segunda-feira, 25 ago 2014
O
Ministro da Fazenda da Argentina,
Axel Kicillof,
tornou-se famoso pela declaração de que, nos tempos atuais, é possível
gerenciar centralizadamente toda uma economia.
Segundo ele,
as planilhas eletrônicas, como o Microsoft Excel, tornam possível toda este gerenciamento
centralizado.
Mais
importante do que a involuntária comicidade da declaração é a errônea visão
contida nela: a de que os preços dos bens e serviços são determinados pelos
custos de produção, algo que, por si só, permitiria todo o gerenciamento
centralizado da economia. Tal crença revela
uma profunda ignorância a respeito do processo de mercado.
Essa
discussão, no entanto, não é nada nova.
A primeira metade do século XX testemunhou o debate acerca da
viabilidade do cálculo
econômico sob o socialismo.
Aparentemente, os burocratas da Argentina não aprenderam nada deste
antigo debate. A questão não é se temos
ou não poderosas planilhas eletrônicas à nossa disposição; a questão é a
impossibilidade de se criar, de maneira bem-sucedida, um mercado
centralizadamente planejado.
Ainda
no início do século XX, Ludwig von Mises, Max Weber e Boris Brutzkus ofereceram
— cada um à sua maneira e de forma independente — críticas à impossibilidade
do arranjo socialista, arranjo esse entendido como uma sociedade em que não há
propriedade privada dos meios de produção.
Mises
foi simples e direto. Ao contrário de um
arranjo formado por famílias ou pequenas tribos, em que os membros possuem um
conhecimento íntimo sobre as poucas coisas ao seu redor, uma sociedade grande e
complexa só pode funcionar caso os bens e serviços sejam livremente
precificados, o que permitiria o cálculo dos custos, do lucro e dos prejuízos. No entanto, sem a propriedade privada dos
meios de produção, não é possível haver um mercado para estes meios de produção. Sem este mercado, não há formação de preços. Sem preços livremente formados, é impossível
fazer qualquer tipo de cálculo de preço e de custos, e consequentemente a sociedade não tem como ser organizada de
maneira eficiente. Os socialistas,
argumenta Mises, são rápidos em apontar qualquer falha de mercado, mas permanecem
em silêncio quando são instados a mostrar como organizar eficientemente uma
sociedade socialista na qual não há a existência de preços.
Marx,
que não ofereceu nenhuma explicação sobre como o socialismo funcionaria tão
logo o capitalismo desaparecesse, rotulou os socialistas (Saint-Simon e
Fourier) — que de fato chegaram a descrever como seria uma sociedade
socialista — de "utópicos".
Sem
o cálculo econômico para revelar quais atividades acrescentam valor para a
sociedade (que dão lucro) e quais retiram valor (que dão prejuízos), torna-se
uma ilusão supor que a eficiência iria simplesmente surgir do nada. Quaisquer outros argumentos para a
organização da sociedade que não envolvam o cálculo econômico podem até ser
feitos, mas o problema de como a eficiência econômica seria alcançada permanece
sem resposta.
Como
tentativa de resposta a essa crítica de Mises, vários pensadores socialistas
fizeram de tudo: houve aqueles que se limitaram a descrever sociedades socialistas
imaginárias e perfeitas, houve aqueles que se concentraram em fazer críticas
puramente emocionais ao capitalismo, e houve aqueles poucos que realmente
tentaram solucionar o desafio proposto por Mises. Oskar Lange e Wassily Leontief foram dois dos
mais famosos autores que tentaram solucionar o desafio proposto por Mises. Uma das respostas oferecidas é a suposição de
que é possível os controladores da economia usufruírem informações perfeitas (suposição essa ainda presente nos
livros-texto de economia).
Segundo
este argumento, se supusermos que os controladores da economia estão em posse
de absolutamente todas as informações necessárias para gerenciar a economia,
então é possível fazer com que a economia esteja em equilíbrio. Em outras palavras, se o
cálculo econômico era impossível em termos estritamente computacionais por
causa da ausência de preços, então bastava que os planejadores centrais
criassem equações matemáticas que simulassem corretamente as condições vigentes
de mercado, o que possibilitaria determinar oferta, demanda e preços, fazendo
com que todo o processo produtivo magicamente se tornasse racional.
Sendo
assim, o desafio de Mises seria até interessante, mas inadequado. Uma economia gerenciada centralizadamente
seria possível, desde que os controladores da economia possuíssem informações
perfeitas sobre todas as condições de todos os mercados — o que os
possibilitaria jogar esses dados no Excel e levar a economia ao paraíso.
Neste
ponto do debate, foi Hayek quem respondeu à argumentação dos socialistas com
quatro pontos importantes:
(1)
A quantidade de informações necessárias e a impossibilidade de se fazer
cálculos econômicos quando não há propriedade privada dos meios de produção
impossibilitam o projeto socialista, mesmo
se aceitarmos a suposição de que é possível existir informações perfeitas. Como explicou o professor
Jesús Huerta de Soto,
O socialismo é um erro intelectual porque é impossível
o órgão planejador coletar e utilizar corretamente todas as informações de que
necessita para imprimir um conteúdo coordenador às suas ordens. O volume de informações que os seres humanos
manejam e com as quais lidam diariamente é imenso, de modo que é impossível gerir
o que sete bilhões de seres humanos têm na cabeça. [...] Este é o grande
paradoxo do socialismo, e o seu maior problema.
