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Economia

Por que há uma crise do euro?

23/11/2011

Por que há uma crise do euro?

No dia 28 de outubro, uma quinta-feira, os preços das ações europeias dispararam.  Grandes bancos como Société Générale (+22.54%), BNP Paribas (+19.92%), Commerzbank (+16.49%) e Deutsche Bank (+15.35%) tiveram ganhos fantásticos em um só dia.  O que aconteceu?

Os bancos de hoje não são instituições de livre mercado.  Eles vivem em uma simbiose com os governos cujos déficits eles próprios financiam.  A sobrevivência dos bancos depende de privilégios e de intervenções governamentais.  São essas intervenções que explicam essa valorização atípica em suas ações. 

Na noite do dia anterior, uma quarta-feira, uma reunião de cúpula dos líderes da União Europeia havia limitado a 50% os prejuízos que os bancos sofreriam por terem financiado o irresponsável governo grego.  Ademais, a reunião havia demonstrado que a elite política europeia segue disposta a manter o mesmo padrão de comportamento, dando continuidade aos pacotes de socorro ao governo grego e aos outros países periféricos da zona do euro.  Os principais beneficiados por esse pacote de socorro são aquelas pessoas que recebem dinheiro do governo grego: funcionários públicos, pensionistas, desempregados, setores subsidiados e bancos da Grécia -- mas também os bancos alemães e franceses.

Os políticos europeus querem que o euro sobreviva.  Para que isso ocorra, eles julgam ser necessário socorrer governos irresponsáveis com dinheiro público.  E os bancos são os principais credores de tais governos.  Por isso as ações dos bancos dispararam.

A gastança gira em círculos.  Os bancos financiaram governos irresponsáveis, como o da Grécia.  O governo grego resolveu dar um calote parcial.  Os bancos ficaram em apuros.  Como consequência, os governos europeus socorreram os bancos dando-lhes dinheiro diretamente ou concedendo empréstimos para o governo grego para que este pagasse os bancos.  Os bancos puderam então continuar financiando os governos (emprestando para o governo grego e para outros).  Mas quem, no final de tudo, realmente está pagando por essa bagunça?  Chegamos aí ao fim da nossa história. 

Comecemos, portanto, pelo início, que coincide com os beneficiários da última reunião de cúpula da União Europeia: o sistema bancário.

A origem da calamidade: expansão do crédito

Quando o sistema bancário de reservas fracionárias expande o crédito, o resultado inevitável é a ocorrência de investimentos insustentáveis.  Empreendedores, induzidos pelos juros artificialmente baixos, resultado da expansão artificial do crédito, darão início a investimentos que repentinamente se tornaram lucrativos, exatamente por causa da redução dos juros.  Vários desses investimentos não serão financiados por uma genuína poupança acumulada pela população ao longo do tempo, mas sim por dinheiro criado do nada pelo sistema bancário.

Esses novos investimentos irão absorver recursos importantes que estavam sendo utilizados em outros setores da economia, setores esses que não foram igualmente afetados por esse influxo de dinheiro recém-criado.  Disso resulta uma grande distorção na estrutura produtiva da economia.  No último ciclo econômico, os investimentos insustentáveis no florescente e estrondoso mercado imobiliário se avolumavam ao mesmo tempo em que surgiam gargalos importantes no setor de commodities.  [No Brasil, fenômeno semelhante vem ocorrendo, com a diferença que os gargalos estão na infraestrutura].

As verdadeiras distorções desencadeiam uma crise financeira

Em 2008, a crise da economia real desencadeou uma crise bancária -- ou crise financeira.  Taxas de juros artificialmente baixas facilitaram um endividamento excessivo, o qual tinha a finalidade de financiar várias atividades que na verdade eram bolhas.  Quando a insustentabilidade dos investimentos se tornou aparente, o valor de mercado destes investimentos despencou acentuadamente.  Parte desses ativos (investimentos insustentáveis) estava em propriedade do sistema bancário ou havia sido financiada por ele.

À medida que esses investimentos insustentáveis foram sendo liquidados, empresas iam à falência e as pessoas perdiam seus empregos, os quais haviam sido criados unicamente em decorrência da bolha.  Indivíduos começaram a dar o calote em suas hipotecas e em todas as suas outras dívidas.  Empresas falidas pararam de pagar seus empréstimos junto aos bancos.  Preços de ativos, como ações, entraram em colapso.  Consequentemente, o valor dos ativos bancários se evaporou, reduzindo seu capital.  A liquidez bancária também foi afetada negativamente à medida que os devedores davam o calote em seus empréstimos bancários.

