Trata-se
de um tema muito grande e muito complexo, e provavelmente ambicioso demais para
ser abordado em um único ensaio. Embora
o que virá a seguir possa ser um tanto longo, ainda assim não tem como ser uma
abordagem completa. Várias perguntas
ficarão sem respostas e várias objeções — inclusive as várias que já posso
antecipar — não serão discutidas. Mas,
ainda assim, espero que o leitor considere válido o esforço.
Durante
muito tempo me considerei um liberal clássico — assim como Ludwig von Mises,
que inspirou a maior parte do meu trabalho.
Mas hoje eu não mais considero que tal posição seja logicamente
consistente. A ideologia liberal
clássica, embora defenda um estado muito menor do que aquele que o consenso
político atual preconiza, ainda assim atribui poderes excessivos ao
estado. Não obstante, ela oferece um bom
ponto de partida para a discussão.
Portanto, comecemos por ela.
Argumentos utilitaristas para o estado
estritamente limitado
A
posição liberal clássica acerca do papel do estado pode ser descrita
aproximadamente da seguinte forma: o estado deve ficar completamente de fora da
economia. Não há funções para o estado
exercer no setor industrial, no setor bancário ou no setor monetário. O dinheiro é o ouro ou qualquer outra
commodity livremente escolhida pelo público para efetuar suas trocas de
mercado. A oferta monetária está,
portanto, totalmente fora do controle político, e o sistema bancário e
financeiro são entidades que operam em um mercado totalmente livre e
desimpedido, sem usufruir nenhum tipo de auxílio estatal, nenhuma garantia e
nenhum amparo explícito ou implícito.
Adicionalmente,
todos os meios de produção são propriedade privada, e a maneira como eles são
empregados é guiada pelo sistema de preços do mercado, sempre se buscando
oportunidades de lucros e procurando se evitar prejuízos. Lucros e prejuízos são os sinais essenciais por
meio dos quais os consumidores direcionam as atividades das empresas privadas,
de modo que elas sempre estejam se esforçando ao máximo para satisfazer os
desejos do público consumidor.
O
estado não está envolvido na educação, na saúde, na previdência ou em quaisquer
outros "serviços sociais". Todas estas
atividades são organizadas privadamente, pelo simples motivo de que todas elas
requerem o uso de recursos escassos, inclusive mão-de-obra; e qualquer alocação
racional de recursos escassos requer preços de livre mercado. O planejamento econômico racional só é
possível quando tem como base preços de mercado. Somente preços de mercado transmitem a
urgência que o público atribui aos vários e concorrentes fins para os quais os
recursos escassos devem ser empregados.
Porém,
preços de mercado só podem ser determinados se os recursos forem propriedade
privada e se eles puderem ser livremente comercializados no mercado. A propriedade privada é, portanto, a
ferramenta essencial para uma ampla cooperação social. A propriedade privada permite o comércio e,
consequentemente, a formação de preços de mercado. Isto, por sua vez, permite que empreendedores
empreguem estes recursos de maneira racional e eficiente. Este processo é o único logicamente possível
para se facilitar uma vasta divisão do trabalho e a constante acumulação do capital
empregado em empresas privadas. É a
ampla divisão do trabalho e a constante acumulação de capital o que
possibilitam que nosso padrão de vida cresça continuamente.
Um exemplo
Peguemos
como exemplo um sistema de saúde estatal.
Não importa que seja de um país pobre ou de um país rico: ele jamais
poderá realizar um serviço satisfatório.
E não é porque as pessoas que nele trabalham sejam incompetentes ou
preguiçosas. Elas podem muito bem ser as
pessoas mais motivadas, dedicadas e bem intencionadas do planeta, e ainda assim
irão entregar apenas resultados sub-ótimos, e a custos consideráveis. Por quê?
Porque um sistema de saúde estatal tem de fornecer serviços de saúde
para toda uma nação sem o auxílio de genuínos preços de mercado e,
consequentemente, sem poder calcular corretamente seus lucros e prejuízos. Gostem ou não, são estas as ferramentas
capitalistas que permitem que o setor privado tome decisões corretas e
fundamentadas sobre quais são os melhores recursos a serem utilizados —
'corretas e fundamentadas' porque refletem as preferências e desejos dos
clientes, os consumidores.
