quinta-feira, 12 set 2013
Em
artigo recente
publicado neste site, manifestei por que tenho motivos para não acreditar no euro,
em contraposição à
defesa do
mesmo por parte do Professor Jesús Huerta de Soto.
Nunca
é demais repetir o que frisei no primeiro parágrafo de meu artigo mencionado:
embora seja unanimidade entre os economistas da Escola Austríaca que o melhor
sistema monetário é aquele baseado na plena liberdade de escolha das moedas, há
divergências quanto ao formato do sistema monetário e cambial que cada um
considera como o mais adequado para assegurar o que é consenso entre eles: a
economia de mercado, o respeito às regras de subsidiariedade, as
liberdades individuais, os direitos de propriedade, a crítica ao nacionalismo
econômico, a austeridade fiscal e monetária dos estados e, o que é mais
importante, aquilo que podemos denominar de "a despolitização do
dinheiro".
Os
defensores do euro argumentam, com razão, que o padrão-ouro, como Mises sempre
afirmou, serve como um freio para separar a determinação do poder aquisitivo da
moeda das ambições e doutrinas dos partidos políticos e dos grupos de pressão,
e que o euro seria uma boa forma para a obtenção dessa separação, que é
desejada por todos os economistas austríacos, sejam eles favoráveis
ou não à moeda europeia única. Neste artigo aprofundarei e estenderei um pouco
mais minhas objeções ao euro, com base nos argumentos marcantemente austríacos
que listarei e comentarei brevemente em seguida, em ordem de importância
aleatória.
1º.
O euro não foi capaz de assegurar a separação entre o dinheiro e a política
No
artigo mencionado, observei, como Philipp Bagus, que,
infelizmente, a adoção do euro deu respaldo a que vários governos independentes
pudessem usar um sistema de bancos centrais para financiar seus gastos,
emitindo títulos públicos que podem ser comprados pelo sistema bancário e
usando esses papéis como colaterais para garantir novos empréstimos junto ao
Banco Central Europeu. Assim, a base
monetária aumenta e os preços tendem a subir, não só no país deficitário, como
em toda a zona do euro. Vemos, então, que os governos encontraram no euro uma
forma de transferirem os gravames sobre seus déficits para outros países da
comunidade, bem como para o resto do mundo, sob a forma de senhoriagem.
Se
um país financia um pequeno déficit de 1%, mas os preços de toda a zona do euro
sobem 10%, é provável que caiam os gastos reais do governo, bem como seu poder
político, mas a inflação de preços depende do financiamento do déficit global
da Comunidade Econômica Europeia. Isto significa que, se outros governos
têm déficits mais elevados, aquele governo mais responsável e austero, que não
produza déficit orçamentário ou que mantenha um déficit menor pode estar
perdendo na redistribuição intereuropeia, o que significa um prêmio ao mau
comportamento e um castigo ao bom.
E
mais: quanto maior o déficit de um governo em relação aos déficits dos outros
estados-membros, mais fácil para este governo transferir os custos de sua
irresponsabilidade para os estrangeiros! É uma dinâmica explosiva e que leva a um
caminho inflacionário. Essa monetização
perniciosa só poderia ser evitada se as instituições em que se baseiam o Euro e
a própria CEE fossem perfeitas, o que evidentemente não vem acontecendo e muito
provavelmente não virá a acontecer. Em
suma, a ideia de que o euro poderia colocar os governos em camisas de força,
impedindo-os de gastarem mais do que arrecadam, não se concretizou na realidade
e me parece difícil — para não dizer impossível — que venha a sê-lo.
2º.
Governos irresponsáveis são a regra e governos responsáveis a exceção
Parece-me
um tanto ingênuo crer que a instituição do euro forçaria todos os governos da
CEE a agirem com a austeridade fiscal e monetária que a Escola Austríaca exige,
por várias razões, das quais a principal é que se trata de governos,
o que significa — além de todos os outros males que os economistas austríacos sempre
combateram —, que agem politicamente. Isso
quer dizer que, enquanto existirem governos — de províncias, países ou
comunidades de países — as influências políticas sempre vão prevalecer. Assim
como não há como esperarmos de um gavião que ele deixe de mergulhar no ar para
atacar um quero-quero, não há também como acreditar que um governo não vá gerar
déficits orçamentários e tentar monetizá-los. Se puder fazer isso à custa de "contribuintes"
de outros países, melhor ainda para eles, porque suas chances de permanecer no
poder não diminuirão.
Todos
os economistas da Escola Austríaca sabem que o estado é um mal — para muitos,
um mal necessário, desde que restrito a certos limites mínimos; para outros,
mais libertários, um mal desnecessário; para Rothbard, um inimigo —
e, sendo assim, a crença de que os governos seriam forçados pelo Euro (e o BCE)
a ter comportamentos de freiras carmelitas descalças parece fugir da realidade.
Governos são governos, com seu
próprio ethos político arbitrário e gastador e ponto final. Onde há governo, há falta de juízo econômico.
3º.
