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Direito

Legislação e direito em uma sociedade livre

09/04/2013

Legislação e direito em uma sociedade livre

Libertários e liberais clássicos há muito vêm tentando explicar quais tipos de leis deveriam existir em uma sociedade livre.  O problema é que temos frequentemente negligenciado o estudo sobre qual tipo de sistema jurídico é o mais apropriado para o desenvolvimento de um ordenamento jurídico apropriado.

Historicamente, no direito consuetudinário inglês, no direito romano e na Lex mercatoria, as leis eram formadas majoritariamente por milhares de decisões judiciais descentralizadas.  Nestes sistemas descentralizados, as leis evoluíam à medida que juízes, arbitradores ou outros juristas iam descobrindo princípios jurídicos -- baseando-se em princípios previamente descobertos -- aplicáveis a situações factuais específicas.  A lei escrita, também chamada de lei centralizada, desempenhava um papel relativamente pequeno.  Hoje, no entanto, leis aprovadas pelo legislativo estão se tornando as fontes primárias do direito, e todo o arcabouço jurídico tende a ser considerado como sendo sinônimo de legislação.  Porém, não se pode esperar que sistemas baseados em leis escritas desenvolvam um sistema jurídico compatível com uma sociedade livre.

A certeza, o que inclui a clareza e a estabilidade do arcabouço jurídico, é necessária para que possa haver um planejamento voltado para o futuro.  É comum imaginar que a certeza aumentará se o arcabouço jurídico for escrito e enunciado por uma legislatura, como ocorre, por exemplo, nos códigos civis dos modernos sistemas de direito civil.

Como o falecido justeórico italiano Bruno Leoni demonstrou, há mais certeza em um sistema jurídico descentralizado do que em um sistema centralizado e baseado em leis escritas. Quando o poder legiferante tem o poder de alterar as leis diariamente, é impossível ter alguma certeza sobre quais regras serão aplicáveis amanhã.  Por outro lado, decisões judiciais são muito menos capazes de reduzir a segurança jurídica do que a legislação.

Isto porque o arranjo do direito consuetudinário -- ou juízes descentralizados -- é fundamentalmente diferente de um arranjo formado legisladores em três aspectos.  Primeiro, juízes podem tomar decisões apenas quando instados pelas partes interessadas.  Segundo, a decisão jurídica é menos abrangente do que a legislação porque ela afeta primariamente as partes em litígio, e apenas ocasionalmente afeta terceiros ou outros sem ligação com as partes litigantes. Terceiro, a arbitrariedade de um juiz é limitada pela necessidade de se referir a precedentes similares.  

A segurança jurídica é, portanto, mais alcançável em um sistema descentralizado de decisões judiciais -- como o direito consuetudinário, o direito romano, ou direito consuetudinário -- do que em sistemas centralizados de criação de leis, nos quais a legislação é a fonte primária da imposição do ordenamento jurídico.

Efeitos negativos da incerteza

Legislações tendem a interferir em acordos que os tribunais normalmente teriam impingido por conta própria.  Desse modo, fazem com que as partes contratantes tenham menos certeza de que o contrato será integralmente cumprido.  Assim, indivíduos tendem a confiar cada vez menos nos contratos, o que os leva a desenvolver alternativas mais custosas.  Eles irão estruturar empresas, transacionar e incorrer em processos produtivos de maneira diferente daquela que originalmente fariam.

Outro efeito pernicioso da crescente incerteza criada por um sistema baseado em leis criadas por um legislativo é o aumento da preferência temporal das pessoas.  Quando os indivíduos estão mais voltados para o presente do que para o futuro, diz-se que sua preferência temporal é alta.  Quando eles estão mais voltados para o futuro, sua preferência temporal é baixa.  Indivíduos invariavelmente demonstram uma preferência maior por ter um bem hoje a ter este mesmo bem apenas no futuro, tudo o mais constante. Quando as preferências temporais são baixas, os indivíduos estão mais dispostos a abrir mão de benefícios imediatos, como o consumo, e investir seu tempo e capital em processos produtivos mais longos, mais demorados e mais indiretos, os quais produzem mais e melhores produtos para consumo ou para possibilitar novas produções.  Qualquer aumento artificial na taxa de preferência temporal tende a empobrecer a sociedade, pois estimula o consumismo presente e desestimula a produção e os investimentos de longo prazo.  E é exatamente isso o que um sistema baseado em leis criadas por um legislativo faz.  Tal sistema gera uma crescente incerteza, o que causa um aumento nas taxas de preferência temporal.  Afinal, se o futuro é menos certo, então ele é relativamente menos valioso comparado ao presente.

