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Economia

O novo paradigma do Banco Central da Suíça

09/09/2011

O novo paradigma do Banco Central da Suíça

No último dia 06 de Setembro de 2011, o Banco Nacional Suíço (BNS) surpreendeu o mercado mundial quebrando um paradigma de décadas: abandonou o câmbio flutuante ao estabelecer um piso para o valor do franco suíço em relação ao euro.  Cada euro não poderia valer menos que CHF 1,20.

Há pouco menos de um mês, levantei alguns pontos sobre por que essa medida era temerária.  Honestamente, não achei que o BNS tomaria esta ação em tão pouco tempo.  É preciso, no entanto, analisar com mais profundidade e entender a lógica desta nova política.  Veremos adiante que, sob a ótica do Banco Central da Suíça, é possível verificar sensatez e coerência nesta mudança de rumo, ainda que para alguns tenha parecido apenas uma reação desesperada.  Logicamente, não resolverá nada.  Apenas comprará tempo e acirrará ainda mais a guerra cambial.

História e mandato

O franco suíço sempre foi visto como um porto seguro no mundo das moedas fiduciárias.  O comportamento do seu guardião ao longo dos anos provou esta percepção.  Anos de prudência na condução da política monetária da Suíça o creditam a este status de estabilidade e segurança.  Não é somente na sua reputação que jaz esta noção. A própria Constituição Federal da Confederação Suíça, artigo 99, estipula que o ouro faça parte das reservas do banco central.  Ainda que não defina a proporção a ser detida, o mero fato de incluir esta determinação na Constituição é louvável.  Curiosamente, analisando a composição das reservas em ouro do BNS, verificamos que praticamente 100% das cédulas e moedas em circulação estão lastreadas em ouro físico (dados de Maio/11).  Isso não quer dizer que a Suíça tenha 100% de sua oferta monetária lastreada no metal.  Infelizmente não.  Analisando a relação do ouro com o verdadeiro agregado monetário M1 (moeda em poder do público + depósitos à vista), o percentual cai para meros 9,9%.

Item

EUA

RU

BCE

BCE+UE

BNS

Cédulas e Moedas

$ 959.600

£ 54.270

EUR 810.822

EUR 810.822

Fr. 45.374

M1

$ 1.935.100

£ 1.089.898

EUR4.707.665

 EUR4.707.665

Fr. 441.035

Reservas em Ouro

$ 405.061

£ 9.317

EUR 17.371

EUR 373.378

Fr. 43.871

Onça Troy (em mi)

261,5

10,0

16,1

347,0

33,4

 

 

 

 

 

 

Ratio Ouro/C&M

42,2%

17,2%

2,1%

46,0%

96,7%

Ratio Ouro/M1

20,9%

0,9%

0,4%

7,9%

9,9%

 

 

 

 

 

 

Figura 1. Fonte: Fed, BCE, Banco da Inglaterra e BNS.

 

 

Assim como a grande maioria dos bancos centrais, a atuação do BNS está pautada na estabilidade de preços, equivalente a um aumento de não mais do que 2% no nível de preços ao consumidor nacional.  Fazendo eco às demais autoridades monetárias, o BNS também considera tanto inflação quanto deflação prejudiciais ao crescimento econômico e à prosperidade.  E em consonância com seus pares, a manipulação das taxas de juros de curto prazo é a ferramenta utilizada para assegurar a tão almejada estabilidade de preços.

Mas nem sempre foi assim.  Após o fim de Bretton Woods, e o início do paraíso de Friedman (câmbios flutuantes), os bancos centrais estavam consideravelmente perdidos.  Durante a maior parte da década de 70, a política monetária do BNS era perseguir um certo aumento na oferta monetária.  Em 1976, a meta era de 6% de crescimento do agregado M1.  Ao final daquele ano, o alvo foi reduzido para 5%, onde permaneceu até 1978, quando então se decidiu fixar o valor do franco suíço ao marco alemão, a uma relação de 80 francos por 100 marcos.  Para a década seguinte, o BNS alterou a política.  Ao invés de perseguir o crescimento do M1, em larga medida fora do controle do banco central, estabeleceram como objetivo um aumento da base monetária na ordem de 4%.

Durante os anos 80, a meta situou-se ao redor de 3%, chegando a 2% de incremento para 1989. Ao avançar dos anos, esta forma de política monetária foi abandonada.  O foco de atuação passou a residir principalmente na manipulação das taxas de juros.

O fato é que o BNS sempre foi relativamente conservador.  Em harmonia com o Bundesbank, a estabilidade de preços e a manutenção do poder de compra do franco suíço sempre foram levadas a sério.  Relativamente.  O que fez com que o franco ocupasse uma destacada posição no âmbito das moedas consideradas seguras, estáveis.

Por que a mudança de paradigma?

Mais de 50% das reservas internacionais do BNS são denominadas em euros.  Dólares representam atualmente 25%.  Sob a ótica do banco central suíço, este arranjo faz perfeito sentido.  A União Européia é responsável por mais de 75% das importações suíças e por quase 60% das exportações.  Nada mais sensato do que lastrear o passivo do BNS em euros, assim como feito na década de 70 com o marco alemão.  O balanço do BNS está, portanto, bastante vulnerável às oscilações da moeda emitida pelo BCE.

