quarta-feira, 18 abr 2012
O artigo a seguir foi extraído do um boletim informativo mensal
escrito para a empresa VOGA.
"A mão invisível do mercado está dando lugar à
mão visível e frequentemente autoritária do capitalismo de estado", escreveu a The Economist em janeiro deste ano em
uma oportuna reportagem especial sobre a ascensão do capitalismo de estado nos
países emergentes.
A Rússia, com seus oligarcas com estreitas
relações com o governo, e a China, com suas centenas de empresas estatais, já
são conhecidas por esta versão de capitalismo.
O mesmo é válido para os xarifados ricos em petróleo e gás do Oriente
Médio.
Mas o Brasil, uma democracia com 200 milhões de
habitantes, faz pensar se o país de fato merece fazer parte deste seleto time
de capitalistas estatais. E o fato é
que, como corretamente apontado pela revista britânica, o governo brasileiro
também sucumbe às tentações da mão visível do estado.
Seja adquirindo ações minoritárias em várias
empresas privadas por meio do BNDESPar (a subsidiária do BNDES que investe
diretamente em empresas privadas), seja concedendo empréstimos subsidiados para
empresas com boas conexões políticas (também por meio do BNDES), ou exercendo
forte influência sobre grandes corporações como a Vale (por meio dos poderosos
fundos de pensões de estatais que detêm significativas parcelas de ações da
empresa), o Leviatã brasileiro está longe de estar adormecido.
Toda esta introdução serve para nos trazer ao
assunto deste artigo, qual seja, a evolução do crédito no Brasil, e, como
sugere o título, como o estado não está deixando exclusivamente para o mercado
a tarefa de decidir a alocação dos fundos.
Porém, antes de prosseguirmos, vale a pena relembrar a recente história
das instituições financeiras estatais no Brasil.
Bancos
estatais e bancos controlados pelos estados
Não mais do que 15 anos atrás, 23 dos 25
estados do Brasil possuíam seu próprio banco.
Fundados após a Primeira Guerra Mundial e ao longo de todo o século XX,
sob o pretexto de fornecer financiamentos de longo prazo sempre que os bancos
privados se recusassem a emprestar (ou fossem incapazes de conceder crédito em
decorrência da alta inflação de preços ou do excessivo volume de crédito tomado
pelos governos), estes bancos acabaram gerando severas atribulações fiscais e
monetárias para o país.
O Banespa, no estado de São Paulo; o BANERJ, no
estado do Rio de Janeiro; o Baneb, na Bahia; o Credireal, em Minas Gerais; e o
Banestado, no Paraná, são apenas uma amostra destas instituições financeiras
estatais. Os mais velhos certamente se
lembram bem destes nomes infames.
Na teoria, todos estes bancos tinham o objetivo
de gerar desenvolvimento para suas respectivas regiões. Na prática, a realidade foi totalmente
diferente. Quantidades infinitas de
empréstimos eram feitas para seus acionistas controladores — os próprios
governos estaduais — sempre que as receitas de impostos se mostravam
insuficientes para cobrir os gastos públicos.
As várias empresas estaduais nos setores de telefonia, água e esgoto, rodoviário
e de transporte também eram agraciadas com crédito destes bancos estaduais. Como era de se esperar, estes empréstimos
frequentemente não eram quitados. Porém,
o "risco de crédito" dos governos estaduais permanecia inalterado. Empréstimos adicionais iam sendo concedidos à
medida que os antigos eram ou renegociados ou simplesmente cancelados.
Ao fim e ao cabo, a maioria destes bancos
estaduais estava em um estado de completa insolvência. O Banco Central constantemente tinha de
intervir e socorrer estas instituições, pois muitas eram consideradas "grandes
demais para quebrar". O ápice do caos
ocorreu durante a década de 1980 e início da de 1990, sendo este arranjo um dos
principais fatores que contribuíram para a hiperinflação que o país vivenciou
naquela época.
Mas, e quanto ao crédito? O que dizer sobre o crédito de longo
prazo? Será que os bancos estaduais de
fato contribuíram para o desenvolvimento de suas respectivas regiões, objetivo
este que era o principal pretexto de sua existência? É muito difícil responder positivamente a
esta última pergunta.
Com relação ao crédito em si, pode-se afirmar
com toda a certeza que os bancos estaduais cumpriram sua missão de fornecer
financiamento. Crédito de longo
prazo. Crédito de curto prazo. Crédito de qualquer prazo. Volumes pequenos e enormes. Absurdos e bizarros. Para seu próprio acionista. Para as empresas de seu acionista. Para tomadores de empréstimo de bom histórico
e de péssimo histórico, igualmente. Tudo
isto foi o inevitável resultado de um sistema bancário estatal operando sob
difusos e predominantes conflitos de interesse, pessimamente gerenciado, guiado
não pela busca pelo lucro mas sim por objetivos políticos.