Não
obstante o poderoso apelo sentimental gerado por um sistema público de saúde e
seu superficialmente atraente lema de fornecer serviços de saúde "gratuitos"
(algo que obviamente não é verdade para a maioria dos cidadãos), as
fundamentais deficiências de qualquer serviço organizado segundo moldes socialistas já deveriam estar patentemente óbvias para qualquer um: ao passo
que o setor de telefonia celular — empreendimento privado que, na maioria dos
países, ainda é relativamente pouco regulado — fornece as últimas novidades em
tecnologia para todas as pessoas distribuídas ao longo de todo o espectro
social a uma velocidade notável e a preços declinantes, a burocracia estatal
dos serviços de saúde faz com que as pessoas tenham de esperar em longas filas até
mesmo para procedimentos básicos e de rotina; e, pior ainda, fornecem tais
serviços lastimáveis a custos espantosamente crescentes para os pagadores de
impostos.
Que
serviços de saúde e de educação sejam considerados importantes demais para
serem deixados a cargo do mercado privado é um clichê que inverte completamente
a lógica econômica: é justamente por serem muito importantes é que deveriam ser
entregues aos auspícios do mercado privado.
Mas,
e quanto àquelas pessoas que são pobres demais ou que por qualquer motivo são
incapazes de obter a renda necessária para garantirem a si próprias até mesmo
um mínimo destes serviços? Não irei me
esquivar desta pergunta. Voltarei a ela
daqui a pouco.
Até
agora, qual a implicação de toda esta argumentação para o tamanho e a função do
estado? O estado seria, é claro, muito
pequeno para os padrões de hoje. Ele
teria apenas uma função: proteger a propriedade privada, a qual inclui
necessariamente a propriedade sobre nós mesmos.
O papel do estado seria o de proteger cada indivíduo e sua propriedade
contra agressões, seja tal agressão originada dentro do país ou fora do país. O estado seria reduzido àquilo que os
social-democratas alemães do final do século XIX pejorativamente, mas ainda
assim corretamente, chamavam de "estado vigia noturno". O estado forneceria serviços de segurança,
incluindo-se aí polícia, exército, tribunais e outros serviços
relacionados. Sua única função seria
fornecer segurança e proteção. Aqueles
cidadãos que não violassem a propriedade ou a pessoa de outros indivíduos, ou
que não fossem igualmente agredidos, muito dificilmente teriam qualquer contato
com o estado e seus representantes.
Seria de fato um estado mínimo.
Até
aqui os argumentos foram feitos tendo por base considerações
utilitaristas. Uma sociedade próspera
requer um alto grau de divisão do trabalho e um eficiente uso de recursos
(naturalmente escassos), o que por sua vez requer preços de mercado, o que por
sua vez requer propriedade privada. Sob
o utilitarismo, a propriedade privada é acima de tudo uma convenção social, um
meio para se atingir um fim. E a função
do estado é assegurar este meio: a propriedade privada, a existência de um domínio
privado inviolável para todo e qualquer indivíduo, é a base para a cooperação
voluntária contratual e para o crescimento espontâneo da sociedade.
Argumentos éticos para o estado
estritamente limitado
Este
estado mínimo pode, no entanto, também ser erigido sobre bases éticas e seguindo
considerações de justiça. Todo estado é
uma instituição que se baseia na compulsão e na coerção. O estado pode ser visto como uma instituição
que detém o monopólio legitimado, institucionalizado e regulado da violência ou
da ameaça do uso da violência. No
entanto, qual tipo de violência é eticamente defensável e que, portanto, pode servir
de fundamento aceitável para justificar a violência institucionalizada? Apenas a violência defensiva satisfaz este requisito.
Para
responder a perguntas sobre ética é necessário começar considerando o indivíduo
que age. Em uma sociedade normalmente
pacífica e cooperativa, a partir de que ponto estaria eu justificado a utilizar
de violência ou ameaçar utilizar de violência contra outras pessoas? Apenas se e quando estas pessoas ameaçassem
minha vida, minha saúde ou minha propriedade.
Isto não significa que qualquer tipo de resposta violenta seria
justificável em tais situações; porém, resta óbvio que, se a força e a
violência podem ser justificadas, elas somente o serão em situações de
autodefesa, as quais incluem a defesa da propriedade. Se posso justificadamente me defender de um
ataque, também tenho de poder defender aqueles bens materiais que adquiri por
meio do meu trabalho honesto, no qual utilizei meu próprio corpo e minha
própria mente. Caso contrário, caso
outros indivíduos tivessem a permissão de se servirem livremente dos frutos do
meu trabalho, simplesmente tomando-os de mim quando quisessem, isso
significaria que eles poderiam viver totalmente à custa do meu trabalho e, com
isso, praticamente me escravizarem, o que seria o equivalente a um ataque à
minha pessoa.
