segunda-feira, 30 set 2013
Este
artigo é uma continuação deste
outro
4.
O Cardeal Gaetano, Tommaso de Vio
A
Escolástica tardia – o período dos pós-escolásticos - foi um produto do século
XVI, o século que deu início à Reforma Protestante e à Contra Reforma Católica.
Se o século XIII foi bem descrito como a idade de Ouro da filosofia
escolástica, o século XVI foi a sua Era de Prata, a era de um renascimento
brilhante do pensamento escolástico, antes de seu fim. Nos séculos XIV e XV
surgiu o nominalismo e o enfraquecimento da ideia de uma lei racional,
incluindo uma lei natural ética, descobertos pela razão do homem. Mas o século
XVI assistiu a um tomismo renascente, liderado por um dos maiores homens da
Igreja de sua época, Tommaso de Vio (1469 -1534), o Cardeal Gaetano (ou
Caetano, em português).
Ele
não foi apenas o filósofo tomista e teólogo eminente de sua época, pois também
era um dominicano italiano que se tornou Geral da Ordem em 1508. Como cardeal
da Igreja, foi o defensor favorito do Papa em debates com o fundador do
protestantismo, Martinho Lutero. Em seu comentário sobre a Summa de
São Tomás de Aquino, Caetano, é claro, endossou a visão escolástica de que o
preço justo é o preço comum de mercado, refletindo a estimativa dos compradores
e considerou que esse preço vai flutuar em decorrência de mudanças nas
condições de oferta e demanda. Na tentativa de expurgar da economia escolástica
qualquer vestígio da teoria da "estação da vida" de Langenstein, Caetano foi
mais longe ao criticar Aquino por este ter denunciado a acumulação de riqueza
além de certo nível como pecado de avareza. Pelo contrário, declarou Caetano, é
legítimo que pessoas altamente capazes subam na escada social de uma forma que
corresponda ao seu trabalho, sua inteligência, sua capacidade e suas
realizações.
Em
seu tratado abrangente sobre câmbio, "De Cambiis", de 1499, Caetano
fez uma defesa completa, firme, contundente e incondicional do mercado de
divisas. Uma vez que o papel do comerciante é legítimo, então assim também deve
ser o do banqueiro de câmbio, que simplesmente é quem se engaja numa certa
espécie de transação mercantil. Além disso, o comércio moderno não poderia
funcionar sem o mercado de câmbio e as cidades não poderiam existir sem
comércio. Por isso, inferiu, é necessário e justo que o mercado de câmbio
exista. Como em outros mercados, o preço de mercado habitual é o preço justo.
No
curso de sua defesa do mercado de câmbio, Caetano começou a avançar o estado da
arte na teoria monetária: mostrou incisivamente que a moeda é uma mercadoria,
particularmente quando os agentes se deslocam de uma cidade para outra, e,
portanto, sujeita às leis de oferta e demanda que regem os preços das commodities.
Neste ponto, Caetano fez um grande avanço na teoria monetária, em particular, e
na própria teoria econômica em geral, ao ressaltar que o valor do dinheiro não
depende apenas da demanda existente e das condições de oferta, mas também da
expectativa atual do estado futuro do mercado. Expectativas de guerras e fome e
de futuras mudanças na oferta de dinheiro – mostrou - afetam o seu valor
atual. Assim, o Cardeal Caetano, um príncipe da Igreja do século XVI, pode
ser considerado o fundador da teoria das expectativas na economia. Antecipou
Menger e Robert Lucas (da Escola de Expectativas Racionais) em 450 e 550 anos,
respectivamente.
Adicionalmente,
Caetano distinguia dois tipos de "valor da moeda": o seu poder de
compra em termos de bens, quando o ouro ou prata são "equiparados" com
mercadorias compradas e vendidas, e o valor de uma moeda em termos de outra
moeda no mercado de câmbio. Segundo ele, cada tipo de moeda tenderia a se
deslocar para a região onde o seu valor é mais alto, e afastar-se da região
onde o seu valor é mais baixo.
Quanto
à polêmica questão da usura, embora Caetano não tenha sido tão radical como seu
contemporâneo Summenhart em praticamente erradicar a proibição da usura, ele se
juntou a ele na defesa da doutrina da intenção implícita, e foi ainda mais
radical em uma área onde Summenhart tinha recuado: lucrum cessans (lucros
cessantes). A "intenção implícita" significa que se alguém realmente acredita
que seu contrato não é um empréstimo, então não é um usurário, embora possa ser
um empréstimo na prática. Isto, obviamente, abriu o caminho para a eliminação
prática da proibição da usura. Além disso, Caetano também se juntou a seus
colegas liberais ao aprovar o contrato de investimento garantido. Mas seu
grande avanço no campo da usura foi sua reivindicação de lucrum cessans.
