O
Banco Central Europeu (BCE) está sob pressão.
A inflação de preços na zona do euro, no acumulado de 12 meses, foi de
apenas
0,5% em junho. Vários comentaristas
econômicos seguem recorrendo ao bicho-papão de sempre —
os supostos perigos da
deflação! — para, com isso, incitar o BCE a adotar medidas mais
expansionistas, algo que irá beneficiar apenas os especuladores e onerar ainda
mais os poupadores.
A
baixa inflação de preços na zona do euro não deveria ser surpresa para
ninguém. A região do euro vem
apresentando, já há um bom tempo, um crescimento de quase zero na expansão do
crédito e na expansão
da oferta monetária. Como
noticiado pela Reuters, em abril, a taxa de crescimento do agregado
monetário M3 acumulada em 12 meses foi de mísero 0,8%. Os empréstimos para o setor privado caíram 1,8% em abril de 2014 em relação
a abril de 2013.
Essa
estagnação do crédito vem ocorrendo há um bom tempo, como ilustram os gráficos a seguir
sobre a expansão do crédito:

No
gráfico C5, a linha pontilhada vermelha mostra a taxa de crescimento dos empréstimos
para as empresas da zona do euro.
No
gráfico C6, a linha azul contínua mostra a taxa de crescimento nos empréstimos
para consumidores; a linha vermelha pontilhada mostra a taxa de crescimento nos
empréstimos para a compra de imóveis; e a linha azul pontilhada mostra a taxa
de crescimento de todos os outros tipos de empréstimos para pessoas físicas.
Como
se observa, o crédito na zona do euro — não obstante as taxas de juros
extremamente baixas — está bem contido e "apertado". Naturalmente, a turma defensora do crédito
fácil e farto, e de uma política monetária expansionista, está em polvorosa. O bilionário David
Tepper, que gerencia um hedge fund,
disse que o BCE está muito atrás da curva.
Martin Wolf, do Financial Times, está exigindo do BCE "mais um tiro
de bazuca". E o famoso jornalista
britânico Ambrose
Evans-Pritchard está dizendo que uma fraternidade entusiasta de uma "política
monetária rígida" está no controle do BCE, o que estaria jogando a economia
europeia no abismo.
Estaria o BCE sendo controlado por algum
linha-dura?
Eu
certamente gostaria muito que sim, mas duvido.
Basta ver as recentes
medidas adotadas pela instituição.
No
início de junho, o BCE tomou uma decisão inédita: estabeleceu uma taxa negativa
para uma de suas três taxas básicas de juros.
Antes
de junho, os bancos da zona do euro podiam obter fundos normais do BCE (a
chamada "taxa de refinanciamento", que é a principal taxa de juros manipulada
pelo BCE) a 0,25%; podiam obter fundos de emergência 0,7%, e podiam depositar
voluntariamente dinheiro extra no BCE a 0%.
Agora, eles podem obter fundos normais a 0,15%, fundos de emergência a
0,40%, e têm de pagar 0,10% sobre qualquer quantia que depositarem
voluntariamente no BCE.
Essa
taxa negativa é inédita na zona do euro.
Qual
será o impacto de tudo isso? Quase nenhum,
creio eu.
Há
quem acredite que a taxa de - 0,1% sobre os depósitos voluntários dos bancos no
BCE representa uma multa para os bancos que ali deixarem dinheiro "estacionado",
e que isso irá estimular os bancos a fazerem outras coisas com esse dinheiro "ocioso". O problema é que essa descrição não é
correta. Ela passa a impressão de que os
bancos podem emprestar esse dinheiro que está no BCE para empresas e
pessoas. Mas os bancos não podem fazer
isso.
Os
depósitos dos bancos no Banco Central formam as reservas bancárias. Elas não podem ser transferidas ou
emprestadas para pessoas e empresas simplesmente porque pessoas e empresas não
possuem uma conta no Banco Central. Tudo
o que os bancos podem fazer é emprestar ou transferir esse dinheiro para outros bancos. Quando o Banco A faz um empréstimo para o
cidadão X, o banco cria dígitos eletrônicos na conta de X. Quando X for gastar esses dígitos, eles irão
parar na conta bancária do cidadão Y, que tem conta no Banco B. Ao final, o Banco B irá exigir do Banco A a
transferência eletrônica destes dígitos (a chamada 'compensação
bancária').