De 1988 até a introdução do real em julho de
1994, o crédito concedido por instituições financeiras estatais, não
surpreendentemente, representou 64% do crédito total concedido. Afinal, era impossível um banco privado
superar competitivamente um banco público que concedia crédito temerariamente.
O país logo percebeu que o crédito não podia
ser criado do nada, sem que houvesse uma poupança anteriormente formada para
sustentar sua criação. Tomadores de
empréstimos com histórico ruim são considerados "ruins" por um motivo: sua
incapacidade financeira de quitar uma dívida.
Com a transição para a nova moeda, o real, rapidamente
surgiu a necessidade de se reestruturar completamente os bancos estaduais. Uma legislação aprovada em 1996 deu início a
este processo, no qual o Ministério da Fazenda instituiu o PROES (Programa de Incentivo à
Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária). Seu objetivo era liquidar, trazer solvência
ou privatizar os bancos estaduais.
Ao final do programa, em 2002, após nove
privatizações bancárias e várias liquidações, a participação do crédito do
setor financeiro estatal não representava mais do que 38% do crédito total
concedido. E por que tal participação
não era ainda menor? Porque alguns
importantes bancos estaduais continuaram operando, como o Banrisul e o BRB
(Banco de Brasília).
Embora práticas de mercado houvessem sido
adotadas (o Banrisul até mesmo abriu seu capital na Bovespa), tais bancos ainda
são controlados por seus respectivos governos estaduais; logo, são gerenciados
de acordo com conveniências políticas. E
o mesmo é válido para os bancos federais — Banco do Brasil e Caixa Econômica
Federal — e para o banco nacional de desenvolvimento, o BNDES. Estas gigantescas instituições financeiras
ainda moldam uma considerável fatia da economia brasileira atualmente.
O que nos leva para a próxima seção, na qual faremos
algumas constatações sobre a evolução do crédito.
Crédito
"público" ganhando ímpeto
Analisando o gráfico 1 abaixo, é possível ver
claramente o comportamento oposto entre o crescimento do crédito privado e o
crescimento do crédito "público" nos últimos anos — especialmente desde 2008,
quando houve um virtual "sufocamento do crédito" oriundo dos bancos privados, e
o estado entrou vigorosamente em cena despejando dinheiro de estímulo (leia-se
BNDES) de modo a mais do que compensar a tendência de queda do crédito privado.
Crédito dos bancos públicos em vermelho e
crédito dos bancos privados em cinza

Figura 1: Crescimento anual do crédito total —
Fontes: BACEN e VOGA
No ano seguinte, 2009, os bancos privados
mantiveram sua postura cautelosa.
Somente em 2010 é que vimos a retomada do crescimento do crédito privado
na economia.
A alta expansão monetária de 2010, que levou a
um crescimento recorde do PIB de 7,5%, culminou em uma inflação de preços acima
da meta em 2011, bem como em um aumento da taxa de inadimplência ao longo
daquele ano. Adicionalmente, a Europa e
as tribulações de sua dívida soberana contribuíram para boa parte da
turbulência nos mercados. Os eventos de
2011 renovaram as preocupações com relação ao estado da economia mundial.
Sob este cenário, os bancos privados no Brasil,
sempre sujeitos ao implacável teste dos lucros e prejuízos (na realidade, nem
tão implacável assim quando se leva em consideração o papel do BACEN como
emprestador de última instância), não tiveram opção a não ser moderar o ritmo
do crescimento do crédito em decorrência do superaquecimento da economia
nacional e do trôpego estado das nações desenvolvidas.
Porém, os planejadores centrais em Brasília não
suportam a ideia de deixar o mercado se reajustar sozinho. Eles têm de intervir sempre, fornecendo
crédito farto e barato. E foi exatamente
isso o que testemunhamos nos últimos meses de 2011. O crédito público ganhou impulso, ao passo
que as instituições financeiras privadas se abstiveram de conceder ainda mais
empréstimos para uma economia já bem alavancada.
Embora o BNDES seja o notório financiador das
grandes empresas, os bancos federais também possuem sua fatia. Mas por que o estado deve interferir nos
mercados de crédito? Oficialmente, por
causa da incapacidade ou da relutância dos bancos privados em fornecer
financiamento de longo prazo para a economia.