Empunhando a poderosa autoridade de ser o maior tomista desde o próprio "Boi
Mudo" (que era como os colegas chamavam Tomás de Aquino, devido a ser
corpulento e a manter-se quase sempre calado), Caetano ofereceu uma crítica
minuciosa em que rejeita seu mestre. Ele, então, justifica, na verdade, não
apenas os lucros cessantes, mas quaisquer empréstimos.
Dessa
forma, um credor pode cobrar juros sobre qualquer empréstimo como forma de
pagamento de lucros perdidos em outros investimentos, desde que o empréstimo
seja para um homem de negócios. Essa divisão entre empréstimos para empresários
e para consumidores foi feita pela primeira vez como um meio de justificar
todos os empréstimos comerciais. A lógica era que o dinheiro retinha seu valor
mais alto nas mãos dos homens de negócios em relação aos tomadores de
empréstimos para consumo. Assim, pela primeira vez na era cristã, o Cardeal
Caetano justificou o ato de emprestar dinheiro como um negócio, desde que os
empréstimos fossem feitos a empresas. Antes dele, todos os escritores, mesmo os
mais liberais, como Conrad Summenhart, justificavam a cobrança de juros apenas
quando fundada em lucros cessantes e somente para empréstimos de caridade ad
hoc. Agora, o grande Caetano estava justificando o negócio em si de
emprestar dinheiro a juros.
Com
Caetano, o caminho para o movimento dos escolásticos tardios estava aberto.
Restava, agora, calçá-lo.
5.
As ideias do grande Juan de Mariana: "austríaco", "politicamente incorreto" e
"polêmico"
E
quem mais contribuiu para essa tarefa, embora não fosse o único a fazê-lo, foi
Juan de Mariana, nascido em 1536 na pequena cidade de Talavera, na diocese de
Toledo. De acordo com John Laures, um padre jesuíta que publicou em 1928 o
interessante livro The Political Economy of Juan de Mariana (Fordham
University Press, New York),
Tudo
o que sabemos sobre suas origens é que ele nasceu no ano de 1536, como o filho
de pais pobres e simples. Mesmo este fato é apenas relativamente certo. Na
idade de dezessete anos Mariana era um estudante na famosa Universidade de
Alcalá, e em 1º de Janeiro de 1554 ele foi recebido na Sociedade de
Jesus, [recentemente fundada por São Francisco Xavier, um ex-soldado
espanhol que fora ferido em uma das pernas em combate e que se convertera ao
Cristianismo]. Ele completou o noviciado em Simancas, em parte sob a direção
de Francisco Borgia, o Duque de Gandia aposentado, que um dia seria o Geral da
Ordem dos Jesuítas.
Prossegue
Laures relatando que no início de 1561 o jovem Juan foi chamado para o
recém-construído Colégio Romano, para ensinar Filosofia e Teologia. Um de seus
alunos foi Robert Belarmino, destinado a ser um grande polemista e,
posteriormente, um cardeal. Depois de quatro anos de ensino, o jovem professor
foi enviado à Sicília para ensinar Teologia e introduzir um novo plano de
estudos na faculdade lá estabelecida por sua Ordem. Enquanto isso, ganhou
reputação como teólogo e em 1569 foi chamado para lecionar na Sorbonne, em
Paris, na época a mais famosa universidade do mundo. No entanto, sua precária
saúde obrigou-o a deixar Paris quatro anos depois e voltar ao seu país natal,
onde viveu durante o resto de sua longa vida, em Toledo.
Mesmo
tendo se retirado do mundo, Mariana exerceu forte influência sobre a história
contemporânea de Espanha e, até certo ponto, mundial. Sua reputação como
teólogo e seu vasto conhecimento em quase todos os campos de aprendizagem
deram-lhe um prestígio verdadeiramente extraordinário. Era frequentemente
procurado por comerciantes e por autoridades temporais e eclesiásticas em busca
de conselhos. Questões importantes esperavam por sua aprovação e eram
realizadas sob a sua direção e seus conselhos. Seu lazer deu-lhe tempo para
aprofundar e ampliar seus conhecimentos e desenvolver uma atividade literária
bastante frutífera.
A
segunda obra mais conhecida de Mariana, De Rege et Regis Institutione,
surgiu em 1599 em Toledo, tendo sido elaborada por sugestão do tutor dos
príncipes reais e publicada sob o patrocínio de Filipe II. É neste livro que
Mariana discute a questão de saber se é lícito depor e até mesmo matar um
monarca que se comporte como um tirano, uma pergunta à qual ele responde
afirmativamente, como se verá mais pormenorizadamente adiante.