Além de empobrecer materialmente a sociedade, taxas altas de preferência temporal também levam ao aumento da criminalidade.  À medida que uma pessoa se torna mais imediatista, mais voltada para o presente, gratificações instantâneas (como aquelas decorrentes de medidas criminosas) se tornam relativamente mais atrativas, e a punição futura -- e incerta -- se torna um fator menos impeditivo.

Planejamento central e cálculo econômico

Ludwig von Mises demonstrou que, sem um sistema descentralizado baseado na propriedade privada, é impossível haver preços de livre mercado, os quais são essenciais para o cálculo econômico.  Como Leoni explicou, a crítica de Mises ao socialismo também se aplica a um poder legiferante tentando "planejar centralizadamente" as leis de uma sociedade.  A impossibilidade do socialismo é apenas um caso especial da incapacidade geral de planejadores centrais de coletar e assimilar todas as informações que estão amplamente dispersas pela sociedade.  O caráter disperso e descentralizado do conhecimento e da informação em uma sociedade simplesmente faz com que seja praticamente impossível para estes legisladores centralizados planejar racionalmente as leis de toda uma sociedade.

A inevitável ignorância dos legisladores também os torna menos capazes de realmente representar a vontade geral da população, e os deixa mais propensos a ser influenciados por grupos de interesse e lobistas.  Por causa deste estado de ignorância, eles não têm uma maneira confiável de se nortear para saber quais leis aprovar, o que os torna uma presa fácil para estes grupos de interesses.  Isso propicia a criação de leis que beneficiam alguns poucos à custa de vários outros.  No longo prazo, poucos se beneficiarão à custa de absolutamente todo o resto da sociedade.

Por outro lado, sistemas de decisões judiciais descentralizadas, como o direito consuetudinário, são análogos a um livre mercado, pois há neles uma ordem natural, não planejada por decretos governamentais.  Ademais, como enfatizou Richard Epstein, dado que, para os lobistas, alterar uma legislação ou uma regulação é mais fácil do que convencer um juiz a alterar todo o corpo de regras produzido pelo direito consuetudinário, juízes são também menos propensos a serem alvos dos grupos de interesse do que legisladores.

A proliferação de leis

Devido à sistemática ignorância que os legisladores enfrentam, a legislação muitas vezes desorganiza toda a delicada ordem econômica, social e jurídica de uma sociedade, levando a consequências indesejadas e inesperadas.  Ato contínuo, e invariavelmente, por causa de uma propaganda governamental bem feita, combinada com a apatia e ignorância pública, essas inevitáveis falhas da legislação são imputadas não ao intervencionismo governamental, mas à liberdade e à desregulada conduta humana, levando a legislações ainda mais intrusivas.

Essa contínua efusão de leis artificiais gera vários efeitos insidiosos.  À medida que determinados grupos de interesse têm êxito, outros grupos rivais são criados para defender seus próprios interesses.  Rapidamente, uma guerra jurídica de todos contra todos começa a surgir.  Assim, em vez da cooperação, a sociedade é levada ao conflito.

Além disso, quando há muitas leis expressas em uma linguagem arcaica, vaga e complexa, como é comum hoje em dia, é impossível um cidadão não violar a lei em determinado momento, mesmo sem saber que a está violando -- situação essa tornada ainda mais perversa em decorrência da regra de que "o desconhecimento da lei não é desculpa para infringi-la". ["Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece", art. 3º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro].

Praticamente todo mundo já violou uma norma tributária, uma regulação empreendedorial, uma lei extorsiva, o estatuto do desarmamento, a lei seca, a alfândega, as portarias da Receita federal ou pelo menos o Código de Trânsito.  Quando somos todos transgressores da lei, a lei se torna desacreditada e, o que é pior, o governo pode seletiva e arbitrariamente impor qualquer lei que lhe seja conveniente contra qualquer "encrenqueiro".

