Quando
Hugo Chávez morreu, minha
timeline
foi tomada, como de costume, por manifestações contraditórias: uns em luto,
outros em festa. Devo
admitir que minha reação estava mais para o time da celebração. Totalmente
alheio que sou à vida pessoal do homem — como cristão, contudo, espero que
encontre a paz —, para mim já passou da hora da América católica se libertar
de seus ridículos tiranos. Um líder autoritário a menos é sempre uma boa
notícia. Claro que em seu lugar virão outros. As ideias que garantiram seu
poder estão firmes e fortes.
Sendo
sinceros, no entanto, temos que reconhecer que, embora Hugo Chávez tenha sido
um líder autoritário, não foi um monstro tirânico. Perpetuou-se no poder
indefinidamente, travou uma campanha de coação pesada contra todos os seus
opositores, especialmente na mídia (campanha que culminou com as declarações de
Nicolás Maduro, às vésperas da morte do presidente, acusando a mídia de
espalhar mentiras sobre sua saúde). Fechou redes privadas de televisão, impôs
quotas enormes de produção local a todas as estações, bem como financiou essa
produção local — entre elas o hilário talk show comandado pelo
próprio Chávez. Seu governo desceu ainda a pormenores ridículos como a
restrição de horário aos Simpsons e a
proibição total de Family Guy.
Ao
mesmo tempo em que mobilizava força policial para fiscalizar lan houses e se certificar de que
ninguém estava jogando jogos violentos, a violência real no país, medida em
número de homicídios, mais do que triplicou
desde que ele assumiu o poder. Não se trata de mortes comandadas pelo poder
central, mas de um clima de absoluta anomia, ou seja, falta de lei, que permite
que bandidos e mesmo
a polícia ajam como bem entenderem, como é próprio de governos autoritários
em que o poder do estado é magnificado.
Como
eu ia dizendo, Chávez foi um presidente (e por que negar-lhe o título? Por
acaso a maioria não o elegeu?) autoritário, mas não foi um monstro. Não foi,
por exemplo, um ditador brutal como Pinochet, do Chile, cujo governo matou
cerca de 3.000 dissidentes políticos e torturou dezenas de milhares de
pessoas. Até agora, apesar da violência
endêmica da polícia venezuelana (sem conteúdo ideológico pró ou anti-governo),
não se tem notícias desse tipo de repressão direta por parte das autoridades. A
coação aos grupos de mídia e aos partidos de oposição é real, mas não chegou ao
nível da proibição direta da opinião contrária e da execução ou prisão sumárias
de quem discorda.
A crítica a Chávez: bons e maus motivos
Chávez
foi membro de uma nova esquerda que apresenta problemas à crítica mainstream. A maior parte das críticas
se refere à "falta de democracia", à falta de liberdade de imprensa, à violação
de direitos humanos. São todas preocupações reais, mas estão longe de ser o
pior lado do regime Chávez. Essas críticas erram, em minha opinião, exatamente
no ponto em que o livro O Caminho da
Servidão, de Hayek, errou. Ele criticava os governos da social-democracia
intervencionista (e a esquerda latinoamericana é uma versão um pouco mais
contundente da variante europeia que Hayek tinha em mente) porque,
supostamente, eles levariam à supressão das liberdades civis e da democracia e
conduziriam à tirania. Passaram as décadas e sua previsão pessimista não se
concretizou.
Na
prática, é possível um regime francamente de esquerda que não viole os direitos
civis, a democracia, a liberdade de imprensa. Chávez tem notas ruins em tudo
isso; exceto, em certo sentido, na democracia: suas decisões sempre estavam
amparadas pela vontade expressa da maioria — nesse sentido, ele foi até
democrático em demasia.
Enfim, apesar das notas ruins, não foi dos piores violadores
que o mundo já conheceu. Regimes mais capitalistas em vários aspectos foram
piores nesses quesitos; é o caso novamente do Chile de Pinochet (voltarei à
comparação à frente). Para um libertário, essa constatação não traz problema algum:
as medidas da esquerda social-democrata e socialista não são ruins devido a
supostas violações de direitos civis que elas podem trazer no longo prazo. São
ruins devido à violação da liberdade individual e da consequente distorção
econômica que eles provocam no presente. E falar de economia não é falar de
números abstratos e índices arcanos do mercado financeiro, mas da qualidade de
vida de toda a população.