No
ano de 1610 estourou uma tempestade de indignação contra o livro e contra a
Companhia de Jesus em
geral. Henrique IV foi assassinado por François Ravaillac
(1577-1610) e os inimigos da Sociedade acusaram os jesuítas de serem os
supostos autores do crime. Ravaillac foi questionado sobre se ele havia sido
induzido a cometer o regicídio pelo livro de Mariana sobre a realeza, mas ele
negou até mesmo qualquer familiaridade com ele. No entanto, muitos ainda
sustentavam que a doutrina jesuíta teria sido responsável pelo atentado e De
Rege foi queimado em público por um carrasco. Desde então, as ideias
de Mariana sobre tiranicídio têm sido imputadas a toda a Companhia de Jesus,
apesar de nenhum outro jesuíta, seja em seu tempo ou mais tarde, ter aderido a
essa doutrina perigosa. O Geral da Ordem, Cláudio Aquaviva, enfaticamente
protestou contra o livro, proibindo todos os seus subordinados, de todos os
tempos, a ensinar aquela doutrina.
As
autoridades francesas pressionaram o rei da Espanha para tirar o livro de
circulação, mas não obtiveram êxito e a obra continuou muito popular. Hoje se
pode dizer que, embora o autor de De Rege estivesse muito
equivocado em alguns aspectos, mesmo para os hábitos culturais da época, sua
obra, dentre todos os tratados sobre a realeza, é uma das publicações mais
marcantes do século XVI.
Ainda
segundo o Padre Laures, De Rege trata não só da Filosofia
Política e da arte de governo, mas apresenta muitas ideias econômicas. Outro
tratado econômico de Mariana foi De Ponderibus et Mensuris,
publicado pela primeira vez em 1599 e que em edições posteriores apareceu
juntamente com De Rege em um único volume. É uma discussão
histórica de várias moedas: grega, romana, hebraica e espanhola. Um tratado
estritamente econômico, De monetae Mutatione, apareceu em Colônia
em 1609, como o quarto número do Tractatus VII. Ele foi escrito
como uma crítica à adulteração da cunhagem de cobre espanhol por Felipe III.
Naquele panfleto Mariana critica severamente o rei e os seus conselheiros, por
roubarem as pessoas e perturbarem o equilíbrio do comércio. Ele também
desenvolve com rigor naquela obra os princípios científicos da moeda e comprova
suas afirmações acerca da história espanhola.
Assim
que este pequeno livro apareceu, denunciaram Mariana ao rei pelo crime de lesa-majestade
e também imputaram a ele erros em questões de fé. Imediatamente após o
aparecimento do Tractatus VII, o rei ordenou aos seus oficiais e
embaixadores que comprassem todos os exemplares do livro que pudessem e seu
pedido foi prontamente atendido. Pouquíssimos exemplares escaparam de suas
mãos, e em tudo o que puderam achar encontraram cortes nas páginas 189-221, ou
seja, o tratado De Monetae Mutatione.
Após
a morte de Mariana o Tractatus VII foi, aliás, expurgado pela
Inquisição espanhola. Muitas frases foram excluídas e colunas inteiras e
páginas cobertas com tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas no Index
Librorum Prohibitorum et Expurgandorum espanhol, e a
maioria dos exemplares sobreviventes foram expurgados por decretos de 1632 e
1640. Como resultado, poucos exemplares completos do Tractatus VII sobreviveram.
Mariana,
como historiador, afirmou que a sociedade primitiva foi formada por
consentimento mútuo. Alguns o criticaram, afirmando que todos os grandes
impérios resultaram de conquistas e violência. Ele não nega o fato de que
alguns estados passaram a existir desta forma, porém afirma que a maioria
surgiu por mútuo consentimento e que estenderam suas fronteiras por guerras que
considerava justas. Acreditava firmemente que os impérios baseados em violência
e injustiça nunca podem tornar-se legítimos, mesmo através de legislações
posteriores. Esta é a síntese da teoria da origem e do fim do estado de
Mariana, que se mostra, por assim dizer, contraditória.
Tal
como seu colega jesuíta Francisco Suarez, ele justifica a necessidade de
existência do estado pela impossibilidade do indivíduo e da família de suprir
todas as necessidades da vida. Seus argumentos são: (1) a sociedade política é
necessária porque nenhuma família é autossuficiente; (2) se existiam divisões
entre as várias famílias, não poderia haver paz e, portanto, elas deveriam ser
unidas em uma sociedade. E desde que o homem precisa de uma sociedade política,
ele também precisa de um poder político, pois uma sociedade sem tal poder não
poderia realizar o seu fim.
