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Filosofia

A virtude do lucro

22/05/2012

A virtude do lucro

O começo do século XXI tem sido marcado pela revalorização da figura do empreendedor. Não é raro, por exemplo, que faculdades tenham cursos e seminários de empreendedorismo ou de liderança. Até que ponto esses cursos são capazes de formar empreendedores de verdade é uma questão em aberto; eles certamente indicam, contudo, um interesse no tema.  Muito tem sido escrito sobre as virtudes necessárias a um empreendedor de sucesso: qual sua motivação, como ele se relaciona com seus stakeholders, de onde ele tira as ideias que revolucionam o mercado. Neste texto, tratar-se-á do mesmo tema só que de outro ponto de vista: explorarei, de maneira introdutória, qual o papel econômico do empreendedor; isto é, qual é sua função no mercado e por que ele é importante.

Para começar a falar disso é preciso falar de valor. Mais especificamente: o que determina o valor de um bem ou serviço? O curioso dessa pergunta é que, no fundo, todo mundo sabe a resposta, mas teria dificuldade em explicar em detalhe: o que te leva, leitor, a aceitar pagar mais por um bem do que por outro? Simples: a capacidade (segundo a sua percepção) daquele bem de satisfazer a seus desejos e necessidades. Se gosto mais de sorvete de limão do que de chocolate, então eu estaria disposto a pagar mais pelo primeiro do que pelo segundo. Se eu realmente detestar sorvete de chocolate, não o compraria nem que custasse 1 centavo o litro. E se todos pensassem assim, o sorvete de chocolate logo sumiria das lojas. São os diversos desejos das diversas pessoas que, comprando e se abstendo de comprar, determinam os preços.

Espere um momento; algo não parece bem nessa explicação. Pois veja: água é essencial para a vida; anel de diamante é luxo desnecessário. Tendo que escolher entre ter um deles e abrir mão do outro, todo mundo escolheria a água. E, mesmo assim, um galão d'água é muito mais barato que o menor dos diamantes. Esse problema incomodou os economistas por muito tempo nos séculos XVIII e XIX, até que três economistas, trabalhando independentemente (um dos quais, Carl Menger, deu origem à chamada Escola Austríaca que inspira este site), resolveram a questão, apontando o fator que, integrado aos desejos e necessidades dos homens, determina o valor de um bem: a escassez relativa. Um copo d'água vale tão pouco porque a água nos é muito abundante; um copo a mais ou a menos pouco afeta os usos que fazemos da água. Mas pode ter certeza: se a água potável disponível diminuísse drasticamente de forma inesperada, em poucos dias veríamos milionários oferecendo suas joias em troca de um copo. E desperdiçar um copo d'água seria tão impensável como jogar, hoje em dia, diamantes no lixo. Isso em parte já ocorre: em países sem a abundância hídrica do Brasil a água é, de fato, mais cara.

A esses bens e serviços que satisfazem as necessidades dos consumidores (copo d'água, anel de diamante, etc.) chamamos "bens de consumo" (falarei sempre de bens, mas saibam que o mesmo se aplica a serviços, isto é, coisas que não conseguimos segurar na mão ou no copo). Existem bens, contudo, que não são usados diretamente pelos consumidores, mas que servem para produzir outros bens. São os bens de capital, também chamados de meios de produção. Alguns exemplos são matérias-primas como metais ou grãos, máquinas utilizadas na indústria, o papel que será usado na confecção de um livro, a mão-de-obra que vai transformar a matéria-prima, a energia elétrica, etc.

O que determina o valor dos bens de capital é o valor dos bens de consumo que eles podem ser usados para produzir. Imagine que, progressivamente, nossa sociedade se desencante com o automóvel, e que as pessoas passem a preferir outros meios de transporte como a bicicleta, que andem mais a pé e que o metrô se torne mais acessível, etc. A demanda por automóveis cairia. Com menos vendas de carro, algumas empresas fechariam, outras diminuiriam a escala de sua produção. Uma máquina cuja única utilidade fosse na linha de montagem de automóveis seria menos demandada e perderia valor. O lucro possível de se obter com tal máquina cairia, e portanto o industrial do ramo não estaria disposto a pagar por ela o mesmo que pagaria em tempos passados, quando o carro era visto como necessidade absoluta por todo mundo que pudesse comprá-lo.

Como tudo isso se relaciona com o empreendedor? Ora, o empreendedor é alguém que compra meios de produção (matéria-prima, energia, trabalho) e os articula para produzir outros bens (que podem ser bens de consumo ou ainda outros bens de capital). Tendo em mente a determinação do valor dos bens descrita acima, como a empresa lucra? Ela lucra quando usa bens de capital de valor X e consegue, com eles, produzir outros bens cujo valor de venda seja maior do que X.

