segunda-feira, 31 jan 2022
Blocos habitacionais da URSS, provavelmente da metade do século 20. Foto: mvstang @ Flickr
"Moradia
não é mercadoria" é uma frase muito repetida entre ativistas em defesa da
moradia popular.
Entendo
aqui 'moradia' como unidades de habitação, principalmente casas e apartamentos.
Já 'mercadoria' é algo produzido para ser vendido no mercado, destinado ao
comércio, e que não é uso do produtor.
A
vasta maioria das moradias hoje em dia pode ser considerada mercadoria, dado
que é produzida e vendida por incorporadoras e imobiliárias que não moram nos
edifícios que produziram. Assim, a proposta por trás dos
ativistas que repetem essa frase é a de fazer com que a moradia deixe de ser
produzida e vendida pelo mercado imobiliário, passando a ser planejada e
distribuída pelo poder público. O objetivo seria torná-la mais acessível dado o
atual déficit de moradias, que é uma
das causas dos altos preços do mercado imobiliário.
Só
que essa proposta não é nova. Moradia já
deixou de ser mercadoria durante um momento muito peculiar da nossa história, e
de forma bem documentada, na União Soviética (URSS), abrangendo várias
cidades da Europa Central e Oriental durante a maior parte do século
passado.
Hoje, é possível entender quais foram as principais consequências
dessa política.
Várias
cidades da antiga URSS aboliram o sistema de preços e implementaram uma
economia planejada durante um período que durou entre 45 e 75 anos. Nesse
espírito, também foi abolido o mercado imobiliário. Consequentemente, o que determinava a
alocação de densidades e de usos residenciais, comerciais e industriais não
eram as demandas dos moradores na condição de consumidores imobiliários, mas sim
decisões burocráticas feitas com o intuito de minimizar os recursos investidos
em imóveis com o objetivo de prover "moradia universal".
É
difícil entender este sistema, tão diferente ele era do que estamos acostumados
atualmente. Deixando de ser mercadoria, imóveis e terrenos não tinham preços. O
planejamento se iniciava com estudos técnicos que determinavam a
quantidade de terra necessária para construir apartamentos e fábricas. Ato
contínuo, uma vez que a terra fosse alocada para um determinado uso, ela não mais
podia ser vendida ou alugada para um terceiro, apenas devolvida para o governo
caso nada fosse construído.
Esse
princípio teve um grande impacto em indústrias que sofriam mudanças
tecnológicas: fábricas se expandiam, mas não podiam se realocar, pois teriam um
custo de mudança de terreno que não podia ser compensado por uma venda da
fábrica original. Afinal, fábricas
também não podiam ser tratadas como mercadorias.
Mesmo
quando problemas tecnológicos e operacionais obrigavam administradores a mudar
de local, os terrenos deste anel industrial não eram reciclados, mas sim
mantidos industriais, só que com menos empregos e atividade industrial. A
política industrialista da União Soviética levou a uma extrema concentração de
indústrias dentro da região urbanizada.
Por
exemplo, em Moscou, 32,5% da cidade construída é usada para fins industriais
(embora parte esteja abandonada atualmente, pois a cidade ainda não conseguiu
se regenerar). Em Paris, Seoul e Hong
Kong são apenas 5%.
O
mesmo processo era feito na determinação do uso comercial. É importante lembrar
que, na verdade, não deveríamos chamar tal atividade de "comércio", mas
simplesmente de "serviços", pois o comércio (pelo menos nas vias formais, já
que o chamado "mercado negro" funcionava de forma abrangente) não existe
quando se abole o conceito de mercadoria. Assim, muitos serviços como bancos,
corretoras de imóveis, seguradoras etc. simplesmente não existiam nessas
cidades. Adicionalmente, muitos serviços de educação, saúde e distribuição de
alimentos eram feitos dentro de instalações industriais e não necessitavam de
uma alocação específica de uso do solo na cidade.
A alocação
de moradia também seguia a mesma lógica, mas com um pequeno detalhe: a
quantidade de terra alocada para uso residencial foi mudando ao longo do
período soviético de acordo com o desenvolvimento de tecnologias que permitiam um
melhor aproveitamento da terra: a verticalização. Sistemas pré-fabricados de construção, que se
tornaram universais para a construção de moradia nos países da Europa Central e
Oriental dos anos 1960 em diante, permitiram blocos de apartamentos mais altos,
diminuindo a necessidade de terra do ponto de vista dos planejadores e gerando
cada vez densidades mais altas.
Os
planejadores soviéticos avaliavam apenas quantitativamente as necessidades de
moradia da população, sem se importar com a localização das construções na
cidade. Ao mesmo tempo, os grandes terrenos em que ainda não haviam sido feitas
construções eram encontrados mais facilmente nas periferias. Isso fez com que
as zonas residenciais mais recentes — e mais distantes do centro — normalmente
tivessem densidades mais altas por causa das alturas mais altas de edifícios
que foram possibilitados ao longo do tempo.