Para
Mariana, a sabedoria divina permite que o homem, apesar de fraco por natureza e
exposto aos seus próprios recursos, possa tornar-se forte se estiver unido com
os demais em uma sociedade. A partir disso é que Mariana considera a sociedade
política necessária para a natureza humana. Tão logo o homem formou um corpo
político, Deus concedeu-lhe o que era necessário para a vida em sociedade, ou
seja, o poder político. Este poder, então, não é uma criação do homem ou algo
que existia desde o princípio, mas algo acrescentado por Deus à natureza humana
imperfeita e, logo, era necessário, a partir do momento em que os homens
fizeram as suas mentes funcionarem para formar uma sociedade política.
Mariana
foi um ardoroso oponente da crescente onda de absolutismo na Europa e da
doutrina do rei James I da Inglaterra, em que os reis governam de maneira
absoluta por direito divino. Ele converteu a doutrina escolástica da tirania de
um conceito abstrato em uma arma para ferir monarcas reais do passado,
denunciando como tiranos antigos governantes tais como Ciro, o Grande,
Alexandre o Grande e Júlio César, que adquiriram seu poder pela injustiça e
roubo. Os escolásticos anteriores, incluindo Suarez, acreditavam que as pessoas
pudessem ratificar tal usurpação injusta por seu consentimento após o fato, e,
assim, tornar o seu próprio domínio legítimo. Mas Mariana não aceitava esse
consentimento das pessoas. Era um defensor das liberdades individuais. Em
contraste com outros escolásticos, que colocaram a "propriedade" do
poder no rei, ele ressaltou que as pessoas têm o direito de recuperar seu poder
político sempre que o rei abusar dele.
Na
verdade, Mariana acreditava que, na transferência de seu poder político do
estado de natureza original para um rei, o povo necessariamente deveria
reservar direitos importantes para si: além do direito de reclamar a soberania,
também poderes vitais como a tributação, o direito de veto a leis, bem como o
direito de determinar a sucessão se o rei não tiver herdeiro. Portanto,
Mariana, ao invés de Suarez, é que deve ser considerado um antecessor da teoria
do consentimento popular e da superioridade do povo frente ao governo de John
Locke. E também antecipou Locke, ao considerar que os homens deixam o estado de
natureza para formar governos, a fim de preservar os seus direitos de
propriedade privada. Mariana também foi muito além de Suarez ao postular um
estado de natureza — a sociedade —, anterior à instituição do governo, tese
abraçada por muitos liberais do século XX.
Mas
a característica mais interessante do "extremismo" da teoria política
de Mariana era a sua inovação criativa na teoria escolástica do tiranicídio.
Que um tirano podia ser justamente morto pelas pessoas havia sido doutrina
padrão, mas Mariana a ampliou muito, em duas maneiras significativas. Primeiro,
ele expandiu a definição de tirania: um tirano era qualquer governante que
violasse as leis da religião, que impusesse impostos sem o consentimento do
povo, ou que impedisse uma reunião de um parlamento democrático. Todos os
outros escolásticos, em contrapartida, tinham considerado apenas a imposição
injusta de impostos como regra de tirania. Adicionalmente, para Mariana
qualquer cidadão podia justamente assassinar um tirano e podia fazê-lo por
quaisquer meios necessários. Para ele, esse assassinato não exigiria nenhum
tipo de decisão coletiva da parte de todo o povo. Porém, para ter certeza de
sua decisão de assassinar algum tirano, os indivíduos não deveriam se envolver
em tal propósito de ânimo leve, sem um prévio exame de consciência: primeiro,
deveriam tentar reunir as pessoas para tomar essa decisão crucial, mas, se isso
fosse impossível, ele deveria pelo menos consultar alguns "homens eruditos
e graves", a menos que o clamor do povo contra o tirano fosse tão cruamente
manifesto que a consulta se tornasse desnecessária.
Ele
foi mais longe — antecipando Locke e a Declaração da Independência — na
justificação do direito de rebelião, afirmando que não nos precisamos preocupar
com a perturbação da ordem pública causada pelo tiranicídio, pois esta é uma
ação sempre perigosa e, portanto, muito poucos estão prontos para arriscar suas
vidas dessa maneira. Pelo contrário — prosseguiu —, a maioria dos tiranos não
morreu mortes violentas e os tiranicídios foram quase sempre saudados pelas
populações como atos de heroísmo.
