Economia
O que é e quais efeitos tem um programa de “afrouxamento quantitativo”
O que é e quais efeitos tem um programa de “afrouxamento quantitativo”
O Federal Reserve, o Banco Central americano, adotou o afrouxamento quantitativo do início de 2009 até outubro de 2014. O Banco Central do Japão, o pioneiro, adotou-o em março de 2001, e voltou com tudo em 2011. O Banco Central da Inglaterra começou em 2009 e ainda não parou. Já o Banco Central da Suécia adotou o programa em fevereiro de 2015.
Ao entender de muitos, este programa de "injeção de dinheiro" na economia é a chave para a recuperação. No entanto, para avaliar realmente seus efeitos, convém conhecer tanto sua natureza quanto suas consequências.
Em que consiste exatamente?
O afrouxamento quantitativo nada mais é do que a compra, pelo Banco Central, de determinados ativos em posse do sistema bancário.
Imagine que um determinado banco do seu país (o Banco A) tenha adquirido recentemente um título do Tesouro pelo valor de $ 10 milhões, e cujo prazo de vencimento é de 10 anos (enquanto o título não vence, o Banco A recebe juros do tesouro).
Agora, suponha que o Banco A repentinamente esteja necessitado de melhorar sua liquidez. Neste caso, dado que ainda falta uma década para o que o governo do seu país devolva o dinheiro que o Banco A lhe emprestou, o Banco A tem duas opções:
1) pedir um empréstimo para o próprio Banco Central, utilizando esse título do Tesouro como garantia (como quem pede um empréstimo para a compra de um imóvel e fornece como garantia o próprio imóvel); ou
2) vender o título da dívida a outros investidores.
O problema com a primeira opção é que ela representa uma melhora apenas temporária. Afinal, o empréstimo junto ao Banco Central terá de ser quitado. No que mais, ainda há um custo financeiro: o crédito que o Banco Central concedeu ao Banco A vencerá em pouco tempo (na Europa, pode ser um mês, um trimestre ou, na melhor das hipóteses, 3 anos), e o Banco A ainda terá de pagar juros ao Banco Central. Ou seja, na prática, o Banco A não está melhorando estruturalmente sua liquidez: seu saldo de caixa aumenta apenas temporariamente, e ainda com o ônus de arcar com um custo financeiro.
A segunda opção é, em princípio, mais interessante para o Banco A: ele vende o título da dívida pública para outro banco (por exemplo, o Banco B), recebe dinheiro imediatamente, e se desfaz em definitivo desse título, conseguindo melhorar de forma estrutural sua liquidez sem a necessidade de pagar juros para o Banco B.
No entanto, do ponto de vista macroeconômico, essa transação tem um defeito: sim, o Banco A melhora sua liquidez, mas o faz à custa de uma piora da liquidez do Banco B. (O Banco B reduziu seu saldo de caixa ao comprar o título da dívida em posse do Banco A).
O que fazer, então, se nosso objetivo é o de que alguns bancos melhorem sua liquidez sem que outros, no entanto, piorem as suas respectivas? É aqui que entram os programas de afrouxamento quantitativo.
Mediante um afrouxamento quantitativo, é o Banco Central quem compra a dívida pública (ou qualquer dívida privada) em posse dos bancos. E como ele faz essa compra? Criando dinheiro do nada. Na prática, o Banco Central simplesmente aumenta o saldo da conta-corrente que os bancos têm perante o Banco Central, criando novos dígitos eletrônicos nessas contas. O efeito é exatamente o mesmo de imprimir dinheiro.
Consequentemente, e seguindo nosso exemplo anterior, o Banco A pode melhorar estruturalmente sua liquidez sem que nenhum outro banco tenha piorado a sua, pois o Banco Central criou nova liquidez com a qual saneou o balancete do Banco A.
Supostamente, quais são os efeitos?
Segundo alegam os defensores dessa política, os programas de afrouxamento quantitativo possuem vários efeitos que resultam em benefícios para o conjunto da economia e que permitem reanimá-la.
Em primeiro lugar, contribuem para reduzir as taxas de juros: se o Banco Central aumenta a demanda por determinados títulos da dívida pública, a taxa de juros desses títulos irá cair (para simplificar: comprar um título da dívida é equivalente a emprestar ao emissor desse título; e quanto maior a oferta de empréstimos, menores os juros).
Por si só, isso já constitui um estímulo para aquelas entidades cujos títulos da dívida são comprados pelo Banco Central: os juros menores tornam mais barato seu custo de financiamento. O Tesouro, por exemplo, poderá agora se endividar de maneira mais barata, liberando recursos para outros gastos.
Em segundo lugar, a situação financeira dos bancos irá melhorar: uma parte de seus ativos (empréstimos concedidos para o governo) não mais estará comprometida a longos períodos de maturação, pois estes ativos foram substituídos por dinheiro criado pelo Banco Central. Os bancos agora possuem dinheiro em mãos.