Economicamente,
Chávez foi um desastre. Um desastre que só não levou ao colapso completo da nação
porque foi salvo por uma dádiva dos céus: o petróleo e o aumento de seu preço
desde que o regime começou. Ainda assim, a inépcia do estado venezuelano
neutralizou boa parte dessa benesse da natureza. O mínimo que uma empresa
estatal pode fazer (e que se espera que faça) é alocar cargos de acordo com a
qualidade técnica dos funcionários, e não com a orientação ideológica deles,
que foi o que Chávez fez. A inépcia foi tamanha que a
produção de petróleo medida em barris caiu desde que Chávez assumiu, apesar
da renda com a venda deles ter aumentado.
Os
defensores de Chávez exaltam suas conquistas sociais: a diminuição da pobreza e
o aumento do alfabetismo (de
90% para 95% da população). É verdade: se se tira o dinheiro de alguns mais
produtivos — e mais, se se usa os retornos generosos do petróleo — e se dá
aos muito pobres, isso significará um aumento em sua qualidade de vida. Todo
mundo há de convir que pessoas passando um pouco menos de necessidade é, em si
mesmo, algo bom. Mas e se, para realizar essa leve melhora na qualidade de vida
da população mais pobre, o governo minar significativamente as bases que
permitiriam a melhora substancial na qualidade de vida de todos no longo prazo?
Foi isso que Chávez fez.
O
uso político dos recursos permite que o estado atinja — com muita ineficiência
e desperdício, claro — algumas metas bem definidas: diminuir a miséria atual;
melhorar alguns índices da educação (ainda que os alunos tenham que ler "bibliografia
revolucionária"). A ineficiência do programa educacional de Chávez confirma
essa hipótese. A UNESCO sugere que custos entre US$ 50 e US$ 100 por pessoa são
razoáveis para um programa de alfabetização; o programa de alfabetização do
governo Chávez, além de fazer uma autopromoção notoriamente falsa, custou
mais de US$ 500 por pessoa. Isso é mérito? Jogando muito dinheiro, custe o
que custar, alguma coisa dá pra fazer; o resto do sistema é que rui.
Chávez
fez ruir a já precária economia venezuelana, cada vez mais dependente de um
petróleo extraído com ineficiência crescente. Destinou os retornos dessa
extração para aliviar a pobreza extrema de grande parte da população (e
conquistar seu apoio nas urnas), é verdade; mas ao mesmo tempo garantiu que a
pobreza continuará sendo um problema crônico da Venezuela por muitas décadas.
Um país com enormes reservas de petróleo convive com apagões rotineiros; com o
quarto maior rio do mundo, e enfrentando racionamento crônico de água. Impõe-se
o controle
de preços (com ameaça de prisão de infratores e nacionalização de seus
negócios) para mascarar uma inflação que oscila entre 20% e 30% ao ano (isso
porque os preços controlados entram no cálculo do índice).
Em
consequência, faltam itens básicos
nas lojas, como leite, açúcar, farinha, óleo, frango, carne; filas se formam
nas portas dos mercados. As leis são ineficientes, e o mercado informal
contrata 50% dos
trabalhadores. A participação do governo na economia não para de crescer:
não só com medidas assistencialistas, mas também com grandes obras rodoviárias,
construções de estádios e subsídios para empresas estatais. A sociedade é cada
vez mais estatizada (mais de mil empresas já passaram para as mãos do estado),
e a ineficiência do estado como gestor apenas agrava as lacunas crônicas da
infraestrutura. Empregos
secam no setor privado, sendo absorvidos pelo estado, que está, além de
tudo, cada vez mais endividado.
Enfim,
Chávez reverteu os ganhos de sua incompetente indústria estatal petrolífera em
benefícios sociais para os muito pobres. Minou, contudo, as bases da economia
venezuelana, que é o que poderia dar aos muito pobres chances de aumentarem sua
produtividade e dar fim à pobreza. Os venezuelanos pobres que louvam Chávez não
sabem que, graças a ele, permanecerão pobres por muito mais tempo. Novamente, o
contraste com o Chile de Pinochet é marcante. É um fato desconfortável, mas
real: o regime ditatorial e homicida de Pinochet provavelmente foi, no longo
prazo, mais benéfico à sua população que o regime bem menos violento e mais
democrático de Chávez.