O
resultado urbano final em cidades nas quais isso teve maior impacto é o caminho
oposto ao da cidade europeia tradicional, que possui maior densidade próximo do
centro histórico — de maior demanda por moradia e por serviços — e que vai
gradualmente diminuindo à medida que dele se distancia.
Moscou,
onde essa política teve maior impacto, apesar de ainda possuir um centro
histórico que concentra empregos e serviços, é uma das únicas cidades do
mundo que possui periferias mais densas que as áreas centrais.
Ineficiência
urbana
Uma
das consequências urbanísticas deste tipo de planejamento foi o aumento
das distâncias de deslocamento, uma vez que os moradores das periferias são
obrigados a se deslocarem à área central onde se concentram os serviços. Se a maioria
dos moradores se concentra nas periferias, o resultado agregado será pouco
eficiente.
Se
compararmos Moscou a Paris, a qual teve uma alocação espontânea de moradia e de
serviços durante a maior parte do seu desenvolvimento urbano, a primeira possui
75% da área da segunda, mas com uma distância de deslocamento dos moradores 5%
maior. Brasília, que também teve um planejamento totalmente centralizado, tem
um desempenho ainda pior neste indicador: a distância de deslocamento dos seus
moradores é semelhante à de Nova York, mas a capital brasileira tem uma área
construída 10 vezes menor.
O
custo de oportunidade de se manter terrenos abandonados ou subutilizados em
regiões centrais da cidade — principalmente industriais, no caso de Moscou —
também é muito significativo, contribuindo para a escassez de terra para
moradia. Citando a economista
Emily Washington, "Não faz sentido o uso industrial em terrenos
onde as pessoas estão dispostas a pagar um prêmio para ter moradias".
O
trabalho do urbanista Alain Bertaud mostra
que, em 1991, quando o mercado imobiliário foi gradualmente sendo reintroduzido
na Rússia após o fim da União Soviética, os preços de moradias próximas ao
centro foram aumentando, mostrando uma clara falta de oferta de moradia nestes
locais.
Escassez,
burocracia e mercado negro
A
falta de um sistema de preços — que é crucial para transmitir informações
sobre oferta e demanda — também levou a uma grande escassez de moradias,
principalmente durante a primeira metade do período soviético.
Durante
a era Stalin, entre 1927 e 1955, a URSS não aumentou os baixíssimos índices de
área construída per capita que já existia em 1917, de 4m2.
A coabitação era frequente e necessária, com cerca de 35% da
população vivendo em apartamentos compartilhados até o final da URSS. As
filas de espera para se conseguir moradia levavam em torno de
10 anos. Era tanta burocracia envolvida no processo, que o governo russo
identificou 56 tipos diferentes de moradia que poderiam ser conseguidos por 120
procedimentos distintos.
Dado
que a compra, venda e troca de moradias era proibida (pois, lembremos, deixaram
de ser mercadoria), estabeleceu-se um mercado negro de sublocação, que alguns
autores estimam ter abrangido 10%
de todas as unidades da cidade.
Também
era frequente a transferência ilegal de endereço, já que também era necessário
esperar alguns anos nas filas de registro para formalizar a troca. Apesar de
não existirem estatísticas oficiais a respeito de moradores de rua, relatórios
secretos da URSS reportam cifras em torno de 500
mil pessoas.
Mesmo
assim, as principais cidades, como Moscou, eram símbolos para o resto do país e
para o resto do mundo, recebendo um investimento desproporcionalmente maior em
moradia quando comparada às demais cidades soviéticas. A quantidade e a
qualidade da moradia produzida, por exemplo, em zonas rurais e industriais na
Sibéria eram muito inferiores às dos centros urbanos. No entanto, para piorar a
situação, o controle quantitativo de moradia e a constante escassez nas cidades
devido à rápida industrialização criaram a política da propiska,
uma espécie de passaporte migratório interno, que proibia os moradores de zonas
rurais de migrarem para os centros urbanos.
O
fim da arquitetura
Uma
das propostas da política de moradia da URSS era promover a habitação coletiva
e a igualdade de moradia para todos. Nesse sentido, havia um modelo de bloco
habitacional a ser seguido durante cada época, e que não levava em conta as
preferências e particularidades dos cidadãos. Isso resultou na
pasteurização modernista da cidade soviética, a repetição de projetos
assépticos visando à redução numérica do déficit habitacional — o qual, mesmo
assim, não foi resolvido.
No
contexto soviético, pode-se dizer que isso decretou o fim da arquitetura
residencial, dado que uma única solução era escolhida para resolver a
necessidade de todos.
