Uma das principais discussões da filosofia se concentra no
debate sobre até que ponto a mente humana é apenas um subproduto da realidade
objetiva e, consequentemente, até que ponto devemos confiar na razão para a
busca de conhecimento.
A visão predominante afirma que é na realidade objetiva
que devemos buscar e comprovar todo o tipo de conhecimento acessível à mente,
mesmo nas ciências sociais, de forma que qualquer teoria ou hipótese sobre o
mundo ou sobre a mente deve estar amparada em dados empíricos.
Assim, os empiristas e positivistas argumentam que os racionalistas, por apresentarem elaborações a partir de
conceitos e noções sem qualquer vínculo evidente com a experiência, seriam
dogmáticos, sendo suas elaborações incapazes de constituir um
conhecimento cientificamente válido.
A seguir, algumas objeções a esse raciocínio. O enfoque é mostrar que:
1) o "motor do conhecimento" se encontra na
mente humana, sendo ele obtido, primordialmente, a partir do uso da razão;
2) é a realidade que se conforma com a mente a partir da
ação humana; e
3) não há limites para o conhecimento humano e para o
progresso, desde que sejamos livres para agir.
Epistemologia
Na
história do pensamento, Platão nos traz a divisão entre o reino da mudança, que
é aquele que trata do mundo das coisas sensíveis, e o reino do ser, que é
aquele que trata do mundo das coisas puramente inteligíveis, imateriais,
representadas na mente humana, local onde se processam as ideias, formas,
categorias e conceitos derivados da realidade objetiva.
O que
em comum têm esses dois mundos? E o que eles têm de diferente?
De
diferente, notamos que o reino da mudança se processa na forma da estabilidade
e regularidade das leis da natureza — pelo menos, é o que percebemos pelos
nossos sentidos até o presente momento da história humana na terra —, ao passo
que o reino do ser se processa na mente humana de forma irregular e abstrata.
Em
comum entre esses dois reinos, nota-se a forte presença da noção de movimento,
seja pela percepção da regularidade dos eventos naturais, ou, no caso das
coisas inteligíveis da mente, pela nossa capacidade de escolher e de compreender a intencionalidade da ação
humana.
Não
cabe aqui entrar na discussão sobre como surgiu a capacidade da mente de
compreender a intencionalidade da ação humana. O fato é que ela existe e é uma
verdade autoevidente[1].
Essa foi a grande contribuição de Ludwig Von Mises: a
sistematização do fato de que a nossa mente funciona a partir da percepção de
categorias da ação humana. Mises observou que:
Ação humana
é comportamento propositado. Também podemos dizer: ação é a vontade posta
em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e
objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do
seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe
determina a vida. Estas paráfrases podem esclarecer a definição dada e
prevenir possíveis equívocos. Mas a própria definição é adequada e não
necessita de complemento ou comentário.
Mises compreendeu que a "ponte" entre a mente e a realidade está na compreensão da
ação humana proposital e, portanto, na noção de movimento. Isso porque
compreendemos o mundo a partir dos efeitos advindos de nossas ações
propositais, que são motivadas pelas mais diversas intenções ou vontades
humanas, chamadas de causas finais.
Essas
causas finais são processadas na mente como categorias da ação humana, de forma
que o funcionamento da mente é indissociável da percepção dessas categorias.
Perceba que todo
objeto criado pelo homem está associado a alguma categoria da ação. Exemplo:
dinheiro -> comprar e vender; cadeira -> sentar-se; talheres -> comer;
quadros -> olhar, contemplar, refletir etc.
É impossível
negar esse fato sem entrar em contradição. Podemos dizer, de forma resumida,
que a mente funciona em termos de categorias da ação humana, que por sua vez
são derivadas a partir da interação com a realidade.
Nesse
sentido, não cabe falarmos que o conhecimento humano é independente da
realidade objetiva ou da experiência sensível, isso porque a ação humana, desde
os primórdios, sempre se deu na realidade objetiva. E, se a mente apresenta categorias e conceitos
derivados da ação, o conhecimento e a razão humana não podem ser completamente
independentes dessa realidade — o que, como veremos, está bem distante de
dizer que todo o conhecimento vem da realidade objetiva, e que, portanto,
estaria eternamente limitado por ela.
Mente x realidade
Para
aprofundar o entendimento sobre a relação entre mente e realidade, é necessário
buscar semelhanças entre esses dois "reinos" a partir da análise de
categorias do entendimento. Podemos identificar que as categorias 'espaço', 'tempo'
e 'causalidade' são perceptíveis pela mente humana tanto a partir do
entendimento das regularidades dos eventos naturais do mundo externo (realidade
objetiva), quanto a partir do entendimento sobre ação humana proposital.
Senão
vejamos:
-
Espaço: o movimento de objetos, a regularidade dos eventos da natureza e a ação
humana proposital ocorrem no espaço da realidade objetiva, porém o entendimento
sobre essa regularidade e sobre a intencionalidade da ação somente pode ser
processado pela mente;
-
Tempo: confunde-se com a percepção do movimento de objetos e da regularidade dos
eventos naturais (exemplos: movimento dos astros, relógio do sol, movimento dos
ponteiros de um relógio) e também com a passagem da ação humana intencional (exemplos:
a percepção de presente se confunde com a ação realizada no momento, o passado
é a lembrança da ação realizada, e o futuro é a consciência sobre a ação ainda
não realizada);
- Causa
e efeito: toda alteração ou movimento de um objeto na realidade objetiva
pressupõe uma causa inicial, e toda ação humana pressupõe uma intenção ou causa
final, concebida subjetivamente na forma de categorias da ação.
Como
a realidade objetiva surgiu antes da mente humana, essas categorias foram
incorporadas pelo homem a partir da interação da mente com a realidade ao longo
da história da
ação humana na terra.