Do
ponto de vista econômico, as medidas de Pinochet eram sensatas: controle da
inflação, equilíbrio fiscal, abertura ao comércio exterior, simplicidade e
contenção de impostos, facilidade para empreender. A herança disso se vê hoje
em dia: abrir empresas no Chile demora poucos dias, e quase toda a parte
burocrática pode ser feita pela internet. Mérito do governo? Calma lá! Se não
fosse pelo governo, abrir uma nova empresa seria um ato instantâneo e gratuito.
Podemos dizer, isso sim, que o estado chileno atrapalha menos a vida do empreendedor do que o estado venezuelano
(ou do que o brasileiro...). Por esses motivos, a Venezuela continuará a
integrar o rol das nações pobres por um bom tempo ainda, enquanto o Chile já
desponta como a nação mais rica da América do Sul. O Peru, outro país que
adotou medidas liberalizantes, e que em 2002 tinha uma taxa de pobreza superior
à da Venezuela, hoje tem taxa menor, e é o país que mais cresce no continente.
Conclusão: pouco se salva na política
É
muito fácil se deixar levar por partidarismos, e eleger Chávez como um enorme
vilão enquanto poupamos outros chefes de estado com condutas até piores, como
Pinochet, por terem tido algum mérito no que diz respeito ao ordenamento
econômico (o "mérito", novamente, de terem atrapalhado menos); também é fácil
cair no conto de que a oposição atual a Chávez apresenta uma solução de
verdade. A posição libertária não se deixa iludir por nenhum dos lados. Ela tem
que estar acima de quaisquer partidarismos, sem exaltar e nem demonizar nenhum
governante, mostrando todas as falhas e eventuais méritos que uma administração
tenha tido. O valor de suas propostas não se confunde com o desempenho de algum
político ou partido. Chávez foi um governante muito ruim, bem pior do que a
média; o que não significa que a média seja boa. Se comparado ao que fazem na
Europa e nos EUA, levou mais a sério as premissas que eles próprios advogam e
põem em prática de forma mais tímida. Não se presta serviço algum à causa da
liberdade se, ao criticar Chávez, louvemos Lula (como fez a The Economist em um
infeliz
editorial), Obama ou Merkel.
Penso
que o único bom político é aquele que propõe menos estado; e ele é bom apenas
na medida em que o faz. Mesmo os melhores, como Reagan ou Thatcher, ainda estão
muito longe de ter promovido uma sociedade libertária. Se ajudaram a regredir
ou ao menos conter um pouco o avanço do estado, é um mérito que deve ser
reconhecido (mas será que ajudaram mesmo?); precisamos, contudo, de muito mais. As mudanças que propomos estão tão distantes do panorama
político atual — na verdade, de todo o panorama político de toda a história da
humanidade —, que muito pouco dele se salva. São propostas que a política
jamais conheceu, embora, ao mesmo tempo, elas se baseiem na experiência
acumulada mais sólida de cada um de nós: relações voluntárias promovem o
progresso de ambas as partes.
Não
vejo governantes e estado como bandidos, a não ser quando realmente violam a
dignidade mais básica de seus cidadãos. Acho que o estado, bem ou mal, é um
meio para se tentar garantir um mínimo de justiça e legalidade. Não sei se uma
sociedade plenamente livre do estado é possível, embora esteja convicto de que
ela deva ser tentada. Assim, Chávez
não foi um monstro, um tirano, como um Hitler ou um Stalin. Não foi nem mesmo
tão violento quanto um Pinochet ou quanto nossos ditadores militares. Foi um
presidente terrível, como tantos outros.
Claro
que sempre dá pra piorar. Imagine um chefe de estado que unisse brutalidade
maior que a de Pinochet a medidas econômicas ainda mais desastrosas que as de
Chávez. Fidel ainda vive. E mesmo ele não precisa ser demonizado. Combatamos,
com ideias e ideais, todos os inimigos da ordem pacífica e harmoniosa que o
mercado — ou seja, o processo de relações voluntárias entre indivíduos — gera e
garante; mas saibamos também que nossos grandes rivais não são essas pessoas
específicas, e sim as ideias falsas e a estúpida retórica que mantêm e
justificam esses podres poderes.
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Para
uma visão um tanto distinta, leia Ditaduras, relativismo moral
e a necessidade de métodos brutais para se atingir o socialismo