Em terceiro lugar, a combinação entre juros menores e aumento da liquidez dos bancos deveria aumentar a concessão de novos empréstimos para o setor produtivo da economia. De um lado, os balancetes dos bancos estão mais sólidos por causa do afrouxamento quantitativo e, consequentemente, os bancos dispõem da maior capacidade para conceder novos empréstimos. De outro, as baixas taxas de juros agora vigentes sobre certa classe de dívida (por exemplo, a dívida pública) fará com que os bancos busquem outros lugares onde investir seu dinheiro: se os cômodos e seguros títulos da dívida não são mais um bom negócio (pois os programas de afrouxamento quantitativo reduziram seus rendimentos), então aos bancos não restará alternativa senão assumir maiores riscos e emprestar para famílias e empresas esse novo dinheiro que receberam do Banco Central.
Adicionalmente, dado que haverá agora vários bancos ansiosos para emprestar para famílias e empresas, as taxas de juros sobre o crédito privado cairão, o que fará com que mais pessoas e empresas se endividem para consumir e investir.
Em quarto lugar, o aumento do crédito ao setor privado, e o consequente aumento do consumo e dos investimentos com base no endividamento, trará efeitos positivos para a economia. Um maior gasto privado tenderá a ressuscitar a economia e, desta forma, não apenas irá reanimar a "atividade econômica", como também irá elevar os preços, afastando assim o "terrível" fantasma da deflação.
Em quinto lugar, uma parte desse consumo estimulado pelo crédito vazará para o exterior e, para isso, será necessário vencer a moeda nacional em troca de outras moedas. No contexto europeu, o euro terá de ser vendido em troca de dólares, libras ou ienes, o que fará com que estas se apreciem frente ao euro. Adicionalmente, como todo o mundo antecipará essa depreciação do euro, os especuladores tenderão a acelerá-la, liquidando suas posições em euro ou fazendo vendas a descoberto com a moeda europeia.
Em sexto lugar, e por último, a maior disponibilidade de crédito barato, o maior gasto interno, o aumento dos preços, a desvalorização da moeda, e a expectativa de que essas condições de afrouxamento e bonança serão mantidas pelo tempo que for necessário para reativar o crescimento econômico formarão um marco macroeconômico no qual os agentes se sentirão confiantes para voltar a se endividar, a investir, a consumir, a exportar e a contratar mais trabalhadores. Um êxito total.
Quais são as contradições?
Como já deveria estar evidente, se os programas de afrouxamento quantitativo fossem tão maravilhosos como o prometido, não haveria governo nenhum no mundo (nem mesmo as mais cruéis ditaduras) que deixaria de se aproveitar disso. No entanto, claramente, este não é o caso: os programas de afrouxamento quantitativo são a exceção, e não a norma, da política monetária de um país (anda bem!).
Em tempos normais, o motivo é claro: quando a economia está crescendo beneficiada pelo impulso do crédito bancário, com empresas e famílias se endividando para investir e consumir, jogar mais lenha na fogueira irá apenas contribuir para superaquecer a economia e fazer com que os preços subam mais do que o desejado.
Só que, atualmente, a Europa não está nesse cenário: os bancos não emprestam, famílias e empresas não se endividam, os preços caem, e ninguém gasta. Portanto, sob esta realidade, o afrouxamento quantitativo parece realmente ser um impulso extremamente necessário a uma estagnada economia, e o qual não viria acompanhado de efeitos adversos.
Só que nem tudo são flores: ao passo que o afrouxamento quantitativo não irá provocar, no médio prazo, nada parecido com uma elevada inflação de preços, isso não significa que ele não gere outras consequências prejudiciais.
O primeiro efeito é que as baixas taxas de juros não têm por que estimular um novo ciclo de endividamento que reanime a economia, exceto para as entidades governamentais. Estas seguem plenamente interessadas em manter seus déficits orçamentários, que aumentam a dívida brutal, a qual é impunemente transferida para as gerações futuras. Juros mais baixos sobre a dívida pública sem dúvida facilitam a indisciplina do governo com o dinheiro dos pagadores de impostos.
Para famílias e empresas, no entanto, o raciocínio não se aplica: se elas seguem altamente endividadas, e sua capacidade de gerar riqueza futura é incerta, facilitar-lhes de maneira artificial o endividamento não as levará a aumentar ainda mais seus passivos. Consequentemente, o dinheiro injetado pelo Banco Central no sistema bancário continuará parado nos cofres dos bancos. É possível levar o cavalo ao rio (facilitar o endividamento), mas não é possível obrigá-lo a beber a água do rio (endividar-se).
Agora, é necessário enfatizar que isso não significa que a redução dos juros por meio do afrouxamento quantitativo não possua efeitos adicionais: as taxas de juros não são importantes apenas para determinar o volume de um novo endividamento, mas também para determinar o preço dos ativos e o ritmo em que se amortiza a dívida passada.