O problema com este raciocínio é que ele é bem
aceito pela maioria dos empresários e empreendedores, que gostam de crédito
farto e barato. O governo,
consequentemente, passa a ser considerado o redentor do crescimento econômico,
e não seu empecilho.
Independentemente de inclinações políticas, não
podemos nos abster da enfatizar o seguinte ponto: o senso comum alega que o
livre mercado é incapaz de (ou não quer) fornecer financiamentos de longo
prazo, de modo que o estado deve intervir para corrigir esta "falha de
mercado". Aos adeptos desta crença, vale
relembrá-los que o atual sistema financeiro é completamente controlado e
organizado pelo estado e por seu banco central.
Sendo assim, se tal sistema é incapaz de fornecer financiamentos de
longo prazo, temos então um bom exemplo de fracasso da intervenção estatal — e
a culpa deve ser debitada completamente nele, e não no livre mercado.
Portanto, embora seja conceitualmente errado, o
crédito estatal é justificado como sendo uma maneira de corrigir uma suposta
falha de mercado. Mas, como acabamos de
argumentar, tal justificativa é, no mínimo, altamente contestável. Por outro lado, uma questão que já não mais
tem como ser contestada é o fato de que a concessão de crédito pelo governo representa
mais uma poderosa maneira de ele exercer seu poder sobre a economia. Citando novamente a The Economist, trata-se da "mão visível do estado".
Uma
tendência preocupante
E não dá para negar que esta mão está ficando cada
vez mais visível, como claramente mostra a figura 2.
A área cinza mostra o total de crédito
concedido; a linha vermelha mostra qual a porcentagem deste volume de crédito é
composta por crédito estatal.

Figura 2: Quem está emprestando? — Fontes:
BACEN e VOGA
A fatia dos bancos públicos no crédito total está
em níveis não vistos desde 2000, antes do final do PROES. O objetivo deste programa era especificamente
o de reduzir a presença do estado no setor bancário. "Privatizar" o sistema bancário e,
consequentemente, o crédito. O que
estamos vendo agora é exatamente o oposto daquela tendência. De certa forma, trata-se da reestatização do
crédito.
Não obstante, existem diferenças óbvias entre o
financiamento dos bancos estatais na década de 1990 e os atuais. Naquela época, o crédito era concedido
majoritariamente para os governos estaduais e para as empresas estatais. A lógica econômica por trás daqueles
empréstimos era totalmente nula.
Adicionalmente, tudo funcionava como uma assistência fiscal direta aos
estados. Os incentivos econômicos eram
extremamente perversos. Um banco estatal
emprestando para uma empresa estatal é a combinação perfeita para o
desperdício. Aquele não se importa muito
se a dívida será quitada ou não; este possui poucos incentivos para investir
sensatamente. Ambos usufruem a sempre
implícita garantia do socorro estatal.
No presente, estamos lidando com uma parte
destes problemas. Os recebedores do
crédito estatal agora são empresas privadas, de grandes a pequenas, e cidadãos
brasileiros. Contrariamente às empresas
estatais, empresas privadas não podem se entregar gostosamente à gastança
desmesurada. Por outro lado, bancos
estatais certamente podem se dar ao luxo de emprestar com pouca prudência.
O principal problema com o crédito fornecido
por instituições financeiras estatais é que ele pode gerar investimentos
insustentáveis em determinados setores, com o risco de causar um ciclo
econômico de máxima intensidade caso a expansão creditícia seja mais acentuada.
Em vez de simplesmente destruir capital, como
ocorria na década de 1990, o risco da atual expansão creditícia é alterar e
distorcer a alocação de capital na economia, fazendo com que ela seja
ineficiente e insustentável. Sendo
assim, os desequilíbrios podem até demorar um pouco mais para serem formados,
mas, no devido tempo, os problemas surgirão.
Esta é a inevitável consequência de quando a política pública determina
onde os fundos devem ser investidos: alocação errônea e insustentável do
capital.
Talvez o mais incisivo e recente exemplo de uma
maciça alocação errônea e insustentável de capital seja a bolha imobiliária
americana que estourou em 2006/2007. Não
coincidentemente, a política do governo americano foi o principal fato gerador
do desastre imobiliário. Por meio das
agências Fannie Mae e
Freddie Mac — duas enormes empresas apadrinhadas pelo governo (empresas
privadas que contavam com implícitas garantias de socorro por parte do governo)
e responsáveis por fornecer financiamentos imobiliários baratos —, da política
declarada do ex-presidente George W. Bush de aumentar o número de proprietários
de imóveis, e das baixas taxas de juros estipuladas pelo Federal Reserve, uma
enorme bolha foi formada. Seus efeitos
ainda são sentidos até hoje na economia americana.
