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Economia

O que a “justiça social” fez com a Venezuela

25/11/2015

O que a “justiça social” fez com a Venezuela

"A dominação totalitária tem o objetivo de abolir a liberdade, inclusive eliminar a espontaneidade humana em geral; de forma alguma seu objetivo é apenas a restrição da liberdade, por mais tirânica que seja" -- Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo 

 

Quando a "justiça social" rege a ação política, o resultado é o totalitarismo.  Esta foi uma advertência feita por Friedrich von Hayek e a qual países como a Venezuela vivenciam -- ou melhor, padecem -- em sua quase plenitude.

Em decorrência da expressão "justiça social" -- e outras similares, como "bem comum", "interesse geral", "bem-estar social" ou "função social da propriedade privada" --, o estado venezuelano passou a redistribuir riqueza que ele não produz, a intervir em todos os mercados, estipulando preços e cotas, e a confiscar meios de produção.

À medida que o estado expandiu seu escopo e suas intervenções, os indivíduos ficaram com menos direitos e liberdades, pois, logicamente, à medida que o estado atua, aumentam suas atribuições e suas regulamentações, e consequentemente diminui a amplitude de liberdade dos indivíduos submetidos a este estado.

A intervenção intensa, arbitrária e injustificada do estado venezuelano na vida dos cidadãos vem ocorrendo há mais de 16 anos; porém, nos últimos anos, assumiu uma intensidade e um ritmo alucinantes, se é que isso é possível.

Eis algumas recentes medidas econômicas anunciadas por Nicolás Maduro:

1) À medida que a moeda foi se depreciando, a carestia foi se acelerando de maneira galopante.  Consequentemente, em 2011, o governo decretou um abrangente controle de preços por meio da Lei de Custos e Preços Justos

Mas como o controle de preços não estava funcionando, Maduro resolveu dobrar a aposta no mesmo: anunciou recentemente a reforma da Ley de Precios Justos (Lei de Preços Justos), por meio da qual se alteraram todos os mecanismos de cálculos de preços, e a imposição da lei de Precio Máximo de Venta al Público (Preço Máximo de Venda ao Público) para todos os produtos e serviços do país.

Vale recordar que existe um controle de preços na Venezuela desde o ano de 2003, o qual, no entanto, era válido apenas para alguns produtos.  Em 2011, no entanto, a Lei de Custos e Preços Justos foi ampliada e imposta a todos os produtos e serviços, fazendo com que a fiscalização e a imposição deste controle ficassem a cargo das autoridades reguladoras.  Essa lei de 2011 revelou as intenções reais do governo: controlar cada aspecto da economia, desde as maiores empresas até o mais humilde quiosque.

Veja no vídeo abaixo o desespero de um comerciante ao ser preso pelo governo pelo simples fato de não ter reduzido seus preços como ordenava o governo:

Como era inevitável, o controle de preços fez com que a escassez de bens — inclusive alimentos e remédios — se intensificasse.  A escassez, por conseguinte, empurrou as pessoas para o mercado negro, o que elevou ainda mais os preços dos bens essenciais.

2) Para combater as consequências criadas pelo controle de preços, o governo recentemente anunciou a criação do Comando Nacional de Precios Justos, dirigido pelo vice-presidente Jorge Arreaza e integrado pelo comandante da Guarda Nacional Bolivariana e pelo comandante da Milícia Nacional Bolivariana

Vale lembrar que a "Fuerza Armada Nacional" está sendo utilizada para verificar o cumprimento dos controles de preços, e toda a distribuição de alimentos do país foi colocada sob supervisão militar desde o início de fevereiro.