Como consequência dessa reduzida solvência dos bancos -- um problema que começou com as distorções na economia real --, as instituições financeiras praticamente pararam de fazer empréstimos umas às outras no segundo semestre de 2008.  A liquidez no mercado interbancário secou.  Acrescente a isso o fato de que o sistema bancário de reservas fracionárias é inerentemente ilíquido, e não será surpresa alguma que um total colapso financeiro só tenha sido evitado em decorrência de maciças intervenções de bancos centrais e governos ao redor do mundo.  A crise na economia real havia causada uma crise financeira.

Condições necessárias para uma recuperação econômica

Uma recuperação econômica requer que a estrutura de produção da economia se adapte às reais demandas dos consumidores.  Investimentos insustentáveis devem ser liquidados a fim de se liberar recursos para serem utilizados em investimentos mais urgentemente demandados.  Esse processo requer vários ajustes.

Primeiro, os preços relativos da economia devem ter total liberdade para serem reajustados.  Por exemplo, os preços dos imóveis têm de cair, o que fará com que outros projetos se tornem relativamente mais lucrativos.  Se os preços dos imóveis não caírem, mais imóveis serão construídos, o que apenas intensificará as atuais distorções.

Segundo, é preciso haver disponibilidade de poupança -- isto é, menor consumo -- para ser investida em setores que até agora foram negligenciados, como o setor de commodities.  Quanto mais poupança, mais rápido será o processo de reajuste da economia, uma vez que novos investimentos precisam de poupança disponível.

Por último, o mercado de fatores de produção (bens de capital, mão-de-obra etc.) deve ser flexibilizado com o intuito de permitir que tais fatores sejam retirados dos setores em que se formaram bolhas e direcionados para aqueles investimentos mais urgentemente demandados.  Por exemplo, mão-de-obra deve ser liberada do setor imobiliário -- ou seja, imóveis devem parar de ser construídos -- e ser redirecionada para projetos mais urgentes, como a produção de petróleo.

Permitir falências é algo que pode acelerar o processo de reajuste dos preços relativos da economia, transferindo poupança e fatores de produção de um setor para outro.  As falências geram uma rápida liquidação daqueles investimentos insustentáveis, liberando poupança e fatores de produção para outras áreas da economia.  As falências são, portanto, essenciais para uma rápida recuperação econômica.

Os altos custos de se impedir um rápido processo de liquidação

Todos os três ajustes mencionados acima (mudanças nos preços relativos, aumento na poupança privada e flexibilidade no mercado de fatores de produção) foram impedidos.  Várias falências que deveriam ter ocorrido não foram permitidas.  Os governos intervieram tanto na economia real quanto no setor financeiro.  Eles deram suporte a várias empresas em dificuldade por meio de pacotes de socorro, empréstimos subsidiados ou financiamento de obras públicas desnecessárias.

Os governos também socorreram bancos comprando ativos podres que estavam em suas carteiras ou simplesmente injetando dinheiro neles.  Como as falências não foram permitidas, a liquidação dos investimentos insustentáveis foi contida.  Os governos também impediram que os mercados de fatores de produção se tornassem flexíveis, subsidiando o desemprego ao concederem auxílios-desemprego generosos.  Os preços dos ativos em bolha não tiveram a liberdade de se ajustarem rapidamente; pior ainda, foram estimulados artificialmente por meio de intervenções governamentais. 

Os governos absorveram a poupança privada por meio de impostos e desperdiçaram-na tentando dar sustento a uma estrutura de produção obsoleta.  Os bancos financiaram os gastos do governo comprando títulos públicos.  Ao darem dinheiro ao setor público, ficaram com menos fundos disponíveis para emprestar ao setor privado.

Os fatores de produção não foram direcionados rapidamente para novos projetos porque os antigos não foram liquidados.  Eles permaneceram atrelados a toda uma variedade de investimentos insustentáveis, principalmente a um setor financeiro hipertrofiado.  A mobilidade dos fatores foi reduzida em decorrência de privilégios sindicais, auxílios-desemprego generosos e várias outras regulamentações trabalhistas.

A crise da economia real e a crise financeira desencadeiam uma crise da dívida soberana

Todos esses esforços para impedir uma rápida reestruturação significaram um enorme aumento no gasto público.  Os gastos governamentais já haviam crescido durantes os anos anteriores à crise graças à expansão econômica artificial.  A expansão econômica gerada pelo aumento do crédito fácil elevou os lucros nos setores que estavam em bolha, como o setor imobiliário e o mercado de ações.  Consequentemente, as receitas tributárias aumentaram e foram prontamente gastas pelos governos, que criaram vários novos programas.  Esse aumento das receitas hoje já desapareceu.  A receita oriunda do imposto de renda e da previdência também despencou.

Com o crescente aumento dos gastos governamentais, que prolongam a crise, e com as receitas em queda livre, a dívida pública dos países e seus respectivos déficits explodiram.[1]  A crise da economia real e da economia financeira levou a uma crise da dívida soberana.  Os investimentos insustentáveis não foram reestruturados e os prejuízos não desapareceram, pois a intervenção estatal não permitiu sua liquidação.  Os investimentos insustentáveis e os prejuízos deles resultantes foram majoritariamente socializados.