No Brasil, a Caixa Econômica Federal, um banco
estatal, é a principal fonte do financiamento imobiliário, responsável por
praticamente 75% de todo o crédito imobiliário pendente. Porém, em comparação com outros mercados
desenvolvidos, ainda há um longo caminho para que a alavancagem se torne uma
questão problemática. O crédito total em
relação ao PIB ainda está abaixo dos 50%, ao passo que o crédito imobiliário
constitui não mais do que 5%. No
entanto, o sistema se alavancou de maneira bastante veloz nos últimos
anos. E não há nada melhor para ilustrar
este ponto do que o comportamento das famílias brasileiras, que estão se
alavancando aceleradamente. Ao olhar a
figura 3, vemos que a tendência de crescimento do endividamento das famílias em
relação à renda acumulada nos últimos 12 meses não mostra nenhum sinal de
arrefecimento.

Figura 3: Famílias brasileiras se alavancando
— Fontes: BACEN e VOGA
É necessário enfatizar que o ponto de partida
foi substancialmente baixo, especialmente quando comparado às nações
desenvolvidas. Não mais do que seis anos
atrás, as famílias brasileiras alocavam menos de 20% de sua renda para endividamento. Em novembro de
2011, este valor já havia chegado a 42,5%.
Talvez ainda não seja motivo de grandes preocupações no momento, mas
certamente se trata de um índice que deve ser monitorado de perto.
Outro nocivo subproduto desta preocupante
tendência é o efeito colateral que ela pode gerar no campo fiscal. A implícita garantia de socorro pode
certamente gerar fardos orçamentários no futuro, exatamente o que ocorreu na
década de 1990. Injeções de capital pelo
estado podem se revelar necessárias a fim de se evitar a insolvência dos bancos
públicos. No extremo, dependendo da intensidade
do ciclo do crédito, mesmo empresas e bancos privados podem vir a ser
socorridos pelo governo, exatamente como foi feito nos EUA, na Espanha, na
Irlanda e no Reino Unido (um dos principais culpados pela crise da dívida
soberana de 2011 foi a maciça assunção de dívida privada pelos governos
centrais). No entanto, no caso do
Brasil, este cenário parece estar ainda alguns anos mais distante.
Conclusão
O Brasil está na contramão dos eventos. Enquanto ainda estamos nos alavancando, as nações
desenvolvidas já estão se desalavancando.
O ciclo do crédito no país está apenas no início. O principal ponto aqui desenvolvido é que,
infelizmente, uma enorme fatia deste crédito está sendo conduzido pelo setor
financeiro estatal. Mais ainda, a fatia
do crédito estatal no crédito total vem apresentando, como mostra a figura 2,
um acentuado crescimento.
Como tudo isso irá se desenrolar no futuro é
algo que não podemos prever, pois vai depender da política, e não da economia.
Será que os padrões de concessão de crédito serão
afrouxados para acomodar mais empréstimos ao mercado imobiliário? Talvez os pagamentos de entrada passem a ser considerados
desnecessários, exatamente como fizeram os concessores de empréstimos durante a
bolha imobiliária americana. Podemos apenas
especular.
Contudo, a política jamais poderá invalidar e
abolir as leis econômicas. Não importa
quanto crédito seja criado pelo sistema: sem que haja uma poupança prévia, os
investimentos não poderão ser consumados.
Sem produção e, consequentemente, sem renda, o déficit imobiliário não poderá
ser reduzido pela mera criação artificial de crédito.
Muito tem se falado sobre este suposto déficit imobiliário
e a consequente demanda por imóveis. Mas
uma demanda real só pode ser criada por uma renda real. E uma renda real só aumenta se houver um
aumento da produtividade, que, por sua vez, é uma consequência de maiores
investimentos. E, para investir, é
preciso poupar. Todo o processo começa pela
poupança. Inverter a ordem natural das
coisas é uma receita certa para o desarranjo econômico.
Ludwig von Mises certa vez escreveu que "a história
econômica é um longo registro de políticas governamentais que fracassaram
porque foram concebidas com uma impertinente desconsideração pelas leis da
economia". Bancos estatais, por definição,
operam desconsiderando as leis econômicas.
A história econômica do Brasil é repleta de episódios de má gestão de
bancos estatais. É desanimador constatar
que estamos embarcando novamente nesta jornada.