Enquanto os venezuelanos se aglomeram em filas que normalmente acumulam mais de mil pessoas apenas para conseguir comprar comida, soldados armados pedem as carteiras de identidade para se certificarem de que ninguém está comprando itens básicos mais de uma vez na mesma semana

Todas as compras feitas pelos venezuelanos são computadas em um sistema de dados para garantir que cada consumidor não tente comprar os mesmos produtos racionados em um período menor do que sete dias. Dentro dos supermercados, policiais da guarda bolivariana conferem as carteiras de identidade à procura de falsificações que poderiam ser utilizadas para driblar o sistema de racionamento.  Eventuais transgressores são presos.

3) Para mostrar que agora está falando sério, Maduro convocou um pronunciamento em cadeia nacional para fazer um alerta de cunho explicitamente terrorista aos comerciantes. Nas palavras do próprio Maduro:

"Guerra avisada não mata soldado.  Vamos a uma nova ofensiva.  Não vamos nos cansar enquanto não vencermos esta batalha em nome do povo.  Estamos aumentando as penas de cárcere (para os comerciantes que aumentarem os preços), pois a lei tem de ser implacável."

Vale lembrar que, quando a lei foi sancionada em 2011, já existiam graves sanções aos comerciantes.  E, desde 2011, "estranhamente", a escassez só se agravou.

A lista de itens básicos ausente das prateleiras dos supermercados, que começou com papel higiênico — o que levou o governo a ocupar uma fábrica de papel higiênico, com o uso maciço de força militar, para garantir uma "distribuição justa" dos estoques disponíveis —, foi gradualmente se expandindo para abranger também absorventes, xampu, farinha, açúcar, detergente, óleo de cozinhar, pilhas, baterias e caixões.

Um venezuelano gasta, em média, 8 horas por semana na fila de um supermercado para conseguir comprar itens essenciais.

4) O valor do bolívar está desabando feito pedra.  Em novembro do ano passado, um dólar custava 100 bolívares no mercado paralelo.  Já em novembro agora, o dólar já está se aproximando dos 700 bolívares. 

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Taxa de câmbio bolívar/dólar no mercado paralelo (linha azul) versus taxa de câmbio oficial declarada pelo governo (linha vermelha)

Isso implica uma desvalorização da moeda nacional de 86% em apenas um ano.  O país está em hiperinflação.

Consequentemente, vários comerciantes recorrem ao preço do dólar no mercado paralelo -- o único preço confiável na Venezuela -- para estimarem a atual inflação de preços no país (a qual, baseando-se no movimento do dólar no mercado paralelo, é estimada em 700% ao ano) e com isso terem alguma noção do real valor de suas escassas mercadorias.

Por exemplo, caso o valor oficial do dólar (decretado pelo governo), e não o paralelo, seja utilizado, uma batata frita no Mc Donald's custaria inacreditáveis US$ 126.

Por isso a prática de recorrer ao valor do dólar no mercado paralelo para se tentar ao menos uma precificação mais correta dos bens e serviços.

No entanto, isso irrita o governo. Para abolir essa prática, Maduro prometeu cadeia. 

"Todo aquele que basear seus preços no dólar fantasma ou paralelo, que utilize esse dólar sem nenhum tipo de respaldo legal, será enquadrado nessa nova normativa."

O desespero

Essa combinação de hiperinflação e rígido controle de preços está gerando o supracitado desabastecimento generalizado, esvaziando as prateleiras dos supermercados do país.

Com uma moeda inconversível e que ninguém quer portar — nenhum estrangeiro está disposto a trocar sua moeda pelo bolívar, pois não há investimentos atrativos na Venezuela —, nenhum empreendedor na Venezuela está tendo acesso a dólares.

E, sem acesso a dólares, todas as importações, mesmo a de produtos básicos e essenciais, como remédios, estão praticamente paralisadas.

A única entidade na Venezuela que ainda tem dólares é o governo, e é ele quem decide qual empresa pode receber dólares para importar bens.  No momento, por causa de sua escassez e da acelerada perda de reservas internacionais (que estão em apenas US$ 14,8 bilhões, a menor em 13 anos), a ração de dólares está suspensa.