Muitos
podem criticar as "selvas de concreto" de cidades como São Paulo ou Nova York, nas
quais há uma variação radical no tamanho, forma e estilo de cada projeto
arquitetônico. Mas o fato é que sua
variabilidade de edifícios — mesmo que dentro das legislações estabelecidas — permite
que cada cidadão possa escolher a arquitetura de sua preferência. O mercado
imobiliário, neste cenário, visa a atender as diversas preferências de
seus consumidores, as quais também mudam de forma dinâmica junto com os
hábitos e com as tecnologias existentes a cada época.
Um
forte indício disso é que, com o fim da vontade de se morar longe das regiões
centrais — tendência essa que impulsionou o espraiamento urbano até os
anos 1980 —, hoje existe uma tendência forte entre incorporadoras de
produzir apartamentos menores, bem localizados e com um relacionamento mais conectado
entre a edificação e a cidade. Tanto Nova York quanto São Paulo são
protagonistas em seus respectivos países em liderar este movimento de
transição.

Vista da parte sul de Manhattan, em Nova York, do 102o andar do Empire State. Foto: luvi @ Flickr
Moradia é mercadoria
O
relato sobre moradias na União Soviética mostra empiricamente algumas das consequências
negativas de se fazer com que a moradia deixe de ser tratada como mercadoria. É
importante ressaltar que os problemas observados não foram resultado de
falhas técnicas no planejamento ou de um conceito errôneo de moradia adotado,
mas sim da eliminação do sistema descentralizado de preços, o qual, quando
funciona livremente, gera feedbacks constantes de informação
entre oferta e demanda.
Por
meio do sistema de preços, cada cidadão, ao voluntariamente alugar,
comprar, desenvolver (ou não) um determinado imóvel em uma determinada
localização, e fazer dele o que mais lhe aprouver, está fornecendo ao
mercado informações cruciais sobre sua preferência. E, ao fazer isso, ele envia aos outros
indivíduos e empresas informações instantâneas sobre a situação deste mercado.
Tentar
abolir novamente o mercado imobiliário com o intuito de planejar a cidade
de uma forma diferente — e ao gosto de planejadores e burocratas — gerará
problemas da mesma natureza do modelo imobiliário soviético, pois tal medida arbitrária
não responde às demandas da população de forma dinâmica. Imóveis vazios ou
subutilizados continuarão existindo, embora dispersos pela cidade em vez
de estarem concentrados em uma região inteiramente zoneada.
O
déficit habitacional e os altos valores das moradias, alvos da luta pela
moradia popular, deveriam ser atacados em sua raiz, sem alterar a
característica dinâmica de preços. O que, afinal, torna nossos imóveis tão
caros? Um estudo realizado em 2005 pelos economistas Edward Glaeser
e Joseph Gyourko intitulado "The Impact of Zoning
on Housing Affordability" aponta forte correlação entre regulação do uso do
solo e acessibilidade à moradia, podendo resultar em um aumento de até 50% no
valor imobiliário de uma determinada região.
São
inúmeros os motivos que contribuem para elevar os preços de moradia, desde
restrições artificiais de oferta (limites de densidade; de altura de
edificações; recuos de ajardinamento; leis de zoneamento) a alterações nos
projetos (como número obrigatório de vagas de garagem e leis que incentivam a
subutilização dos térreos), passando por custos na atividade de incorporação
(custos legais de passar pela aprovação dos órgãos públicos; custo do risco
legal de legislações que não deixam claro o que pode ou não ser feito em
um determinado terreno; custo de oportunidade do tempo entre a compra do
terreno e espera de um determinado projeto ser efetivamente aprovado na
Prefeitura; impostos e encargos trabalhistas).
[Nota do editor: além de todos esses
fatores, é crucial também ressaltar, para o Brasil, a política de crédito fácil
do governo federal voltada para o setor imobiliário. Um financiamento de imóveis feito por bancos
estatais — Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil — paga juros muito
abaixo da SELIC. Trata-se de um banquete para os especuladores
imobiliários, e uma tragédia para os mais pobres, que sofrem as consequências
do aumento dos preços. Veja todos os detalhes aqui].
Tudo
isso contribui para um aumento significativo no preço dos imóveis em centros
urbanos altamente demandados.
O
resultado do estudo de Glaeser conclui que as cidades norte-americanas que
possuíam menos restrições do uso do solo tinham seus preços mais próximos dos
seus custos de construção, dado o equilíbrio de mercado entre oferta e demanda
por moradia. Em um centro urbano inserido em uma economia de mercado é
contraditório lutar contra uma grande oferta imobiliária e, ao mesmo tempo, a
favor de preços acessíveis.
Enfim,
para termos uma cidade eficiente, diversa, dinâmica e, ao mesmo tempo,
acessível, não devemos fazer com que a moradia deixe de ser mercadoria,
mas sim que ela seja uma mercadoria acessível a todos.