Um
tirano — escreveu ele — necessariamente teme que aqueles a que aterroriza e
mantém como escravos venham tentar derrubá-lo e, por isso, ele proíbe os
cidadãos de se reunirem em assembleias e discutirem, tirando deles, por métodos
de polícia secreta, a oportunidade de falar e de se queixar livremente.
Este
"homem erudito e grave", Juan de Mariana, não deixou nenhuma dúvida a
respeito de sua opinião sobre o mais recente e famoso tiranicídio: o do rei
francês Henrique III. Em 1588, Henrique III tinha sido preparado para nomear
como seu sucessor Henrique de Navarra (que assumiria o trono como Henrique IV),
um calvinista que estaria governando uma nação fortemente católica. Diante de uma
rebelião de nobres católicos, liderados pelo duque de Guise, apoiado pelos
cidadãos católicos devotos de Paris, Henrique III chamou o duque e seu irmão, o
cardeal, para um pacto de paz em seu acampamento e assassinou os dois. No ano
seguinte, a ponto de conquistar a cidade de Paris, Henrique III foi
assassinado, por sua vez, por um jovem frade dominicano e membro da Liga
Católica, Jacques Clement. Para Mariana, desta forma "o sangue foi expiado com
sangue e o duque de Guise foi vingado com sangue real". E o regicídio foi
saudado pelo Papa Sisto V e pelos padres de Paris.
As
autoridades francesas estavam compreensivelmente nervosas com as teorias de
Mariana e seu livro De Rege. Finalmente, em 1610, Henrique IV
(ex-Henrique de Navarra, que havia se convertido do calvinismo à fé católica, a
fim de tornar-se rei da França), foi assassinado pelo católico François
Ravaillac, que desprezava o egocentrismo religioso e o absolutismo estatal
imposto pelo rei. Nesse ponto, a França entrou em erupção, em uma onda de indignação
contra Mariana e o Parlamento de Paris — como escrevemos linhas atrás — fez
um carrasco queimar De Rege publicamente.
Antes
de ser executado, Ravaillac foi questionado quanto a se a leitura de Mariana o
levara a assassinar o rei, mas ele negou, afirmando que jamais havia ouvido
falar dele. A respeito do assassinato de
Henrique IV e da execução de
Ravaillac, assim se expressa a Wikipedia:
Em 14 de
maio de 1610, Ravaillac rouba uma faca de um albergue. Esconde-se
na Rua de la Ferronnerie,
em Paris (no
atual Quartier des Halles ; as armas de
Henrique IV, esculpidas no chão, indicam hoje o local exato do regicídio).
Aí espera pela passagem da carruagem real, já que o rei havia decidido
dirigir-se ao Arsenal para visitar seu ministro Sully que estava enfermo.
Às quatro horas
da tarde, o rei chega. De repente, o cortejo fica bloqueado devido a um
congestionamento: Ravaillac aproveita a chance e atira-se sobre o rei. Dá-lhe
dois golpes de faca : o primeiro desliza entre duas costelas, o outro
atinge a carótida direita.
Ravaillac
refugia-se em seguida em um porão na Rua des Lombards, bem próxima do local do
atentado, mas é rapidamente encontrado e subjugado. É levado ao Hôtel de Retz para evitar
um linchamento e
conduzido à Conciergerie.
Tortura e
execução: Antes do interrogatório, Ravaillac é preso à roda. A roda é girada e
Ravaillac agredido. Suas pernas são esmagadas para fazê-lo falar e são feitos
cortes em seu torso, braços e costas. Uma mistura de chumbo derretido, óleo,
vinagre e sal foi derramada sobre seu corpo para fechar as feridas.
Colocaram-lhe a seguir um culote úmido e o aproximaram do
fogo. O culote encolhe, para fazer com que os ossos das pernas, já quebrados,
movam-se; toda sua pele é retirada e ele é queimado vivo. Na verdade, Ravaillac
ainda permaneceu vivo e nunca confessou seu crime. Foi, a seguir, esquartejado por
quatro cavalos.
Seus parentes
foram condenados ao exílio e um édito foi
promulgado proibindo a qualquer pessoa do reino de se chamar Ravaillac.
Este assassinato
desencadeou uma enorme polêmica. Por um lado, levantou-se a suspeita de que
os jesuítas teriam
incitado Ravaillac ao regicídio. Por outro lado, este ato teria sido inspirado
por uma conspiração de que teriam participado Maria de Médicis (esposa do rei),
Henriqueta d'Entrages (Marquesa de Verneuil) e o Duque d'Epernon; teriam agido
em nome da Espanha.