Ou
seja, no agregado, a quantidade de reservas não se alterou. Isso significa que o sistema bancário não
pode se livrar destas reservas. Portanto,
a esta nova taxa negativa, o setor bancário irá pagar aproximadamente €220
milhões para o BCE anualmente, e não há quase nada que eles possam fazer quanto
a isso (não há com o que se preocupar; essa quantia é apenas um trocado).
Como
isso pode ser "economicamente estimulante"?
Não sei.
Quantos
empréstimos arriscados para empresas pequenas e médias os bancos irão fazer
para tentar evitar ao máximo essa "multa" de 0,1% no BCE? Não creio que serão muitos.
A
questão é que os bancos da zona do euro não estão concedendo muitos empréstimos
(como mostra o gráfico) simplesmente porque ainda estão preocupados com a
situação de seus balancetes, que se encontram dizimados após o estouro de
bolhas imobiliárias e por calotes dados por governos, empresas e pessoas. Adicionalmente, os bancos compreensivelmente
querem evitar os riscos inerentes a conceder novos empréstimos para pessoas e
empresas já muito endividadas e com pouca solvência. Para completar, a demanda por novos
empréstimos também não parece estar alta.
Após
um longo período de acentuada expansão do crédito (vide o gráfico acima), algo
que desembocou em uma grande recessão, um período igualmente longo de
crescimento nulo (ou até mesmo de contração moderada) do crédito não apenas não
deveria ser uma surpresa, como também deveria ser visto como algo eminentemente
sensato e totalmente recomendável.
Os
gráficos acima não apenas ilustram como a expansão do crédito — e,
consequentemente, da oferta monetária — arrefeceu desde 2009, como também
mostram o crescimento substancial ocorrido no período anterior à crise. Pensei que, após 2009, a maioria das pessoas
já estivesse ciente de que um período de desalavancagem e de restauração dos
balancetes dos bancos é inevitável após uma bolha.
A
crise financeira não foi um ato divino ou uma manifestação de alguma força da
natureza, e, independentemente do prisma que você adote, a temerária expansão
do crédito desempenhou um papel fundamental na criação dela; expansão essa que
foi generosamente financiada pelo BCE.
Os bancos gregos, espanhóis, italianos, franceses e alemães, todos eles
pareciam zumbis em 2009, e muitos certamente ainda o são. Por que eu deveria dormir melhor ao saber que
o BCE está fazendo de tudo para estimular os bancos a voltar à insensatez do
início da década de 2000?
Adicionalmente,
vale enfatizar que uma taxa de crescimento de zero ou até mesmo negativa do
crédito não significa que ninguém está conseguindo obter um empréstimo;
significa apenas que, no agregado, a quantidade de empréstimos que está sendo quitada
é maior do que a quantidade de empréstimos que está sendo concedida pelos
bancos.
Por
fim, uma baixa expansão da oferta monetária tende a explicitar todos os tipos
de rigidez estrutural existentes na zona do euro, como mercados de trabalho
excessivamente regulados, leis trabalhistas onerosas, gastos governamentais
insustentáveis e endividamento excessivo.
Nenhuma dessas rigidezes está perto de ser solucionada, e a elite
política — totalmente paralisada — sempre considerou o assunto explosivo
demais, de modo que abordá-lo é impopular e representaria um suicídio político.
Não
sou nenhum entusiasta de bancos centrais e creio que a própria instituição de
um banco central — que existe para cartelizar e proteger o sistema bancário, e
para permitir que os bancos financiem despreocupadamente os déficits do governo
— não existiria em capitalismo pleno.
Porém, também sou um realista e sei que os bancos centrais não irão
desaparecer tão cedo. Portanto, já que é
para existir um banco central, então que ele seja controlado por tipos ríspidos
e durões, como o velho Helmut Schlesinger do antigo
Bundesbank. Em um banqueiro central,
a inatividade é uma virtude.
Em
minha opinião, dentre os principais bancos centrais do mundo, o BCE tem sido o
menos irresponsável. Nos últimos anos, o
euro tem se mantido relativamente estável — em alguns momentos, chegou a se
apreciar ligeiramente — em relação às moedas de seus parceiros
comerciais. Para os cidadãos e empresas
da zona do euro, isso se traduziu em um aumento moderado de seu poder de compra
nos mercados internacionais. Os preços
dos produtos importados diminuíram e isso ajudou a manter os preços domésticos
bastante estáveis. Pessoas que vivem de
renda fixa (aposentados, pensionistas, assalariados e pessoas que vivem de
assistencialismo) mantiveram seu poder de compra, algo excepcional durante uma
fase de recessão econômica.