Ao
se transferir o direito individual à autoproteção e à autodefesa da vida e da
propriedade a uma organização especializada com a missão de zelar
igualitariamente por esses direitos de todos os membros da sociedade, nenhum
novo direito foi criado. Não se está
dando ao estado nenhum direito ou poder que o próprio indivíduo já não
possua. Com efeito, a força legitimada
do estado teria sua origem em um conceito de direitos naturais que se originam
do indivíduo e os quais o indivíduo teria mesmo em uma sociedade sem estado
(embora em tal sociedade ele teria de impingir estes direitos por conta própria
ou por meio de uma cooperação voluntária com outros). O estado talvez possa ser visto como um
agrupamento destes direitos individuais com o intuito de gerar a mais organizada
e padronizada — e, portanto, mais previsível — proteção.
O argumento utilitarista contra o estado
assistencialista
Podemos
agora abordar a questão da oferta de serviços para indivíduos pobres ou para
aqueles que por algum motivo sejam incapazes de adequadamente se sustentarem. Embora possam ser feitos bons argumentos
afirmando que aqueles indivíduos mais abonados têm a obrigação moral de
auxiliar os membros mais frágeis da sociedade, tal raciocínio deixa claro que o
estado não deve forçar e impingir tais auxílios. Repetindo: o estado é uma organização que opera
por meio da compulsão e da coerção. Ao
assumir responsabilidades 'sociais', o estado terá de redistribuir renda e
propriedade de maneira contínua, sempre recorrendo à força ou à ameaça de
força, desta forma incorrendo em permanente violação de sua missão original, a
qual era proteger a propriedade honestamente adquirida contra qualquer
interferência violenta. Dado que a
função do estado é justamente defender a instituição da propriedade privada —
a qual identificamos como sendo absolutamente essencial para qualquer sociedade
civilizada —, uma função social, que exige redistribuição de renda e
propriedade, estaria em flagrante contradição com sua missão precípua. O estado não pode simplesmente acrescentar
uma função redistributiva à sua função de proteção da propriedade — a primeira
sempre irá violar a última. Ambas as
função estão em conflito lógico. Ou o
estado é um protetor da propriedade ou ele é um redistribuidor e realocador de
propriedade. Ele não pode ser ambos ao
mesmo tempo.
No
conceito original do estado, em que sua função é atuar como força organizada
para o fornecimento de segurança, um indivíduo que honestamente obteve sua
propriedade por meio da produção ou de trocas voluntárias com outros membros da
sociedade deveria poder confiar no estado para que este protegesse sua propriedade
de qualquer violação perpetrada por terceiros.
Porém, no momento em que o estado assume a responsabilidade da 'justiça
social' ou da 'justiça redistributiva', ele acabou de se tornar ele próprio um
violador da propriedade privada, de modo que todo e qualquer indivíduo deve agora
temer que partes da sua renda e da sua propriedade — embora legalmente obtidas
— sejam confiscadas à força pelo estado e realocadas para outros membros da
sociedade.
Resta
claro que, sob um estado que assume responsabilidades 'sociais', qualquer
direito de propriedade se torna totalmente condicional. Os direitos de propriedade serão protegidos
pelo estado somente enquanto ele não considerar que há outras pessoas mais
necessitadas e mais moralmente dignas de serem as proprietárias da propriedade em questão. Cada fatia de propriedade
em tal sociedade estará, portanto, sob uma nuvem de incerteza, e isso está em
total contradição com a missão original do estado. O elemento incerteza é amplificado pelo fato
de que, embora seja possível especificar regras claras e universais sobre como
a propriedade pode ser honesta e legalmente adquirida — desta forma fornecendo
a cada membro da sociedade regras claras, conhecidas antes do ato de produção e comércio, sobre o que constitui obtenção
correta e o que constitui obtenção ilícita de propriedade —, qualquer noção explicitada
após o ato de produção e comércio sobre
o que constitui 'justiça distributiva' será necessariamente arbitrária e estará
sujeita a consideráveis mudanças ao longo do tempo.