O planejador da economia necessita receber um fluxo ininterrupto e
crescente de informação, de conhecimento e de dados para que seu impacto
coercivo — a organização da sociedade — tenha algum êxito. Mas é obviamente impossível uma mente ou
mesmo várias mentes obterem e processarem todas as informações que estão
dispersas na economia. As interações
diárias entre milhões de indivíduos produzem uma multiplicidade de informações
que são impossíveis de serem apreendidas e processadas por apenas um seleto grupo
de seres humanos.
Mesmo
sabendo que os socialistas e marxistas normalmente param nesse ponto e não
avançam além dele, a observação de Hayek é muito mais profunda, como mostram os
pontos seguintes.
(2)
A suposição de informação perfeita é inválida.
O desafio não é fazer a economia estar
em equilíbrio, mas sim fazer a transição
da economia para o equilíbrio. Assim
como não é possível abrir uma lata de comida ao simplesmente supor a existência
de um abridor de latas, também não é aceitável desconsiderar o desafio de Mises
simplesmente supondo que há informações perfeitas. De onde surgiram todas essas informações
perfeitas? A quem elas foram dadas? A simples suposição da informação perfeita
não simplifica o problema a ser resolvido; ela apenas o adultera e se torna
irrelevante para o debate. É por isso
que os economistas seguidores da Escola Austríaca sempre se mostraram muito mais
preocupados em entender o processo de mercado do que em fantasiar supostas condições de
equilíbrio.
(3)
Hayek também faz uma distinção entre informação e conhecimento. Informação é um conceito quantitativo e, como
tal, pode ser completa (perfeita) ou incompleta (imperfeita). É a isso que os socialistas se referem quando
supõem a existência da 'informação perfeita'.
Já o conhecimento é um conceito qualitativo
e, por isso, não pode ser nem completo nem incompleto. Saber como andar de bicicleta ou como
administrar exitosamente uma empresa não são conhecimentos que podem ser
quantificados e inseridos em uma planilha de Excel.
Essa
distinção é importante porque os empreendedores e seu empreendedorismo é que
são o motor do desenvolvimento e do crescimento econômico. Em outras palavras, o Excel não pode
solucionar os mesmos problemas de mercado que os empreendedores são capazes de
solucionar, pois tal habilidade requer interpretação e conhecimento, e não
somente o conhecimento de dados numéricos.
Mesmo que todas as informações fossem corretamente repassadas ao
Ministro da Fazenda, ele nada poderá fazer caso não saiba como interpretá-las.
(4)
Informação e conhecimento não são independentes do processo de mercado. Sem a propriedade privada não há mercado. Sem
mercado não há a formação de preços. E sem
preços não há informação a ser transmitida.
Hayek, portanto, está utilizando o outro lado do argumento de Mises para
dizer que, ao abolir a propriedade privada, os socialistas estão abolindo a
existência das próprias informações que eles supõem como dadas e conhecidas.
Portanto,
a posição de Mises e a de Hayek são complementares. Mises, ao se concentrar na inexistência de
preços de mercado, deixou claro que essa ausência de preços impossibilitaria
aquilo que ele chamou de "divisão intelectual do trabalho". Os
preços estabelecidos pelo mercado permitem que os empreendedores descubram
novas informações sobre o atual estado do mercado e utilizem esses
conhecimentos recém-adquiridos para aproveitar novas oportunidades de
lucro. É essa busca pelo lucro que os leva a atuar de forma
empreendedora, comprando fatores de produção a preços baixos, utilizando-os
para transformar matéria-prima em bens de consumo, e vendendo o produto final a
preços mais altos. A consequência do socialismo é o bloqueio da divisão
intelectual do trabalho, que é justamente o argumento de Hayek.
Tão
logo percebemos a profundidade dos quatro pontos formulados por Hayek, concluímos
que aceitar o uso da planilha do Excel para gerenciar a economia é como
construir um carro sem um motor (os empreendedores) e sem placas nas estradas
(o mercado) para indicar o caminho correto a ser seguido. É um erro inominável imaginar que preços regulados
podem funcionar como preços de mercado.
Os únicos preços que fornecem informações úteis e proveitosas são
aqueles que surgem das trocas livres e voluntárias feitas no livre mercado, e
não aqueles que o governo impõe ao utilizar uma planilha de Excel. É uma perigosa ilusão acreditar que as mesmas
informações fornecidas pelos preços surgidos livremente no mercado serão também
magicamente fornecidas pelos preços estabelecidos pelo governo.
O
sucesso de uma política econômica ou de uma regulação de mercado não pode ser
avaliado de acordo com desejos e intenções, mas sim de acordo com
resultados. O problema com a abordagem
do Excel não é a intenção dos burocratas e reguladores, mas sim o fato de que tais
ferramentas simplesmente não podem substituir o processo de mercado.
Para
concluir com as palavras do professor de Soto:
Esta
é a demonstração em termos científicos do motivo de o socialismo ser
teoricamente impossível. É impossível o órgão planejador socialista
coletar, apreender e colocar em prática todas as informações de que necessita
para imprimir um conteúdo coordenador aos seus decretos. Esta é uma
análise puramente objetiva e científica. Não é necessário pensar que o
problema do socialismo está no fato de que "aqueles que estão no comando
são maus". Nem mesmo anjos, santos ou seres humanos genuinamente
bondosos, com as melhores intenções e com os melhores conhecimentos, poderiam
organizar uma sociedade de acordo com o esquema coercivo socialista. Ela
seria convertida em um inferno, já que, dada a natureza do ser humano,
é impossível alcançar o objetivo ou o ideal socialista.