Consequentemente, o Banco Central está tendo de vender todo o ouro de suas reservas para conseguir importar bens essenciais para manter a população viva.

A mistura de escassez e hiperinflação é mortal.  Pessoas com fome e portando uma moeda que não vale nada têm de recorrer à força física (a única coisa que ainda lhes resta) para tentar sobreviver.  Consequentemente, supermercados estão sendo saqueados e as pessoas estão brigando violentamente entre si para garantir uma fatia do roubo.

O vídeo a seguir, com cenas fortes, mostra um supermercado na cidade de Caroní sendo saqueado e as pessoas brigando para garantir um naco do espólio.  Uma pessoa morreu.  "Esta é a revolução da fome!", gritou uma das mulheres que assistiam horrorizadas ao trágico desenlace.

Já este vídeo, igualmente impactante, mostra dezenas de pessoas lutando em um supermercado apenas para consegui um saco de leite em pó.  A cena é semelhante a de um adestrador jogando migalhas para cachorros.

Recentemente, em outro tumulto em um supermercado estatal do país (que havia anunciado a venda de comida subsidiada), cinco mil pessoas entraram em conflito com a Guarda Nacional, que utilizou gás lacrimogêneo para dispersar a população.  Uma idosa de 80 anos foi pisoteada até a morte. E 75 pessoas ficaram feridas.

A situação ficou tão escabrosa que os traficantes de drogas abriram mão de seu ofício em tempo integral e passaram a se especializar no mercado paralelo de alimentos.

Escassez faz criminosos trocarem tráfico de drogas pelo de alimentos na Venezuela

Jaime se dedicava exclusivamente ao tráfico de drogas até que, dois anos atrás, um cliente que trabalhava em um supermercado lhe ofereceu trocar maconha por farinha de milho pré-cozida.

Desde então, o traficante se dedica -- também -- ao que eles chamam de bachaqueo, atividade ilegal cada vez mais comum na Venezuela, que consiste em revender produtos básicos que nem sempre são encontrados em lojas e pelos quais milhões de venezuelanos passam horas na fila todos os dias.

"Ele me propôs a troca e eu disse que sim. Quando fui ver, minha casa estava cheia de produtos", afirmou ele à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, sob condição de anonimato.

De acordo com a Lei de Preços Justos, que estabelece a regulação de preços de produtos de primeira necessidade no país, a revenda desses bens é crime sujeito a pena de três a cinco anos de prisão.

O suprimento de remédios está acabando. Salas de cirurgia estão fechadas há meses, não obstante centenas de pacientes estejam na fila de espera para cirurgias.  Algumas clínicas privadas são capazes de manter a sala de cirurgias funcionando porque conseguem contrabandear dos EUA, sem que o governo venezuelano possa interceptar, remédios essenciais.

Com a falta de remédios, os venezuelanos estão tendo, humilhantemente, de recorrer a medicamentos para cachorro.  Como consequência, os próprios cachorros também começaram a sofrer, já que esse aumento da demanda por medicamentos veterinários está diminuindo a oferta disponível de remédios para serem usados nos próprios cachorros.

Está havendo também uma escassez de contraceptivos, o que vem aumentando a taxa de gravidezes indesejadas no país.  Para piorar, também há escassez de fraldas e leite, itens essenciais para os recém-nascidos.

A revolta dessa venezuelana na fila do supermercado fala por si só:

Conclusão

Quanto mais o governo afirma estar agindo "em nome do povo", fazendo "justiça social", e cuidando do "interesse geral", mais pessoas morrem de fome e passam a viver uma vida humilhante.

Quando a "justiça social" rege as ações políticas, o resultado é o totalitarismo. Hayek já havia alertado sobre isso.

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Andrea Rondón García, doutora em direito pela Universidad Central de Venezuela e diretora acadêmica do Instituto Ludwig von Mises Venezuela.  É também professora da Universidad Católica Andrés Bello.

Leandro Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.


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