Adicionalmente, como outro teórico italiano, Giovanni Sartori, apontou, quando a legislação é vista como sendo a fonte primária do direito e das leis, os cidadãos se tornam cada vez mais acostumados a seguir ordens, e consequentemente se tornam mais dóceis, mais servis e menos independentes.  Quando as pessoas perdem o seu espírito rebelde, fica mais fácil e mais irresistível para o governo se tornar tirânico.

Por causa dos perigos de uma legislação, várias garantias constitucionais deveriam acompanhar sua aplicação.  Os requisitos de maioria absoluta e de um referendo são uma forma de limitar o poder legiferante.  Outra forma seria fazer com todas as legislações fossem constitucionalmente limitadas a apenas substituir o parecer de um determinado tribunal por um novo parecer.  Sendo assim, se houvesse um determinado caso cujo parecer emitido apresentasse um raciocínio ou resultado escandaloso, a legislatura poderia reescrever a lamentável opinião de uma forma melhor e aprovar isso em lei, como se fosse a corte quem houvesse emitido aquele parecer reescrito.  O parecer reescrito assumiria então o status de precedente judicial, ao menos para aquela corte.

Essa limitação à capacidade legiferante impediria a promulgação de enormes e fraudulentos esquemas legislativos.  Caso o "parecer substituto" se afastasse dos fatos de um caso particular, este seria apenas uma opinião, sem força vinculante.

Provisões que automaticamente revogam uma lei que não tenha sido reescrita depois de alguns anos também são úteis.  Outra medida preventiva seria o direito absoluto de julgamento por júri em todos os casos, cível ou criminal.  Desta forma, o governo não poderia escapar da obrigatoriedade de um júri ao simplesmente rotular sanções genuinamente criminais de "cíveis".  Esta medida deveria ser combinada com a exigência de que o júri seja informado de seu direito de julgar tanto a validade da lei quanto a responsabilidade ou culpa do réu.

O papel dos códigos e dos comentaristas

Os Códigos (codificação jurídica) são essenciais para o desenvolvimento, sistematização e promulgação do sistema jurídico.  Os códigos civis modernos dos sistemas de direito civil são um exemplo de codificações impressionantes e úteis que se desenvolveram sob o sistema descentralizado do direito romano.  No entanto, os perigos da legislação também aconselham que a codificação não seja legislada.  Não há razão para que os códigos não sejam escritos por particulares.  Com efeito, o tratado Commentaries on the Laws of England, de Sir William Blackstone, era privado e foi extremamente bem sucedido na codificação do direito; e há hoje nos EUA tratados privados bem sucedidos, como os Restatments of the Law.  Os códigos seriam muito mais racionais e sistemáticos (e menores) se eles não tivessem que levar em conta um enorme e interveniente corpo de lei -- se pudessem se concentrar primordialmente nos desenvolvimentos do direito consuetudinário.

É claro que tanto as codificações das jurisprudências privadas quanto das oficiais podem cometer erros.  No entanto, se o código é privado, os juízes podem ignorar os lapsos de raciocínio do codificador.  Isto possui o benefício extra de dar um incentivo aos codificadores privados a não incorrerem em raciocínios desonestos ou em algum tipo planejamento social.  Se um codificador quer que seu trabalho seja utilizado e reconhecido, quando ele for organizar e apresentar o ordenamento jurídico, ele irá tentar descrevê-lo com precisão e provavelmente será explícito ao recomendar que os juízes adotem certas mudanças em suas decisões futuras.

Tanto o direito romano quanto o direito consuetudinário foram corrompidos pelo sistema de leis atual, que é imensamente inferior.  A primazia da legislação deve ser abandonada, e devemos retornar ao sistema descentralizado em que as leis são descobertas e construídas.  Estudiosos que codificam leis que evoluíram naturalmente têm uma função vital a exercer, mas eles não devem pedir o aval governamental para seus esforços acadêmicos.

Naturalmente, o formato de um sistema jurídico não garante que apenas leis justas serão adotadas.  Devemos estar sempre vigilantes, exortando que a liberdade individual seja sempre respeitada, pelo legislador ou pelo juiz.


Sobre o autor

Stephan Kinsella

Stephan Kinsella é advogado, especialista na área de patentes. é autor/editor de vários livros e artigos sobre leis de propriedade intelectual, direito internacional e outros tópicos jurídicos.

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