2.png

Figura 2. Fonte: Bloomberg.

Analisando o gráfico acima, vemos como o franco suíço manteve uma relativa estabilidade vis-à-vis o euro desde o seu nascimento no início da década passada.  Flutuando dentro de uma banda entre 1,65 e 1,45, o euro não apresentava nenhuma complicação ao BNS.  Entretanto, o desenrolar da crise de dívida soberana na Europa levou o euro a patamares indesejados, beirando a paridade de 1 para 1 e fechando ao final de agosto a um câmbio de CHF 1,16.

Que implicações esta depreciação do euro tem para o Banco Nacional Suíço?  Perdas contábeis.  Menos lucros a serem distribuídos aos cantões e demais acionistas privados, proprietários do BNS.  Após um lucro de CHF 10 bilhões em 2009, o banco central teve que arcar com um prejuízo de CHF 20 bilhões no ano passado.  Em 2011, as perdas até junho acumulam CHF 10,8 bilhões.  O patrimônio líquido do BNS já está em seu menor nível dos últimos 15 anos.  Seguindo esta tendência, poderia chegar a zero em alguns meses.  Tecnicamente, um banco central está imune a bancarrota, mas tal evento geraria um considerável embaraço institucional.

Mas e a inflação?  As taxas de inflação da Suíça sempre foram invejadas mundo afora.  Inclusive pelos países desenvolvidos.  Nos últimos 30 anos, os preços suíços cresceram em média 2% ao ano.  Sendo que, desde os anos 2000, a inflação não passou de 0,8% ao ano.  (Um breve parêntesis, e nós neste terceiro mundo temos que aturar um BACEN e um Ministério da Fazenda que acredita em inflação de no mínimo 4,5% para criar prosperidade.  Por sinal, o desemprego na Suíça está em menos de 3%).

Digressão a parte, por enquanto, o BNS vê poucos riscos de uma substancial e continuada escalada de preços nos cantões suíços.  Ao contrário, sua maior preocupação é uma possível deflação, que vem se confirmando após a última medição.  Em agosto de 2011, o índice de preços ao consumidor nacional (NCPI) apresentou deflação de 0,3%.  Em julho, a deflação foi de 0,8%.

Apesar do incremento considerável do M1 suíço após a crise financeira de 2008, a maior demanda pelo franco como porto seguro tem compensado a expansão de sua oferta.  Enquanto o NCPI não subir, o Banco Nacional Suíço manterá sua nova política.  Esta é a peça fundamental.  É justamente a inflação (ou falta de) que está permitindo o BNS adotar esta postura.      

Portanto, com o objetivo de evitar maiores perdas no seu balanço, acalmar os exportadores, estabilizar a relação mercantil com o seu maior parceiro comercial e combater a deflação, o BNS optou por não mais deixar o franco flutuar, e estabeleceu um piso para o seu câmbio com o euro.  Ou melhor, deixou o câmbio flutuando sim, contanto que seja acima de CHF 1,20.  Como o próprio presidente do BNS afirmou, "mesmo com um câmbio a 1,20, nossa moeda ainda está consideravelmente cara.  O franco deve continuar se enfraquecendo ao longo do tempo".

Implicações da nova política

Ao fixar um piso para o valor do euro em relação ao franco suíço, o BNS abre mão de parte de sua independência na condução da política monetária.  Como ele mesmo afirmou taxativamente, "o BNS defenderá este câmbio mínimo com extrema determinação e está preparado a comprar moeda estrangeira em quantidades ilimitadas". Na prática, isso significa que se o Banco Central Europeu recorrer à expansão monetária, o BNS terá que surfar na mesma onda.

Mas o Banco Nacional Suíço teria a capacidade de manter esta política?  Nosso ignoramus da Fazenda, Guido Mantega, não sabe se a Suíça teria condições de bancar os ataques especulativos.  Elucidando nosso ministro, a resposta é sim.  O BNS é perfeitamente capaz de bancar qualquer ataque especulativo.  O que Mantega não entendeu é que a situação é inversa aos câmbios fixos de antigamente, em geral utilizado por bancos centrais emergentes.  Esse sempre foi o problema de países em desenvolvimento que tentavam fixar suas moedas ao dólar e não tinham a disciplina monetária para isso.  Sempre inflavam mais e acabavam gerando crises financeiras (no jargão de economia, crise no balanço de pagamentos).

Mas o que seria um ataque especulativo ao franco suíço?  Pela primeira vez ,um BC conservador atrela sua moeda à moeda de um BC (potencialmente) mais imprudente.  Caso o BCE decida ser austero e não inflar a moeda, não haverá problema; o BNS sempre operou desta forma e seguirá assim com tranquilidade.  A questão é saber se o BNS irá mesmo imprimir o quanto for necessário caso Jean-Claude Trichet infle o euro para salvar os países problemáticos.