O euro não toca na questão do monopólio do dinheiro
É
unânime entre os austríacos a crítica aos monopólios legais,
àqueles que são instituídos pelo estado mediante leis. Muitos economistas,
desde os pós-escolásticos
(que foram os protoaustríacos) defendem com argumentos sólidos a tese de que o
monopólio legal de emitir moeda dos governos (e, por extensão, dos bancos por
eles manipulados) é tão pernicioso quanto os demais monopólios. Por que cargas d'água com a moeda e o crédito
haveria de ser diferente?
A
melhor solução, então, caminha no sentido oposto ao de uma moeda única estatal
ou supraestatal: a extinção dos bancos centrais e a implantação da competição
na indústria da moeda e do crédito, em moldes semelhantes ao sugerido por Hayek em 1974,
sob um sistema de 100% de reservas. O euro
não somente mantém o monopólio nacional; ele o amplia para nível continental! É como se o locutor de uma partida de futebol
anunciasse durante um jogo: "atenção, sai o nacionalismo monetário e entra o internacionalismo
monetário".
A
meu ver, com efeito, não é correto afirmar que o euro atacou o nacionalismo
monetário, porque na verdade ele o ampliou para além das fronteiras dos países,
com a diferença de que esse novo nacionalismo passou a ser exercido por
governos que externalizaram seus efeitos perversos para os pagadores de
tributos de outras nações.
4º.
O euro não se mostrou uma boa proxy para o regime do padrão
ouro
Outro
argumento muito utilizado pelos defensores do Euro é que ele teria a desejada
propriedade de funcionar como uma boa aproximação para o regime de padrão-ouro
que, como sabemos, impede os governos de "politizarem" a moeda e o crédito. Mas, será que impede mesmo?
Bem,
é óbvio que se trata de um regime superior ao que vige no mundo desde que o
padrão-ouro foi abandonado, mas que também padece de imperfeições. Para não voltarmos muito no tempo, até à época
de Nabucodonosor da Babilônia, vejamos o que Rothbard escreveu em seu magistral
tratado de
História do Pensamento Econômico, An Austrian Perspective on the History of
Economic Thought, edição do Mises Institute em ePub, no capítulo dedicado
ao extraordinário Juan de Mariana (1536-1624):
Voltando sua atenção à teoria e à prática monetária,
Mariana, em seu breve tratado De Monetae Mutatione (Sobre a Alteração do
Dinheiro, 1609), denunciou seu soberano, Filipe III de Espanha,
por roubar o povo e debilitar o comércio por meio da adulteração da cunhagem de
cobre. Ele notou que esta adulteração
também contribuía para a crônica inflação de preços da Espanha ao aumentar a
quantidade de dinheiro no país. Filipe
III havia zerado a dívida pública ao adulterar a composição de suas moedas de
cobre, desta forma triplicando a oferta de dinheiro. [pp. 719-720]
[…]
Mariana também relatou uma história sobre desvalorização e
seus efeitos desastrosos, e demonstrou que um dos pressupostos básicos de um
governo é manter todos os padrões de peso e mensuração — e não somente para o
dinheiro —, e que seu histórico de adulteração destes padrões é dos mais vergonhosos. A Castilha, por exemplo, alterou suas
mensurações para o azeite e o vinho com o intuito de criar um imposto oculto, e
isso gerou uma grande confusão seguida de uma revolta popular. [pp. 725-726]
[...]
Mariana cunhou uma frase que precedeu uma das observações
favoritas que Ludwig von Mises viria a fazer sobre os economistas mais de três
séculos e meio mais tarde: "Não há nenhum absurdo que não venha a ser defendido
por algum teólogo". [pp. 734-735]
Com
essas citações de Rothbard não pretendo "atacar" o padrão-ouro, só quero
reafirmar que estados — leia-se:
seus mandatários — sempre são estados,
mesmo sob o regime do padrão-ouro. Por isso, o argumento de que o uuro
agiria como uma second Best solution, além de não se ter verificado na
prática, já perde muito de seu sentido.
5º.
O euro agride frontalmente o princípio da subsidiariedade
Este
argumento certamente é um dos mais poderosos. Um dos princípios basilares da Escola
Austríaca é o da subsidiariedade, que implica descentralização,
individualização, tanto no âmbito político quanto no da economia. De acordo com
esse princípio, se você tem um problema qualquer com seu vizinho, o melhor a
fazer, antes de qualquer outra providência, é tentar resolvê-lo conversando com
ele e não recorrendo ao síndico do prédio. Se isso não resolver, recorra ao
síndico e, se isso também não der certo, vá à administração de seu bairro e
assim sucessivamente, até chegar ao governo federal.
Isso
permite a qualquer um defender, por exemplo, com um arsenal de argumentos sólidos
(que por uma questão de espaço deixo ao leitor a tarefa de descobrir), a adoção
de moedas diferentes até mesmo entre bairros de uma mesma cidade, pois cada
bairro tem suas características, sua história, seus botequins, escolas,
cinemas, clubes, tipos de pessoas, tradições, costumes etc. Ora, o euro é exatamente o oposto, porque é
centralizador, coloca todo o poder nas mãos de um BCE, sem levar em conta que,
até mesmo dentro de um mesmo país, existem diferenças marcantes de cultura, de
hábitos e de costumes. Um italiano do
sul é muito diferente de um italiano do norte, embora ambos sejam italianos. Um grego é diferente de um francês que, por
sua vez, é diferente de um alemão que, por sua vez, difere de um português.