Instituir um ambiente de juros extremamente baixos pode não aditivar o crédito, mas seguramente irá diminuir a velocidade com que famílias e empresas reduzem antecipadamente suas dívidas passadas. Por exemplo, uma dívida com taxa de juros fixa passará a ser muito mais cara para ser comprada no mercado secundário, o que significa que o devedor está preso a ela; já uma dívida com taxas de juros variáveis deixará de pagar juros, o que significa que não mais será interessante amortizá-la.
Adicionalmente, os juros excessivamente baixos estimulam um aumento no preço dos ativos financeiros em decorrência do seu valor presente descontado.
[Nota do IMB: a uma taxa de juros de 5%, o valor presente de um investimento que retorne $100 daqui a um ano seria de $ 95,24. Isso significa que $100 daqui a um ano vale subjetivamente o mesmo que $ 95,24 hoje. Agora, se os juros caem para 1%, o valor presente de um investimento que retorna $ 100 daqui a um ano passa a ser de $ 99,01.
O mesmo raciocínio utilizado para um período de tempo maior -- por exemplo, três anos -- faz com que o valor presente descontado seja de $ 86,38 para juros de 5% e aumente para $ 97,06 para juros de 1%.]
Isso explica, em parte, a forte valorização da bolsa de valores dos EUA.
A conclusão é que a redução das taxas de juros em decorrência de um afrouxamento quantitativo consolida um contexto de alto endividamento e de sobrevalorização de ativos: longe de facilitar o reajuste econômico -- que consiste em diminuir o endividamento e direcionar o capital para projetos verdadeiramente mais valiosos --, tal política o dificulta.
O segundo efeito é que, ainda que os juros menores gerados pelo afrouxamento quantitativo de fato estimulassem uma maior concessão de crédito (tal como desejam os defensores dessa política), isso significaria apenas que os bancos estariam assumindo riscos maiores do que aqueles que atualmente creem ser prudente assumir. A ideia, como explicado, é que o afrouxamento quantitativo acabe com a rentabilidade dos ativos seguros (títulos públicos) para que assim haja mais empréstimos para atividades mais rentáveis, porém menos seguras. Mais dívida e mais risco. E, consequentemente, muito maior fragilidade financeira: justamente a receita que conduziu o mundo ao desastre da crise atual. Aliás, o que é mais irônico: justamente por causa dessa política, muitos dos mesmos que hoje defendem o afrouxamento quantitativo exigiram uma maior regulação do sistema financeiro.
O terceiro efeito, e ligando os dois pontos anteriores, é que, se o afrouxamento quantitativo estimula uma maior concessão de crédito a taxas de juros mais baixas, todos aqueles empresários que se financiaram anteriormente a taxas de juros mais altas verão sua dívida atual como uma desvantagem competitiva. Se seus concorrentes conseguiram se financiar a 2% ao passo que você tem de continuar pagando durante anos 6%, é óbvio que você está perdendo. (Justamente porque os programas de afrouxamento quantitativo elevam o valor de mercado das dívidas, quem se financiou a 6% não consegue se refinanciar a 2%, a menos que consiga transferir ao seu credor os prejuízos gerados por essa redução de juros).
Consequentemente, não apenas haverá um estímulo para o financiamento de projetos empreendedoriais menos seguros, como também se concede uma vantagem artificial a projetos mais insensatos em detrimento dos mais sensatos.
Conclusão
Os programas de afrouxamento quantitativo são uma injeção de liquidez que o Banco Central concede ao sistema bancário.
Os claramente beneficiados por esse programa são os próprios bancos (que melhoram seus balancetes), o governo (que agora pode ser mais relaxado com o seu orçamento e se endividar a juros bem menores), os investidores que investiram há mais tempo em ativos financeiros (que ganham valor com a queda dos juros), os exportadores (por causa da depreciação cambial decorrente do afrouxamento quantitativo) e os devedores menos solventes (que agora não terão de quitar suas dívidas na mesma velocidade de antes, e cuja dívida poderá ser vendida, a um preço bem maior, no mercado secundário).
Por outro lado, e como consequência, os prejudicados são os poupadores, os pagadores de impostos, os importadores e os devedores mais solventes (que não conseguirão se refinanciar a juros menores).
O afrouxamento quantitativo premia o endividamento e o risco, e pune a poupança e a segurança. O governo que adota esse programa não quer criar uma economia baseada em novas e boas oportunidades de negócio; quer viciá-la em práticas velhas, arriscadas e comprovadamente fracassadas.
Longe de impulsionar um reajuste salutar da economia, baseado em liberdade de mercado e poupança interna, o objetivo é espremer todo o potencial de um sistema falido dando-lhe uma sobrevida artificial.
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