A realidade é que o banco central da Suíça jamais corre o risco de ficar "sem francos" para desvalorizar o próprio franco.  É o contrário das âncoras cambiais normais.  Naquelas chamadas crises monetárias, os países emergentes não detinham divisas suficientes para vender no mercado e defender a paridade cambial.  Por isso o capital deixava o país em massa, enquanto não houvesse uma desvalorização forçada que refletisse corretamente a relação de quantidade de moeda nacional contra moeda estrangeira.  O problema agora não é o BNS ficar sem euros.  É quantos euros ele estará disposto a comprar.  Mas a capacidade para tal é infinita, pois depende somente de sua capacidade de imprimir francos suíços.  Portanto, não há dúvidas de que o BNS consiga manter o piso cambial.

Nesse cenário, um "ataque especulativo" causaria uma valorização forçada.  Os investidores, ao invés de vender o franco em massa (como faziam com o real em 98/99 vislumbrando uma desvalorização), o comprariam em massa, esperando uma valorização forçada.  Imaginem um comunicado à imprensa pelo BNS: "Pois é, devido ao ataque especulativo ao franco suíço, somos obrigados a admitir que não inflamos a nossa moeda na mesma intensidade que o Banco Central Europeu e em conseqüência é preciso valorizar o franco.  A partir de hoje nossa meta passa ser um piso de CHF 1,00".

Mas uma "valorização forçada" pode ocorrer?  Em teoria sim, ainda que soe bizarro.  Em última instância, tudo dependerá da vontade do BNS em imprimir francos suficientes para desvalorizá-lo e sustentar um câmbio a CHF 1,20.  Como comentado acima, a capacidade para tal empreitada é infinita.  Na história de políticas monetárias, não consigo recordar de episódio semelhante.

No caso de o BCE recorrer à desvalorização do euro para resgatar os países em apuros, e o BNS honrar sua promessa de inflar em sintonia, o risco que o último corre é o de gerar um aumento considerável nos preços domésticos e possíveis bolhas em alguma ou várias classes de ativos.

Conclusão

Obviamente não existe limite para a impressão de francos.  Hoje em dia, nem papel e tinta são necessários.  Mas isso não quer dizer que o BNS esteja livre das consequências de tal política insana. Se o euro for desvalorizado de fato, e o franco suíço seguir no mesmo ritmo, cedo ou tarde aumentarão os índices de preços ao consumidor, o qual serve de baliza à política monetária de ambos os bancos centrais. Será que o Banco Nacional Suíço seguirá à risca o seu mandato?

A verdade é que, até então, o BCE não expandiu a oferta monetária da mesma maneira absurda que o Fed americano.  Portanto, grande parte da desvalorização do euro pode ser atribuída à percepção de que há um enorme potencial de expansão por parte do BCE -- entretanto, ainda não materializado.

Acho que esta foi uma cartada que o BNS utilizou para forçar o mercado a não duvidar de sua capacidade de inflar a moeda e forçar uma desvalorização.  No entanto, meu instinto diz que o BNS está blefando.  Acredito que ou o BNS não crê que o BCE criará dinheiro infinitamente e, portanto, não há risco em estabelecer um piso ao câmbio.  Ou então, caso o BCE venha de fato a comprar a dívida de países periféricos depreciando o euro, o BNS abandonaria esta política de piso cambial tão logo uma inflação de preços doméstica começasse a impactar a economia suíça.  Dessa forma, a medida anunciada seria somente para forçar o mercado a diminuir a excessiva valorização do franco suíço.

Sob o ponto de vista do Banco Nacional Suíço esta mudança de paradigma é perfeitamente justificada.  Seguindo a orientação de Robert Mundell, muitos concordam que a saída para o mundo é voltar ao regime de câmbios fixos (assunto para um futuro artigo).

A lição que fica para os investidores é que não existe porto seguro em moedas de papel.  Simplesmente não se pode confiar em banqueiros centrais.  Será que o Banco do Japão fará algo do gênero?  Será que Bernanke lançará seu próximo programa de impressão maciça de moeda (QE3)?

Nesse cenário intricado, teria o BNS alguma alternativa?  O que o BNS deveria fazer com os seus euros?  Vendê-los.  E comprar ouro.  Sim, isto valorizaria em demasia o franco suíço.  Mas talvez fizesse com que o mundo enxergasse a loucura em que estamos nos submetendo.  A tarefa de um banqueiro central é impossível.  Não só pela inerente instabilidade que seu sistema gera, mas porque ele está suscetível à ação dos demais bancos centrais que apelam para a impressora, desestabilizando o comércio no mundo todo.

O fato é que qualquer medida adotada pelos bancos centrais terá vantagens e desvantagens significativas.  Mas todas serão meros paliativos.  Até o momento em que o mundo retome a sanidade monetária imposta pelo ouro. 


Sobre o autor

Fernando Ulrich

Fernando Ulrich é mestre em Economia da Escola Austríaca, com experiência mundial na indústria de elevadores e nos mercados financeiro e imobiliário brasileiros. é conselheiro do Instituto Mises Brasil, estudioso de teoria monetária.

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