Enquanto
o rei da Espanha se recusou a atender aos apelos franceses para suprimir o
trabalho "subversivo" de Mariana, o Geral da Ordem dos Jesuítas emitiu um
decreto proibindo os membros da Cia. de Jesus de ensinar que é lícito matar
tiranos. Este estratagema, no entanto, não impediu a eclosão na França de uma
campanha bem sucedida contra a Ordem Jesuíta, bem como a sua perda de
influência política e teológica.
Juan
de Mariana foi um pensador fascinante sob todos os aspectos – sua Teologia,
Filosofia Política e Economia Política têm bastante claras as marcas
registradas de seu temperamento, um jesuíta ascético e que amava a sua Espanha,
um homem absolutamente sem medo e que não mostrava qualquer constrangimento em
nadar contra a corrente. Se vivesse nos nossos dias, certamente seria taxado de
"politicamente incorreto" e de "polêmico". Mas foi, antes de qualquer outro
adjetivo, um homem corajoso. Vale a pena conhecermos um pouco mais a seu
respeito e de seu pensamento.
Embora
enfatizasse a importância da agricultura, ele estava ciente de que ela não é o
único fator importante para o bem-estar nacional. O comércio e as trocas
voluntárias também são absolutamente necessários para a prosperidade de um
país. É verdade que é um pouco crítico quando o comércio é voltado
excessivamente para a mera questão do lucro, o que mostra que ele é um teólogo e
moralista. O objetivo do comércio, para Mariana, é efetuar um equilíbrio entre
as necessidades e os produtos excedentes dos países, de modo que cada um terá o
que necessitar. A função importante do comércio, então, é fornecer abundância
para todos os países.
Deve,
portanto, ser incentivado em todos os sentidos e nada deve interferir nele.
Isto é tanto mais verdadeiro porque o comércio é um processo mais delicado e é
o mais afetado pela menor perturbação. É - como observou - como o leite, que é
estragado pela menor brisa.
Altas
tarifas são, acima de tudo, prejudiciais ao comércio exterior, pois seu fardo é
deslocado para o comprador, com um consequente aumento nos preços. Logo, as
tarifas sobre as necessidades da vida devem ser moderadas, de modo a incentivar
e facilitar as importações do exterior. Mariana se opõe, assim, às altas
receitas de tarifas, pelo menos na medida em que estão em causa necessidades
importantes. Os comerciantes devem aproveitar a proteção especial da lei,
porque é necessária para o bem-estar do estado.
A
adulteração da moeda é outro grande inconveniente, tanto para o comércio
interno quanto para o externo. Estrangeiros serão desencorajados a trazer seus
produtos para a Espanha, se não receberem nada em troca, a não ser moeda fraca.
Rebaixar o teor de metal na cunhagem resultará em preços mais elevados. Se o
rei tentar fixar um preço menor ninguém irá vender e surgirá uma perturbação
geral do comércio.
Assim,
Mariana, embora não sendo um defensor ardoroso do livre comércio, foi um precursor,
que percebeu que altas tarifas são uma forma nefanda de enriquecer um país em
detrimento dos estrangeiros. Se nosso autor defendeu um imposto alto sobre bens
de luxo isto foi principalmente pela razão de que eles destroem a boa e velha
simplicidade que deve reger a vida (lembremos que Mariana era um asceta).
Encontramos
ainda outra ideia moderna e também cabível na discussão de nosso autor sobre
comércio. A descoberta da América e do caminho marítimo para as Índias
Orientais tinha trazido um enorme aumento no comércio internacional.
Mercadorias passaram a ser trocadas entre os países mais distantes e parecia
que as distâncias tinham desaparecido. Esta relação comercial crescente aparece
para Mariana como um símbolo de crescente caridade e um meio de unir as
diversas nações do mundo.
É
como um moralista que ele concorda com os outros escolásticos que um
"preço justo" deve servir de base nas transações comerciais. Este
preço foi fixado em tempos medievais pelo governo e foi considerado por ele
errado exigir mais do que o montante legalmente fixado. Mariana vê, no entanto,
que, na prática, nem sempre é possível determinar os preços de forma
satisfatória e que se não estão de acordo com a estimativa popular comum (ou
seja, com o mercado), eles não podem ser impostos. Para ser justo um preço não
deve ser fixado uma vez e para sempre, deve levar em conta várias condições que
mudam com a demanda e a oferta dos artigos em questão. Os preços
devem, portanto, serem revistos de tempos em tempos.