Não
é nada surpreendente que todos os estados tenham expandido enormemente a
variedade e a amplitude de políticas redistributivas, legislações sociais e
regulamentações ao longo das últimas décadas.
Uma vez que o estado se encarregou de buscar o logicamente indefinível objetivo
da igualdade e da justiça social, ele passou a exigir poderes cada vez mais
amplos. A consequência é que a ideia de
um estado mínimo já se tornou hoje completamente irrealista.
Em
contrapartida, qualquer redistribuição de propriedade ou de renda por meio de
atos de caridade não apresenta conflito algum com a instituição da propriedade
privada. O doador e o recebedor da
caridade sabem quem é o proprietário de direito da propriedade doada. O recebedor está ciente de que ele está sendo
sustentado pela generosidade de outros.
O doador também decide quem ele quer ajudar e até que ponto ele quer
ajudar tal pessoa. Tudo isso muda quando
o estado, detendo o monopólio legal da coerção, se torna o intermediário. O recebedor não mais se considera dependente
do sucesso econômico e da caridade de outros.
Ao contrário: ele agora reivindica o 'direito' de ser sustentado pelo
estado — receber auxílios se torna um direito legalmente exigível pela
pessoa. Tendo agora pelo menos uma renda
mínima garantida, os incentivos para que esta pessoa mude seu comportamento e
readquira independência econômica são diluídos.
Enquanto isso, o proprietário original da propriedade não mais controla
para onde seu dinheiro vai, e provavelmente irá perder qualquer interesse pela
situação dolorosa daqueles que necessitam de auxílios. Uma vez que ele já foi tributado pelo estado,
ele considera que todos os seus deveres morais para com os membros mais fracos
da sociedade já estão devidamente cumpridos.
Os
defensores do estado assistencialista irão argumentar que é mais justo
introduzir um elemento de incerteza nas vidas dos indivíduos economicamente
independentes do que manter os membros mais frágeis da sociedade sujeitos à
completa incerteza que a pobreza e a dependência da caridade inevitavelmente acarretam. Embora este seja um argumento emocionalmente
atraente — e provavelmente seja um sentimento amplamente compartilhado —, ele
não dispersa a questão do conflito fundamental entre a proteção da propriedade
privada e a persistente redistribuição da propriedade privada.
Um
estado assistencialista é, fundamental e conceitualmente, uma ameaça
persistente à noção de propriedade privada; e a propriedade privada é
inegavelmente a fundação econômica de qualquer sociedade. Adicionalmente, qualquer conceito de 'justiça
social' é, por definição, arbitrário e será fonte de enormes conflitos sempre
que for utilizado para nortear políticas práticas. No que mais, um estado que se preocupe com a
distribuição de renda e de propriedade entre seus cidadãos jamais será um
estado pequeno, ou mesmo limitado.
O argumento ético contra o estado
assistencialista
Até
aqui, o argumento se baseou em considerações utilitaristas. Mas podemos também baseá-lo em teorias sobre
ética e justiça. Já foi argumentado que
um estado que se restringe à proteção da pessoa e da propriedade de seus
cidadãos contra atos espontâneos de agressão baseia este seu direito à legítima
força nos direitos que os membros individuais desta sociedade têm de utilizar
esta mesma força. O estado não assume
nenhuma posição privilegiada; ele simplesmente exerce os direitos que cada
cidadão individual já possui, mas que considera ser mais bem assegurado e
exercido por uma organização estatal.
Esta visão, no entanto, deixa de ser defensável quando o estado
implementa a redistribuição da renda e da propriedade.
Embora
possamos dizer que, em termos de princípios de justiça, seja amplamente aceito
que eu utilize de violência em medidas proporcionais para impedir que meu
vizinho roube ou danifique minha propriedade, ou que ele inflija lesões a mim
ou a qualquer membro da minha família, certamente será algo que estará fora das
estabelecidas normas de justiça caso eu decida forçar meu vizinho a sustentar
terceiros, escolhidos por mim, os quais eu julgo serem dignos da caridade deste
meu vizinho. Ao fazer da 'justiça
social' o seu objetivo, o estado reivindica o direito ao uso de uma força que
nenhum outro indivíduo possui. O estado
agora se tornou uma lei própria, uma entidade 'superior e suprema' cujos
padrões de certo e errado não mais correspondem aos dos cidadãos da
sociedade. Qualquer noção de que o
estado poderia simplesmente representar um agrupamento conveniente e eficiente
dos direitos individuais dos cidadãos, com o único propósito de melhor
organizar e padronizar sua proteção, se torna insustentável. O estado pode fazer e faz o que ninguém mais
fora do estado pode fazer. O estado,
enquanto estado, define suas próprias noções de moralidade e as impõe forçosamente
sobre seus cidadãos.