É
insensato afirmar que tal ambiente — moeda forte e preços estáveis — afeta o
desempenho econômico, e que o desejável seria ter mais carestia e um menor
poder de compra para a moeda.
Política: Alemanha x França
Todo
o projeto do euro depende do eixo Alemanha-França e pode ser analisado como uma
contínua guerra fria entre as elites políticas desses dois países, cada qual
com visões muito diferentes — quase antagônicas — sobre política econômica.
Para
a elite francesa, o euro sempre foi visto como um veículo criado especialmente
para quebrar a hegemonia
monetária que a Alemanha usufruía na Europa por meio do robusto marco
alemão — a moeda menos
inflacionada da segunda metade do século XX — e do todo-poderoso e
inflexível Bundesbank. Tão logo o marco
alemão fosse abolido e substituído pelo euro, e o Bundesbank estivesse
neutralizado e sob o controle de franceses (agora sob o nome de Banco Central
Europeu), o puritanismo monetário alemão supostamente se tornaria obsoleto (ou passé, como diriam os franceses), e uma
burocracia educada na Sorbonne e na École Polytechnique assumiria o controle,
comandaria o show europeu e injetaria um pouco de vigor tipicamente gaulês na
coisa toda.
Até
uns dois anos atrás, tinha-se a certeza de que a França iria liderar o bloco
anti-austeridade dos países do Mediterrâneo contra a Alemanha. Hoje, isso parece uma memória distante.
A
elite política francesa está completamente desacreditada e se encontra em um
estado de total desmazelo.
Muitos
acreditaram que François Hollande com sua política socialista de tributar
pesadamente os ricos seria a face do novo populismo europeu. Mas isso não ocorreu. Ao
contrário, aliás. Com índices de aprovação
abaixo de 20% (atualmente em 16%), Hollande é um zumbi (ou um "pato manco"). Ele é tão miseravelmente impopular, que Dominique
Strauss-Kahn, acusado de abuso sexual, já é mais popular do que ele. Já Nicolas Sarkozy — que sofreu a inédita
humilhação pública de ser interrogado pela polícia por 15 horas — está sendo
acusado de corrupção, de tráfico de influência e de suborno de dois
magistrados.
Todo
esse desmazelo resultou em uma votação recorde no nacionalista e totalmente
anti-euro Frente Nacional, que conseguiu 25% dos votos
para o Parlamento Europeu.
Enquanto
isso, Angela Merkel reina soberana na Europa.
Na Alemanha, os opositores que estão à sua direita e que são anti-euro
— a Alternative
für Deutschland — conseguiram apenas 7% dos votos para o Parlamento
Europeu em maio. Seus índices de
popularidade continuam respeitáveis, a economia alemã não tem rivais na Europa,
e não se vê líderes políticos que possam fazer sombra à chanceler.
Merkel
pode até não querer exagerar muito em suas exigências pró-austeridade, mas a
exigência de reformas estruturais e de austeridade 'moderada' na zona do euro
irá continuar. Uma Alemanha política e
economicamente forte alivia um pouco a pressão sobre o BCE.
E
o BCE, que hoje está sob o comando do italiano Mario Draghi, não é muito
popular entre a elite política alemã. Os
alemães são céticos quanto às políticas de afrouxamento quantitativo e muitos
compartilham das restrições
feitas pelo Tribunal Constitucional da Alemanha de que tais políticas nada
mais são do que financiamento do governo por meio da criação de dinheiro (claro
que são!). Tampouco a frase de Draghi de
que fará "tudo o que for necessário" para salvar o euro — o que difundiu a
crise da dívida soberana — é popular junto ao governo alemão.
Por
qualquer que seja o ângulo, o fato é que a Alemanha é hoje o porto-seguro da
estabilidade na Europa: baixo desemprego, nenhum déficit significativo,
crescimento econômico razoavelmente sólido, produtividade crescente e uma
estabilidade política que chega a ser tediosa e monótona. Seu poderio econômico não tem rivais e não há
líderes políticos que possam fazer sombra a Merkel. Falta agora recuperar o controle do BCE.
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Leia
também:
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europeia
A imposição do euro e o
golpe de estado na Alemanha
Por que a Alemanha abriu
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Quando é do interesse de
ideólogos, a Alemanha vira keynesiana
Vamos culpar os alemães!