Mariana
comprova sua afirmação a partir da história da Espanha. Toda vez que os reis
espanhóis adulteraram a cunhagem, seguiu-se um aumento geral dos preços, e toda
interferência do governo para solucionar o problema provou ser inútil. Mariana
também afirma que é praticamente impossível fixar preços para tudo. Aqui,
então, vemos que o nosso autor aplica o princípio econômico muito importante de
que os preços regulam-se de acordo com a demanda e oferta de bens e da
quantidade de dinheiro em
circulação. Se a moeda é genuína (metal de bom teor) e
escassa, os preços vão diminuir e se ela for adulterada e abundante os preços
vão necessariamente subir. Esta é uma aplicação da Teoria Quantitativa da
Moeda, que é o princípio fundamental de Irving Fisher para estabilizar a
unidade monetária, bem como, naturalmente, uma premonição do que os austríacos nos
ensinaram sobre a inflação e a deflação.
Como
ressalta Rothbard, Juan de Mariana possuía uma das personalidades mais
fascinantes da história do pensamento político e econômico. Honesto, valente e
destemido, Mariana esteve em polêmicas durante quase toda a sua longa vida, até
mesmo por seus escritos econômicos.
Voltando
sua atenção para a teoria e prática monetária, Mariana, em seu breve
tratado De Monetae Mutatione (Sobre a Alteração da Moeda, de 1609)
denunciou seu soberano, Felipe III, por roubar as pessoas e prejudicar o
comércio através da degradação da cunhagem de cobre. Ele ressaltou que esta
degradação também causou inflação crônica na Espanha, aumentando a quantidade
de dinheiro no país. Felipe tinha dizimado sua dívida pública por rebaixar suas
moedas de cobre em dois terços, triplicando assim a oferta de moeda de cobre.
Mariana notou que o aviltamento do metal e a interferência do governo no
mercado só poderiam causar graves problemas econômicos.
Só
um tolo, segundo ele, tentaria separar esses valores de tal forma que o preço
legal devesse ser diferente do natural. O mau governante – ponderou - ordena
que uma coisa cujo valor é cinco deve ser vendida por dez. Os homens são
guiados nesta matéria pela estimativa comum fundada em considerações sobre a
qualidade das coisas e de sua abundância ou escassez. Seria vão para um
príncipe procurar minar esses princípios de comércio. É melhor deixá-los
intactos, sustentava, ao invés de agredi-los pela força em detrimento do bem
comum.
Mas
nosso personagem meteu-se em real enrascada, em dois sentidos: porque a questão
era grave e porque a referida questão era contra o próprio rei! Mariana
começa De Monetae com a sinceridade que lhe era característica
escrevendo ter ciência de que sua crítica ao rei lhe traria grande
impopularidade, mas completa afirmando que o povo está "gemendo" sob as agruras
resultantes da degradação monetária e que ainda ninguém teve a coragem de
criticar a ação do rei publicamente. Assim, a justiça requer que pelo menos um
homem deve expressar a queixa comum do público. Quando uma combinação de medo e
suborno conspira para silenciar os críticos, deve haver pelo menos um homem no
país que sabe a verdade e tem a coragem de mostrá-la a todos. Mariana então
começa a demonstrar que a degradação monetária é um imposto oculto muito
pesado, uma senhoriagem, sobre a propriedade privada de seus
súditos, e que nenhum rei tem o direito de cobrar impostos sem o consentimento
do povo. Uma vez que o poder político se originou do povo, o rei não tem
direitos sobre a propriedade privada de seus súditos, nem pode apropriar-se de
sua riqueza por puro capricho e vontade. Mariana defende a bula papal Coena
Domini, que havia decretado a excomunhão de qualquer governante que
impusesse novos impostos.
Para
ele, a qualquer rei que pratica aviltamento monetário deve se aplicar a mesma
punição, como no caso de qualquer monopólio legal imposto pelo estado sem o
consentimento do povo. Sob tais monopólios, o próprio estado, ou seu
beneficiário, pode vender um produto para o público a um preço superior ao seu
valor de mercado e isso é certamente uma taxação! Ele relata historicamente a
degradação da moeda e seus efeitos infelizes e ressalta que os governos devem manter
todos os padrões de peso e medida, não só de dinheiro, e que seu ato de
adulterar esses padrões é vergonhoso. Castela, por exemplo, tinha mudado suas
medidas de azeite e vinho, a fim de cobrar um imposto oculto, e isso levou a
uma grande confusão e agitação popular. O livro de Mariana, ao atacar a
degradação do rei, levou o monarca a mandar o já idoso padre, então com 73
anos, para a prisão, pelo grave crime de lesa-majestade. Os juízes condenaram
Mariana por crime contra o rei, mas o Papa recusou-se a puni-lo e Mariana foi
finalmente solto depois de quatro meses, com a condição de que iria cortar as
passagens ofensivas de seu livro e de que seria mais cuidadoso no futuro.