Até
agora, explicamos por que um estado que assume responsabilidades maiores do que
aquelas preconizadas por um estado mínimo — a saber, articular, esclarecer e
proteger os direitos de seus cidadãos à sua vida e propriedade — incorre em
inevitável violação do direito de seus cidadãos à vida e à propriedade, e não
mais poderá justificar sua existência tomando por base qualquer tipo de
'contrato social', uma vez que tal contrato pode abranger somente aqueles
direitos que os indivíduos já possuem, e os quais eles podem voluntariamente
transferir para o estado caso tenham aceitado tal contrato. Vimos também que um estado que se envolve na
distribuição de renda e de propriedade entre seus cidadãos irá inevitavelmente
solapar a instituição da propriedade privada, a qual é essencial para a
cooperação humana em uma economia de mercado e é a base para qualquer sociedade
próspera.
Do liberalismo clássico ao
anarco-libertarianismo
Embora
tal estado mínimo — um puro protetor da vida e da propriedade de seus
cidadãos, um executor das leis e um provedor de tribunais para facilitar a
resolução de conflitos — seja um melhor garantidor da liberdade individual e
da cooperação pacífica do que o estado pesadamente intervencionista e
crescentemente autoritário de hoje, e embora a maioria dos libertários ficasse
feliz de ver um retorno a esta visão liberal clássica do estado mínimo, mesmo
este conceito ainda continuará extremamente falho enquanto a organização que se
autodenomina estado reivindicar o monopólio territorial do fornecimento de
serviços de proteção e segurança e o monopólio da tomada suprema de decisões
dentro deste território (esta é, na realidade, uma ótima definição do estado
feita por Hans-Hermann
Hoppe).
Se
o estado não apenas utiliza a violência legitimada para proteger a vida e a
propriedade de seus cidadãos, mas também — como presentemente o fazem todos os
estados — utiliza a força para impedir que os cidadãos abdiquem
voluntariamente das estruturas do estado e estabeleçam ou se juntem a
diferentes e concorrentes arranjos dentro deste mesmo território, então temos
também de rejeitar este estado mínimo com base na análise acima.
Primeiro,
novamente, as considerações utilitaristas.
Fornecer serviços de segurança também requer o uso de recursos
escassos. Quantos recursos devem ser
alocados para o fornecimento de segurança, quais recursos devem ser utilizados
e em que grau, são questões essenciais.
Sem propriedade privada, preços de mercado e liberdade de entrada no
mercado da oferta de segurança, os resultados serão, como explicado, longe do
ótimo. Mesmo na área da oferta de
segurança, soluções de mercado são indubitavelmente superiores. Este importante argumento foi inicialmente
desenvolvido pelo economista belga do século XIX, Gustave de Molinari.
Segundo,
temos considerações de ética e de justiça.
Se o estado alega que sua legitimidade do uso da força advém do direito
do cidadão de utilizar a força para defender sua própria vida e propriedade,
isto significa que os direitos do indivíduo são a origem dos direitos do
estado, e que este último jamais pode substituir o primeiro. Colocando de maneira diferente, um estado que
reivindica o monopólio territorial da oferta de segurança e da resolução de
conflitos tem de argumentar que o indivíduo que tinha o direito de utilizar de
violência para defender a vida e a propriedade decidiu, ao entregar estes
direitos a uma organização estatal, abrir mão destes direitos para sempre, e
que ele não mais pode recuperar estes direitos e aplicá-los por meios
alternativos. Esta, logicamente, é uma
posição insustentável.
Parece
correto assumir que as leis e a oferta de segurança têm muito em comum com o
dinheiro no sentido de que elas, também, estão sujeitas a efeitos de rede. Assim como a coexistência de várias moedas
paralelas é algo sub-ótimo, a coexistência de várias estruturas legais e de
vários arranjos de segurança também é ineficiente. Porém, isso não significa que indivíduos não
possuam o direito de criar arranjos alternativos caso julguem que os arranjos
atuais sejam insuficientes ou até mesmo uma ameaça para suas próprias vidas e
propriedades. Podemos concluir que, no
mínimo, o estado mínimo deve reconhecer o direito universal e inviolável de
cada indivíduo ou grupo de indivíduos de se separar a qualquer momento do
monopólio estatal.