A crise da dívida soberana desencadeia uma crise monetária

O passo seguinte na lógica do intervencionismo monetário é uma crise monetária.  O valor das moedas fiduciárias é, em última análise, mantido por seus respectivos governos e bancos centrais.  Os balancetes dos bancos centrais se deterioraram consideravelmente durante a crise e, com isso, sua capacidade de defender o valor das moedas que emitem.  Durante a crise, os bancos centrais acumularam vários ativos podres: concederem empréstimos a bancos moribundos, adquiriram títulos privados sobrevalorizados (e que agora já derreteram), títulos públicos de governos insolventes etc.

Com o objetivo de sustentar o sistema bancário durante a crise e limitar o número de falências, os bancos centrais mantiveram a taxa básica de juros em níveis historicamente baixos.  Com isso, eles facilitaram a acumulação de dívida pelos governos.  Consequentemente, a pressão sobre os bancos centrais para imprimirem mais dinheiro e comprarem mais dívidas desses governos aumenta diariamente.  Com efeito, já tivemos o QE1 e o QE2 -- Quantitative Easing [Afrouxamento Quantitativo, eufemismo para "impressão de dinheiro"] -- promovidos pelo Fed.  O Banco Central Europeu também começou a comprar títulos dos governos e a aceitar colateral de baixa qualidade (como títulos do governo da Grécia).  O mesmo também está fazendo o Banco Central da Inglaterra. 

Os bancos centrais estão criando base monetária, comprando títulos e, com isso, reduzindo a qualidade de seus ativos.

Os governos, por sua vez, não têm condições fiscais para recapitalizar os bancos.  Eles precisam que seu banco central continue imprimindo dinheiro para comprar suas dívidas.  Devido a esse endividamento excessivo, há várias maneiras de os governos afetarem negativamente o valor da moeda que utilizam.

Os governos podem, de maneira direta, dar o calote em suas dívidas.  Para tal, basta eles pararem de pagar os juros de seus títulos.  Alternativamente, eles podem fazer isso indiretamente por meio de um aumento da inflação monetária (que nada mais é do que uma outra forma de calote).  Neste ponto, surge um possível mecanismo de retroalimentação para a crise bancária.  Se os governos derem o calote em suas dívidas, os bancos que estiverem em posse desses títulos serão negativamente afetados.  Ato contínuo, uma nova rodada de pacotes de socorro poderá ser necessária para salvar estes bancos.  Esse pacote provavelmente seria financiado por ainda mais dívida, o que exigiria ainda mais impressão de dinheiro e consequente diminuição do seu poder de compra.  Tudo isso acabará reduzindo a confiança nas moedas fiduciárias.

Conclusão

Após as crises na economia real, no setor financeiro e na dívida dos governos, a lógica do intervencionismo nos leva a uma crise monetária.  A crise monetária está apenas agora começando a se desenrolar perante nossos olhos.  Até o momento, a crise tem sido parcialmente ocultada pelo fato de o euro e o dólar estarem se depreciando praticamente no mesmo ritmo.  No entanto, a crise monetária já pode ser percebida ao se analisar a taxa de câmbio do franco suíço ou o preço do ouro.

Quando uma moeda entra em colapso, a inflação de preços se acelera.  Mais unidades dessa moeda devem ser oferecidas caso se queira adquirir bens e serviços.  Aquilo que começou como uma expansão do crédito -- e suas subsequentes distorções na economia real -- pode acabar em altas taxas de inflação de preços e uma completa reforma monetária.

Agora ficou mais fácil responder àquela pergunta feita lá no início: quem está pagando pelos pacotes de socorro mútuos entre os governos e os bancos da zona do euro?  Todos os indivíduos que utilizam euros, através de uma perda em seu poder de compra.

Em vez de permitir que o mercado reagisse à expansão do crédito, os governos aumentaram suas dívidas e sacrificaram o valor das moedas que utilizam.  O melhor remédio para essas distorções geradas pela expansão do crédito teria sido permitir uma rápida liquidação dos investimentos insustentáveis, dos bancos e dos governos.  Dado que são exatamente os inocentes usuários destas moedas estão pagando pelos pacotes de socorro, não seria nada difícil para eles se tornarem resolutos defensores desse necessário processo de liquidação.



[1] O formidável aumento que costuma ocorrer na dívida pública após uma crise bancária é previsível.  Carmen Reinhardt e Kenneth Rogoff escreveram em This Time Is Different (2009), p. xxxi:   "Na média, a dívida pública aumenta 86% durante os três anos seguintes a uma crise bancária."

 

Sobre o autor

Philipp Bagus

Philipp Bagus é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. é o autor do livro A TragÉdia do Euro.

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