
brinquedos, embalagens, cadeiras de plástico, carpetes, seringas, peças de
carros e eletrodomésticos, tubos, canos — enfim, de quase tudo. Na média
mundial, o imposto de importação de resinas é de 7%. No Brasil, era de 14%, mas
em 2012 a presidente Dilma elevou a taxa para 20%.
Na época,
o aumento causou revolta, pois reverberaria em toda a cadeia de produtos
plásticos made in Brazil. "A iniciativa beneficiará somente um monopólio
instalado no país, o da Braskem, prejudicando toda uma cadeia produtiva e, o
que é mais grave, os consumidores pagarão a conta", escreveu José Ricardo Roriz
Coelho, então presidente da Associação Brasileira da Indústria do
Plástico.
Com os
concorrentes estrangeiros fora do páreo, a Braskem pôde cobrar mais pelas
resinas que vendia a 12 mil fábricas brasileiras. Entre janeiro de 2013 e
fevereiro de 2014, o aumento dos produtos da empresa foi de 27,6%. Agora,
adivinha quem controla a Braskem? Nada menos que a Odebrecht, empresa envolvida
até a alma em escândalos de corrupção e propinas para o partido no poder.
Durante a
operação Lava Jato, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e o doleiro
Alberto Yousseff disseram que a Braskem pagava propina em troca maiores lucros
em contratos com a Petrobras.
Outros
motores estatais de desigualdade não são tão fáceis de perceber. As leis
urbanísticas, por exemplo. Em muitas cidades brasileiras, a prefeitura impõe um
limite de área construída em relação à área do terreno. É por isso que o Brasil
não tem prédios com mais de cem andares, como em qualquer lugar civilizado. A
regulação urbanística cria uma escassez artificial de espaço urbano, empurrando
o preço para cima.
Esse
fenômeno não é exclusividade do Brasil. Leis que dificultam a construção de
prédios aumentam o preço dos imóveis em 800% na cidade de Londres e em 300% nas
metrópoles Paris e Milão.
A
principal tese do francês
Thomas Piketty, autor de O Capital no Século 21, é que o retorno
sobre o capital vem crescendo em relação ao retorno sobre o trabalho. Está
valendo mais a pena viver de renda que do trabalho. Por que isso acontece? Para
o norte-americano Matthew Rognlie, estudante de economia de 26 anos que virou o
anti-Piketty, as leis de zoneamento são um dos motivos. "Quem está preocupado
com a distribuição de renda precisa ficar atento aos custos de moradia",
escreveu ele. Com a escassez artificial de espaço, quem tem imóveis fica
ainda mais rico, enquanto os que estão lutando para comprar um imóvel precisam
contrair uma dívida maior para realizar o sonho da casa própria. O de cima sobe
e o de baixo desce, como dizia aquele axé da banda As Meninas.
Há ainda
a inflação. Quando as notas de real se desvalorizam, ricos correm para
aplicações bancárias atreladas ao reajuste dos preços. Quanto mais dinheiro,
melhor a proteção, já que investimentos de grande volume costumam ser
remunerados com taxas melhores. Já os pobres não conseguem se proteger tão bem.
Alguns não se protegem nada: 55 milhões de brasileiros nem sequer têm uma
simples caderneta de poupança. Quando o governo descuida da estabilidade
da moeda, atinge em cheio os mais pobres.
O leitor
já deve estar assustado com o poder do governo de concentrar a renda — e olha
que ainda nem chegamos ao principal motor de desigualdade do Brasil. É este
aqui: a aposentadoria integral de funcionários públicos e as pensões especiais.
Um estudo recente e enfático sobre isso é "Gasto Público, Tributos e
Desigualdade de Renda no Brasil", de Marcelo Medeiros e Pedro Souza,
pesquisadores do Ipea [comentado
aqui]. Eles analisaram todas as movimentações financeiras do governo
brasileiro e calcularam o impacto de cada tipo de transação no coeficiente de
Gini brasileiro. A conclusão é de assustar:
Cerca de
um terço da desigualdade total pode ser diretamente relacionado às
transferências de renda e aos pagamentos feitos pelo Estado aos indivíduos e às
famílias, mesmo depois de considerarmos os efeitos progressivos dos tributos
diretos e das contribuições.
Como é
possível o estado aumentar a desigualdade se toda hora vemos na TV o Bolsa
Família e outras ações públicas de assistência aos pobres? A resposta é que, ao
mesmo tempo em que propagandeia a transferência de dinheiro para os pobres, o
governo brasileiro mantém Bolsas Famílias ao contrário: programas que tiram dos
pobres para dar aos ricos e ao governo.
A famosa foto da desigualdade
social esconde uma excelente notícia

Não há
livro didático ou reportagem sobre concentração de renda que não exiba a foto
da favela de Paraisópolis ao lado de um prédio de apartamentos de luxo no
Morumbi, em São Paulo. A foto ilustra, como nenhuma outra, o fato de tantos
terem tão pouco e tão poucos terem tanto. Mas esconde, na verdade, uma
excelente notícia.
Quando
jornalistas ou autores de provas do ENEM escolhem a foto de Paraisópolis para
retratar a desigualdade social, costumar comparar a riqueza dos apartamentos
com a miséria da favela. No entanto, a comparação mais adequada é a dos
moradores da favela hoje e no passado, antes de se mudarem para a metrópole.
Não foram os moradores dos apartamentos do Morumbi que criaram a miséria de
Paraisópolis — pelo contrário, eles ajudaram a diminuí-la, e muitos deles
próprios são netos ou bisnetos de gente miserável.
"A
pobreza urbana não deveria ser comparada à riqueza urbana", diz o economista
Edward Glaeser, professor de Harvard e o mais celebrado especialista em
economia das cidades. "As favelas do Rio de Janeiro parecem terríveis se
comparadas a bairros prósperos de Chicago, mas os índices de pobreza no Rio são
bem menores que no interior do Nordeste brasileiro."
Quem mora
em Paraisópolis vive muito melhor do que se houvesse permanecido no sertão
nordestino, nas lavouras de boias-frias do Paraná ou entre os escombros do
Haiti. Não importa se a miséria está mais aparente ou mais próxima; o principal
é que, para os miseráveis, ela tenha diminuído.
Como
arremata o economista Glaeser: "A pobreza urbana não deveria envergonhar as
cidades. As cidades não criam pobres. Elas atraem pobres. Elas atraem pobres
justamente porque fornecem o que eles mais precisam — oportunidade econômica."
________________________
Leituras complementares e
indispensáveis:
Cinco medidas do governo
que aumentam a concentração de renda
Em vez de culpar a
desigualdade, pense em criar mais riqueza
[1] Índice
mais usado para medir a desigualdade, o coeficiente de Gini vai de 0 (igualdade
total) a 1 (desigualdade total).
[2] Não
estou, aqui, defendendo que as famílias tenham menos filhos. Bom mesmo seria se
o crescimento de economia e da produtividade fosse maior que o da população
brasileira. Como isso não aconteceu, a natalidade se tornou uma máquina de
pobreza e desigualdade no país.