Agora chegamos ao ponto central. Reparem: Como o valor dos bens de capital é determinado pelo valor dos bens de consumo que eles são capazes de produzir (o valor da máquina que produz carros depende do valor esperado dos carros), o valor agregado dos bens de capital de uma linha de produção deveria ser igual ao valor do produto final deles (corrigido, é verdade, por uma taxa de juros referente ao tempo que o processo produtivo leva). O esperado, portanto, é que não exista nem lucro nem prejuízo. Se consigo produzir, com um conjunto de bens de capital, bens de consumo no valor Y, então o valor dos bens de capital também deveria ser Y, e ninguém me venderia esses bens de capital por menos do que eles valem. Como é, então, que algumas empresas conseguem lucrar?

O lucro só é possível por um motivo: o mercado, isto é, a rede de pessoas que trocam umas com as outras, pode ignorar muitas coisas e errar em suas avaliações. O empreendedor que tem lucro é alguém que descobriu um modo de usar os recursos disponíveis que o resto do mercado, em sua maioria, ainda não conhece, ou nunca pensou, ou pensou e considerou uma ideia ruim. Todo ato empreendedor é um ato de risco: é um lançar-se contra a opinião estabelecida, na crença e na esperança de que há uma possibilidade de criação de valor que tem sido ignorada; que há jeitos de se atender à demanda da população que ainda não foram tentados. Todo mundo pensa que um dado bem de capital pode, no máximo, produzir o valor X; e por isso ele é vendido pelo preço X; mas o empreendedor vê nele o potencial de produzir um valor maior que X; e assim começa um negócio. Se estiver certo, sua empresa terá lucro. Se estiver errado, prejuízo.

A conclusão disso tudo é que não existe um "lucro normal", algo que todo empreendedor pode esperar e ter como garantido. Todo lucro é de certa maneira excepcional, fruto de um uso dos recursos que o resto do mercado não foi capaz de prever. É uma aposta acertada contra a opinião vigente (isto é, contra os preços que o mercado atribui aos meios de produção). É verdade que barreiras e regulamentações legais viciam um pouco essa realidade: num setor cartelizado ou até monopolizado, em que o governo impõe restrições legais à entrada de novas empresas (e ele é o único capaz de fazê-lo, por deter os meios coercitivos necessários), a empresa pertencente ao cartel pode contar com um lucro acima do que teria se houvesse livre concorrência, cobrando preços mais altos. Mesmo assim, ela ainda está sujeita à concorrência de bens substitutos vindos de outros setores (os Correios perderam muita demanda com a chegada do e-mail) e com as flutuações de demanda por seu bem; seu lucro também é excepcional e depende de algum esforço de adequar-se às demandas dos consumidores.

Ademais, todo lucro coloca em funcionamento os mecanismos que levam a sua própria extinção: ele sinaliza que há valor a ser criado numa área e dá o incentivo para outros empreendedores imitarem os exemplos de sucesso. Conforme mais gente imite a ideia lucrativa original, o valor dos bens de capital usados sobe (pois há mais demanda por eles), e o valor dos bens produzidos cai (pois há mais oferta deles), até que o lucro se esgota. O mercado encontrou um novo equilíbrio. Mas o mercado é complexo e composto de bilhões de pessoas e outras incontáveis variáveis que mudam o tempo todo. Novas mudanças estão sempre acontecendo, novas ideias sendo postas em prática o tempo todo; pessoas nascem e morrem, outras mudam suas preferências. Uma mulher resolveu cuidar de sua saúde e parar de beber refrigerante: isso já desloca o mítico ponto de equilíbrio. O mercado é, portanto, um sistema dinâmico que está sempre se dirigindo a um equilíbrio que muda de lugar a todo instante. E o empreendedor é o agente dessa mudança.

É ele que põe o processo em andamento. Todas as outras funções do mercado (trabalhadores e poupadores, basicamente) recebem dele seu direcionamento. É claro que todo mundo depende de todo mundo: sem trabalhadores para oferecer a mão-de-obra e sem poupadores para disponibilizar o capital, o empreendedor nada poderia fazer. Mas é ele que dá a finalidade para o trabalho e para o capital. Quem determina que tipo de vagas de emprego serão ofertadas? E quem determina as opções de investimento do capital? Os empreendedores, sempre tentando atender da forma mais eficiente possível à demanda dos consumidores. Eles colocam em andamento o processo pelo qual as pessoas são incentivadas a poupar (para ganhar uma taxa de retorno em seu capital) e a trabalhar (oferta de vagas de emprego a diversos salários). Se, depois de concluído o processo, depois de pagar seus trabalhadores, fornecedores e credores, sobrar algo (grande parte do qual, provavelmente, será reinvestido na empresa), isso significará que ele criou valor. Nem por isso poderá descansar; o mercado está sempre mudando, novos pontos de equilíbrio estão surgindo, as velhas oportunidades de lucro estão se esgotando. Seu trabalho, portanto, nunca para.


Sobre o autor

Joel Fonseca

Economista e filósofo. Colunista da Folha e Exame Hoje. Integrante do MyNews. Youtuber em formação.

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