Mas,
se a mente funciona em termos de categorias da ação humana derivadas a partir
da realidade, por que ela não está limitada pela realidade, mas ao contrário, é
a realidade que está limitada pela mente humana? Simples: porque
conseguimos imaginar situações e contextos que não existem na realidade, apesar
de serem construídos a partir da combinação de conceitos originalmente extraídos
da realidade objetiva — como, por exemplo, a possibilidade de o sol não nascer
amanhã, de sairmos voando por aí como o "Super-Homem", de voltarmos e
de avançarmos no tempo etc.
Todas
essas são situações construídas a partir das regularidades da realidade
objetiva, de categorias de ação pré-existentes, processadas e combinadas pela
mente em torno da noção de ação intencional — ou seja, em torno da capacidade
humana de transformar intencionalmente a realidade objetiva em que vive.
Assim,
conseguimos materializar conhecimentos e conceitos, antes inexistentes na realidade
objetiva, por meio da ação humana proposital, tendo, como ponto de partida,
combinações mentais de categorias da ação previamente existentes no mundo
externo (realidade objetiva).
Outra forma de
constatar esse fato é refletirmos sobre as coisas à nossa volta, criadas pelos
humanos. Antes de se tornarem realidade, elas tiveram, necessariamente, de ser constituídas
na forma de uma ideia. Neste sentido, podemos dizer
que foi a realidade objetiva que se conformou com a mente por meio da ação
humana intencional, no momento em que essa realidade foi alterada pela ação.
Porém,
como tudo aquilo que é modificado deve ter a capacidade de ser algo além do que
era, uma nova realidade objetiva é criada. Essa nova expansão da realidade pela
ação agora apresentará novos conceitos, significados e, portanto, novas
categorias da ação, que, se novamente absorvidas e combinadas pela mente
humana, darão origem a novos conhecimentos e ações que possibilitarão uma outra
nova expansão da realidade, num processo de retroalimentação sucessiva entre
mente, ação e realidade.
Se
analisarmos resumidamente o processo de surgimento do automóvel, por exemplo,
podemos perceber que sua origem se encontra na vontade humana de se locomover e
de transportar objetos de forma mais eficiente. Para isso, a partir de
elementos da realidade objetiva (animais, árvores e formas presentes na
natureza), o homem agiu, domesticou animais, criou a roda e as carroças. Com a
combinação e evolução desses conceitos e com o surgimento de outras novas
soluções, como a pavimentação de superfícies, surgiram as carruagens. A partir
da combinação de carruagem e de máquina a vapor
— concebida originalmente no séc. XVIII para retirar com maior eficiência a
água acumulada nas minas de ferro e carvão e para fabricar tecidos —,
chegou-se ao conceito inicial de automóvel.
Note
que as causas finais que deram origem à carruagem e à máquina a vapor são
distintas, e que, a partir delas, uma nova realidade foi criada. Esse é apenas
um dos incontáveis exemplos de como se dá a evolução material humana a partir
de conceitos criados pela ação proposital, ou seja, a partir do entendimento e
da combinação de categorias da ação previamente presentes na realidade
objetiva.
Obviamente,
o grande catalisador desse processo de expansão da realidade é o empreendedor.
É ele quem cria novos conceitos, aplicações, soluções e produtos que darão
origem a novas relações de causa e efeito, num processo cíclico de inovações
potencialmente ilimitadas ao longo do tempo, possibilitando a evolução do bem-estar
material de uma sociedade.
É por
isso que intervenções governamentais que atrapalhem a possibilidade da ação
empresarial, como regulamentações, controles de preços, burocracia, leis de propriedade
intelectual e seus monopólios artificiais, entre outras mazelas estatais,
irão distorcer a realidade objetiva e as possibilidades de ação empreendedorial,
atrasando ou impedindo a evolução material de uma sociedade.
Disso
tudo decorre que, além da fonte de conhecimento estar na mente, não há limites
ao conhecimento e ao progresso humanos. Eventuais
limites seriam apenas contingentes, podendo suas fronteiras ser ampliadas
conforme se materializem as possibilidades de alteração da realidade pelo homem
— as quais são infinitas.
Assim,
podemos entender a evolução do conhecimento como o resultado da transformação da realidade em camadas, expandidas pela
mente por meio da ação humana proposital.
Conclusão
Para que o mecanismo acima funcione em
direção ao progresso, existe uma condição necessária a ser preenchida: a
capacidade humana de agir conforme as suas intenções.
Em outras palavras, é preciso que a
categoria da ação "liberdade" esteja presente em nosso dia-a-dia, sem obstáculos
e barreiras artificiais impostas pelo governo.
São essas barreiras que impedem que novas realidades possam existir,
quebrando assim o ciclo da prosperidade.
[1]
O "axioma da
ação humana", postulado por Mises, é irrefutavelmente verdadeiro.
Trata-se de uma proposição autoevidente cuja veracidade lógica não pode ser
negada. Qualquer tentativa de negá-la resultaria em uma insolúvel contradição
intelectual, pois dizer que "humanos não podem agir" já é em si uma
forma de ação humana.
Igualmente, ele se baseia na proposição autoevidente de que os humanos agem
propositalmente para sair de uma situação de desconforto. Todo indivíduo que
tentar negá-la por meio de qualquer ação entrará em contradição, acabando por
confirmá-la. Por exemplo, ao tentar negar "o axioma da ação", um
indivíduo necessariamente estará se utilizando de argumentos (ação meio) para
atingir um objetivo ou um fim desejado, qual seja: refutar o axioma da ação.
Porém, ao tentar refutá-lo, entrará em contradição, pois estará empreendendo uma
ação humana proposital para sair de uma situação de desconforto.