Mas
o rei, bem conhecendo o padre e, portanto, sabendo que este ficaria apenas com
as promessas, ordenou a seus funcionários que comprassem todas as cópias
publicadas de De Monetae Mutatione e as destruíssem. Não só
isso, depois da morte de Mariana, a Inquisição espanhola, como relatamos
anteriormente, expurgou as cópias restantes, excluindo muitas frases e
manchando páginas inteiras de tinta. Todas as cópias não expurgadas foram
colocadas no Índice da Inquisição espanhola, e estas, por sua vez, foram
destruídas durante o século XVII. Como resultado desta campanha selvagem de
censura, a existência do texto latino deste importante livro permaneceu
desconhecida durante 250 anos, e ele só foi redescoberto porque o texto em
espanhol foi incorporado a uma coleção de ensaios clássicos espanhóis do século
XIX. Por isso, poucas cópias completas do livreto sobreviveram, das quais a
única disponível nos Estados Unidos, segundo Rothbard, está na Biblioteca
Pública de Boston.
Mas
Mariana aparentemente não estava com problemas suficientes para acalmar seu
temperamento: depois que ele foi preso pelo rei, as autoridades, ao apreenderem
suas notas e papéis, acharam um manuscrito atacando os poderes que regem a
Companhia de Jesus. Um individualista sem medo de pensar por si mesmo, Mariana
claramente não concordava com o fato de ser a Cia. de Jesus quase que um corpo
militar, tal a disciplina imposta a seus membros. Neste livro, Discurso
de las Enfermedades de fa Compania, criticou a Ordem Jesuíta, sua
administração e sua formação de noviços e julgou que seus superiores na Ordem
eram todos impróprios para a governarem. Acima de tudo, Mariana criticou a
hierarquia de estilo militar, apontando que o Geral gozava de muito poder,
enquanto os provinciais e outros jesuítas detinham quase nenhuma autonomia. Os
jesuítas, afirmou, deveriam ter pelo menos uma voz na seleção de seus
superiores imediatos.
Quando
o Geral da Ordem Jesuíta, Cláudio Aquaviva, descobriu que cópias do trabalho de
Mariana estavam circulando clandestinamente, tanto dentro como fora da ordem,
ordenou a Mariana que pedisse desculpas pelo escândalo. O mal-humorado — porém
repleto de sólidos princípios morais — Mariana, no entanto, recusou-se a
fazê-lo e Aquaviva, talvez movido por prudência ou mesmo por receio de um
escândalo mais grave, preferiu não agravar o problema. Mas assim que Mariana
morreu, a legião de inimigos da Ordem dos Jesuítas publicou o Discurso simultaneamente
em francês, latim e italiano. Como no caso de todas as organizações
burocráticas, os jesuítas, desde então, ficaram mais preocupados com o
escândalo e com não lavar roupa suja em público do que em promover a liberdade
de investigação, a autocrítica, ou corrigir quaisquer defeitos reais que
Mariana pudesse ter descoberto. Mas a Ordem nunca expulsou o seu membro
eminente e este nunca a deixou. Ainda assim, ele foi durante toda a sua vida
considerado como um criador de problemas, mal-humorado e sempre rebelde em não
querer se curvar a ordens ou pressões de seus pares.
O
Padre Antonio Astrain, na sua história da Ordem dos Jesuítas, observa que "acima
de tudo, devemos ter em mente que o personagem dele [Mariana] foi
muito áspero e não mortificado". Pessoalmente, de forma semelhante aos
santos italianos franciscanos São Bernardino de Sena e Santo Antonino de
Florença, do século XV, Mariana foi uma figura ascética e austera. Nunca frequentou
o teatro e afirmou que padres e monges nunca deveriam prejudicar seu caráter
sagrado, ouvindo e vendo atores. Ele também denunciou o esporte popular
espanhol das touradas, o que diminuiu bastante sua popularidade.
Melancolicamente, Mariana costumava enfatizar que a vida era curta, precária e
cheia de aflição. No entanto, apesar de sua austeridade, possuía uma sagacidade
impressionante. Assim, é famosa uma frase sua sobre o casamento: "Alguém
habilmente disse que o primeiro e o último dia do casamento são desejáveis, mas
que o resto é terrível". Outra opinião sua parecia antecipar o que
Mises, no século XX, declarou a respeito dos economistas: "não há
nada tão absurdo que não seja defendido por alguns teólogos".