Assim,
por uma questão de coerência, já que nós, austríacos, somos
unânimes na defesa do princípio da subsidiariedade, não podemos
aceitar o euro como uma instituição boa, o máximo que podemos admitir é
aceitá-la como o menor dos males, a não ser que nosso lema passe a ser do
tipo "subsidiariedade, ma non troppo"...
Nunca
é demais lembrar que o maior defensor de um banco central mundial, para
controlar a moeda e as taxas de juros e de câmbio em todo o planeta, foi Keynes
e que a ideia de um governo mundial tem tinturas flagrantemente socialistas.
Não há nada de austríaco em ideias desse tipo.
6º.
O euro agride a história da moeda como uma ordem espontânea
Também
este é um forte argumento contra o euro ou moedas semelhantes. Todos conhecem a
história da moeda e dos sistemas monetários, de como o mundo evoluiu do sistema
de economia de trocas até o estado atual da moeda eletrônica, passando pela
mercadoria-moeda, pela moeda-commodity, pela moeda-papel, pelo papel-moeda
e pela moeda escritural, tudo isso acontecendo como resultado da ação humana nos
mercados — mas uma ação humana natural, não planejada. Ou, para usarmos a
terminologia de Hayek: a moeda é uma ordem espontânea, tal como a linguagem e
os próprios mercados.
Ninguém
é capaz de dizer como será o sistema monetário daqui a — digamos — vinte ou
trinta anos. Quem poderia imaginar, cerca
de vinte anos atrás, que poderíamos pagar nossas compras na padaria com um
cartão de débito? Ou que um brasileiro
em viagem de turismo a Miami possa comprar um tênis em uma loja e pagá-lo com
seu cartão de crédito? Da mesma forma,
quem pode antever com certeza o papel a ser desempenhado no sistema monetário,
por exemplo, pelo bitcoin, pela deep web ou pelas
impressoras 3-D, ou por qualquer outra invenção nova que vier a surgir?
Se
a instituição da chamada "moeda de curso legal" já foi uma grande agressão a
esse processo espontâneo, o euro não é um ataque menos relevante ao mesmo. De uma hora para outra, de uma forma
"planejada" — ou seja, absolutamente antiaustríaca —,
tiraram de circulação moedas nacionais — cada uma delas valendo de acordo com
a responsabilidade ou irresponsabilidade de seu governo emissor — e
substituíram-na por uma moeda única, emitida por um banco central
internacional, na crença ingênua de que, dali em diante, todos os governos dos
países membros agiriam de maneira igualmente responsável, pelo bem de todos. Suíça e Inglaterra, sabiamente, esquivaram-se
de entrar na embarcação, desconfiadas de que poderia soçobrar.
Definitivamente,
não compreendo — embora respeite suas opiniões — como economistas que
defendem a liberdade individual e o livre mercado podem ser favoráveis a algo
que representa, ao mesmo tempo, centralização de poder, monopólio e
planejamento, como é o caso do euro.
7º.
Taxas de câmbio são preços e devem ser determinadas por compradores e
vendedores
Esse
ponto talvez seja o mais polêmico entre os austríacos, já que muitos deles,
incluindo o grande Mises, eram favoráveis a um regime de padrão-ouro com taxas
de câmbio fixas. Compreendo que o padrão
ouro serviria para tornar menos aguda a disposição dos governos para devorar
orçamentos e para emitir, mas sempre é bom lembrar que quem fixaria a taxa de
câmbio seria esse mesmo agente devorador de recursos, isto é, o governo. Nada
impediria, assim como o exemplo de Filipe III citado acima, que qualquer
governo, movido por interesses políticos, mexesse na taxa de câmbio para obter
dividendos políticos.
A
taxa de câmbio é um preço e, portanto — e como é difícil para mim imaginar
um austríaco que não pense dessa forma! —, deve ser
determinada pelo processo de mercado, por compradores e vendedores. Os argumentos de que isso prejudicaria o
comércio internacional não procedem, porque têm forte apelo macroeconômico,
algo profundamente anti-austríaco.
Observações
finais
Reafirmo,
para finalizar, que o sistema monetário que considero mais compatível com a
cataláctica austríaca, com o processo de mercado, com a ação humana
individual voluntária ao longo do tempo e em condições de incerteza genuína,
passa pela extinção dos bancos centrais (nacionais ou internacionais), pelo fim
do monopólio estatal do estado sobre a moeda, pela permissão aos bancos para
emitirem cada um sua própria moeda, pela obrigatoriedade de manutenção de 100%
de reservas por parte dos bancos e, de preferência, que tal sistema seja
lastreado — aí sim — no ouro, sempre atendendo ao princípio da
subsidiariedade e não centralizando as decisões.