Muito
do que argumentei acima pode parecer uma fútil teoria libertária com pouca
relevância para a atual realidade política.
Porém, uma crise do atual sistema de papel-moeda fiduciário de curso
forçado já se tornou inevitável. Esta
crise faz parte de uma crise mais ampla, que é a crise do estado de bem-estar
social e, com efeito, da própria democracia.
À medida que estas crises vão se desdobrando, as pessoas irão novamente
revisitar algumas questões fundamentais sobre o tamanho e o papel do estado e
sua relação com o indivíduo. Sob esta
perspectiva, discussões como esta poderão se tornar de fato muito
relevantes. À medida que os estados ao
redor do mundo forem quebrando, à medida que as promessas de assistencialismo
estatal do berço ao túmulo forem sendo descumpridas, e à medida que os
políticos forem perdendo o controle sobre seus impérios construídos com
dinheiro de papel, os cidadãos irão considerar novas e mais adequadas
alternativas aos atuais aparatos estatais.
Finalizarei
este ensaio com um pequeno excerto do sensacional panfleto No Treason, NO II,
de Lysander Spooner, escrito em 1867, no qual ele faz uma fascinante
interpretação da constituição americana e que é uma excelente apresentação dos
pontos que tentei abordar ao final da análise acima. Eis Spooner:
A Constituição diz:
Nós, o povo dos
Estados Unidos, com o intuito de formar uma união mais perfeita, estabelecer a
justiça, garantir a tranquilidade doméstica, prover a defesa comum, promover o
bem-estar geral e garantir as bênçãos da liberdade para nós mesmos e para nossa
posteridade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos
da América.
O
significado disto é simplesmente: Nós, o povo, agindo livremente e voluntariamente como indivíduos, consentimos e
concordamos que iremos cooperar mutuamente para sustentar o governo na
forma como ele foi descrito nesta Constituição.
A
necessidade do consentimento do "povo" está implícita nesta declaração. Toda a
autoridade da Constituição depende disto.
Se o povo não consentir, ela não terá validade. É claro que ela só teve validade entre
aqueles que de fato consentiram com ela.
Nenhum consentimento poderia ser presumido para um indivíduo sem que ele
de fato o expressasse, assim como ocorre com qualquer outro contrato que envolva
o pagamento de dinheiro ou a prestação de algum serviço. E para tornar a constituição vinculante sobre
qualquer indivíduo, sua assinatura, ou outra evidência positiva de
consentimento, era tão necessária quanto no caso de qualquer outro contrato. Se o instrumento tinha a intenção de dizer
que qualquer indivíduo que pertencesse ao "povo dos Estados Unidos" estaria
vinculado a ele, sem ter seu consentimento, isto seria uma usurpação e uma
mentira. O máximo que pode ser inferido
da frase "Nós, o povo" é que tal
documento oferecia filiação para todo "o povo dos Estados Unidos",
deixando para os indivíduos a opção de aceitar ou recusar, como bem
entendessem.
O
acordo é simples, como qualquer outro acordo.
É o mesmo que um acordo que diga: Nós, o povo da cidade X, concordamos
em manter uma igreja, uma escola, um hospital, ou um teatro, para nós mesmos e
para nossos filhos.
Tal
acordo claramente só teria validade entre aqueles que de fato consentiram com
ele. Se apenas uma fatia do "povo da
cidade X" consentisse com este contrato, e daí obrigassem aqueles indivíduos
que não consentiram a contribuir com dinheiro ou com serviços, tais pessoas
seriam meros assaltantes, e mereceriam ser tratadas como tal.
Nem
a conduta e nem os direitos destes signatários seriam aprimorados caso eles
virassem para os dissidentes e dissessem: "Oferecemos a vocês direitos iguais
aos nossos em relação aos benefícios da igreja, da escola, do hospital ou do
teatro que propomos construir, e um igual poder de controle sobre tal
instituição". Seria uma resposta
suficiente caso os outros dissessem: "Não queremos nenhuma participação nos
benefícios, e nenhum controle sobre sua instituição; e não faremos nada para
sustentá-la."